Apenas imagine alguém chegando para você oferecendo uma aula sobre estatística no beisebol. No meu caso particular, é uma ameaça dupla, visto que envolve duas áreas da qual sou absolutamente averso: esportes (beisebol, dentre todos eles) e matemática, que sempre assombrou meu boletim escolar e deixou um rastro de notas vermelhas em sua trajetória. Imagino que um produtor de Hollywood talvez tenha uma reação similar, independente se for um prodígio das exatas, especialmente em se tratar de um assunto um tanto distante do grande público. Porém, alie-se um roteiro poderoso de dois dos maiores profissionais de sua área, uma direção precisa e um elenco absolutamente carismático, e eu duvido que alguém seja capaz de não se encantar por O Homem que Mudou o Jogo, e suas preciosíssimas lições.
A trama dramatiza os eventos da vida de Billy Beane (Brad Pitt), general manager do time de beisebol Oakland Athletic’s, que em 2002 enfrentava uma de suas piores crises na história do esporte. Com derrota atrás de derrota e um orçamento que simplesmente não comporta mais grandes estrelas, Beane conhece o jovem economista Peter Brandt (Jonah Hill), que o apresenta ao sistema experimental do Moneyball, que visa montar o melhor time possível sem ter altos gastos, valorizando as habilidades específicas de cada jogador, não a força de seu nome – comprar vitórias, e não jogadores, de acordo com o jovem. Dessa forma, Billy e Peter desafiam as convenções do esporte a fim de virar a situação do A’s.
Fórmula do sucesso
Como comentado no início, estatísticas de beisebol é um tema cuja mera menção me faria correr para as colinas. Isso em uma sala de aula, provavelmente, mas é diferente quando duas lendas do roteiro unem suas forças para contar uma história incrível: Steven Zaillian, vencedor do Oscar por A Lista de Schindler, e o grande Aaron Sorkin, responsável pela obra-prima de texto que é A Rede Social, que foi chamado para polir o texto. Partindo do livro de Michael Levis, a dupla acaba com um roteiro muito peculiar, que exibe bem as características distintas de ambos os escritores. A verborragia e as metáforas de Sorkin estão presentes como nunca, e a grande capacidade de Zailiian em organizar datas, linhas narrativas e grandes quantidades de informação se distribuem de forma eficiente, com direito a imagens reais dos jogos desta temporada específica do Oakland A’s – apenas imagino o trabalho do montador Christopher Tellefen, merecidamente indicado ao Oscar por equilibrar e organizar uma narrativa coesa e que constantemente flerta com o documentário. É uma prosa explicativa e que nunca soa como exposição tola, sempre bem traduzida através de diálogos charmosos e naturais, complementado pelos personagens mais especialistas (Brandt) ou até por narrações de comentaristas esportivos, que constantemente entram como o coro grego da narrativa.
Até mesmo um leigo em esportes como eu é capaz de entender e se envolver com os personagens, até mesmo quando o texto começa a se concentrar puramente no aspecto competitivo. Não é preciso ciência de foguete para ligar a TV e ver jogadores de futebol – trazendo o exemplo para nosso cotidiano – que parecem mais preocupados em sua imagem pública do que suas habilidades, e é justamente nessa questão que Brandt tanto reforça, e não é à toa que Zaillian sempre traga os orçamentos de cada time quando nos apresenta a uma cartela de jogo. E mesmo que não gaste muito tempo explorando os arcos dos jogadores, somos capazes de criar uma certa afeição por alguns deles através de pequenas informações entregadas aqui e ali, e o roteiro ainda se diverte explorando aspectos típicos do gênero esportivo, como o fato de Billy nunca assistir aos jogos nos estádios por ter medo de “azarar” a situação; e quando este enfim pisa em um durante um jogo praticamente ganho, apenas para o A’s sofrer uma súbita queda, é simplesmente arrepiante do ponto de vista dramático, e até um pouco assustador.
Ainda que não seja claro, é uma aposta certeira falar que Sorkin é o responsável pelo elo mais forte do texto, e que parece ter sido inserido após sua entrada no projeto: a relação de Billy com sua filha (a ótima Kerris Dorsey), algo que o roteirista vem trabalhando muito em seus últimos projetos, de Steve Jobs ao vindouro A Grande Jogada; ambos filmes onde o núcleo da história reside no pai e filha. Não é diferente aqui, visto que, mesmo que Billy e a filha tenham pouco mais do que cinco cenas juntos, a maior decisão que o GM toma na narrativa vem motivada por sua filha; uma clara romantização da vida real, mas que ganha muita força graças à execução primorosa de Sorkin, com destaque para o uso da canção “The Show” que vem com uma modificação muito relevante para a história. Ainda sobre a jornada de Billy Bean, os flashbacks que mostram sua promissora, mas eventualmente fracassada carreira como jogador de beisebol profissional é importante para que compreendamos seu receio e conflito quando posto diante de uma escolha que envolve dinheiro. É o núcleo que acaba nos distraindo da trama central, mas que tem a importância justificada pelo arco do personagem.
O silêncio diz tudo
Na direção, temos uma escolha ainda mais peculiar do que o tema. Bennett Miller, saído de sua indicação ao Oscar por Capote, empresta seu estilo inconfundivelmente lento e silencioso para o longa, algo que não vêm à mente quando imaginamos um roteiro verborrágico e rápido como a maioria da prosa envolvendo Sorkin. Porém, quando analisamos o que um cineasta mais dinâmico como Danny Boyle faz com um material desses, percebemos como a abordagem de Miller mostra-se acertada, oferecendo um ritmo nunca antes visto para um texto do roteirista. Ele valoriza a riqueza dos diálogos e dá tempo para que o espectador realmente deixe as palavras absorverem em nossa mente. Essas pausas também garantem um viés cômico muito sutil e discreto, como quando Brandt informa uma notícia ruim a Billy, e ele espera cerca de 5 segundos antes de jogar sua mesa para alto, no acesso de raiva mais silencioso e educado do planeta.
Essa decisão de Miller garante uma mise en scéne muito inteligente, e que constantemente aposta mais nas imagens para transmitir algo. A cena de abertura é um exemplo primoroso dessa narrativa puramente visual, já captando a curiosidade do espectador com a imagem de Billy sentado sozinho entre as cadeiras de um estádio deserto e sombrio (lindamente fotografado por Wally Pfister, em uma rara colaboração que não seja para Christopher Nolan), já simbolizando que nosso herói está em uma jornada aparentemente solitária: ele é o único que ainda acredita no time, e que tem uma visão diferente de sua bancada de olheiros, composta principalmente por idosos. O jogo de enquadramentos continua para nos mostrar que Billy está ouvindo o jogo ao vivo dos A’s. Não está no estádio, nem ao menos se sujeitou a assistir pela televisão, apenas ouvindo. Em seguida, Billy entra em seu carro e começa a dirigir, com raiva; ele quer fugir daquela situação, e é muito simbólico que Miller comece e termine o longa com o personagem dentro de um carro. Para finalizar, Billy desconta a frustração no rádio de bolso, batendo-o contra o painel e jogando-o pela janela. Mas, passada a emoção, ele lentamente sai do carro e caminha para apanhá-lo de volta. Por mais que Billy odeie sua situação, ele não vai simplesmente abandoná-la.
Não só na narrativa, o estilo de Miller obviamente afeta toda a performance do elenco, e de maneira mais do que positiva. Como o diretor opta por uma trilha sonora praticamente nula (geralmente acompanhando tomas de estabelecimento ou transições), todo o elenco não conta com o poder da música inspiradora ou os beats cômicos/dramáticos que geralmente reforçam suas atuações. Aqui, Miller capta até mesmo som de pessoas tossindo ao fundo, deixando-os completamente desarmados de elementos externos. Isso garante performances arrasadoras do elenco principal, com Brad Pitt trazendo um de seus trabalhos mais complexos até então, capturando o carisma de Billy e sempre deixando seu medo transparecer por pequenas camadas atrás de seu senso de humor: quando ele diz para Brandt em tom de ameaça que “é bom que isso funcione”, os 2 segundos de silêncio que antecedem sua risada e a fala “só estou brincando”, revelam que o GM realmente está paralisado de medo, em apenas um exemplo das muitas sutilezas de uma performance que ganha riqueza através de suas diversas reações.
O mesmo se aplica a Jonah Hill, que na época entregava sua primeira atuação inteiramente dramática, surpreendendo a todos por sair de comédias como Superbad, e mal levantando o tom de voz para viver o tímido Peter Brandt. Como esperado nesse tipo de arquétipo, o mais interessante no trabalho de Hill é ver como o analista vai perdendo seu aspecto mais reservado e mostrando seu lado mais extrovertido, e também superando o medo para contornar situações embaraçosas, como demitir jogadores. Seu grande momento também vem de um momento de reação e silêncio, com Miller retratando Brandt e Billy falando ao telefone para conseguir a troca de alguns jogadores. Nunca ouvimos a voz na outra linha, ficando apenas com os rostos dos atores como indício do diálogo, e a reação “silenciosamente histérica” de Hill ao cerrar seus punhos é simplesmente maravilhosa. Pitt e Hill juntos é uma combinação que nunca imaginaria, mas que funciona perfeitamente.
Os dois dominam o filme, mas vale mencionar o rico elenco coadjuvante, que conta ainda com o finado Philip Seymour Hoffman entregando uma performance que expressa a decepção do técnico do time com as novas táticas empregadas por Billy, raramente trocando sua expressão de rabugento. Hoje badalado por Guardiões da Galáxia, Chris Pratt tem bons momentos como o jogador Scott Hattenberg, sendo eficiente em transmitir a humildade do jogador que, esquecido pelo simples fato de “arremessar de forma esquisita” é lembrado por Billy e tirado das trevas do desemprego. Robin Wright e o diretor Spike Jonze têm uma boa cena para transmitir a estranheza do encontro de um pai com sua ex-esposa e seu atual namorado, mas a pequena Kerris Dorsey rouba a cena como a filha do protagonista, com performances encantadoras da canção já discutida anteriormente.
Representando o ponto alto da carreira de um diretor que ainda precisa ganhar seu devido reconhecimento, O Homem que Mudou o Jogo é um triunfo. Acerta na maioria dos aspectos técnicos e narrativos com a mesma precisão matemática do programa de seus personagens, com um roteiro poderoso e um elenco carismático. Mesmo com a primeira impressão não muito convidativa, ao final da projeção só podemos parafrasear Billy Beane e nos perguntar: “como é possível não ser romântico com beisebol?”
O Homem que Mudou o Jogo (Moneyball, EUA – 2011)
Direção: Bennett Miller
Roteiro: Aaron Sorkin e Steven Zaillian, baseado na obra de Michael Lewis
Elenco: Brad Pitt, Jonah Hill, Philip Seymour Hoffman, Robin Wright, Chris Pratt, Kerris Dorsey, Stephen Bishop, Reed Diamond, Brent Jennings
Gênero: Drama
Duração: 133 min