Sem a Disney, minha infância não teria sido a mesma. Sou da geração de 1994 – ano do lançamento de “O Rei Leão” – e acredito ter sido privilegiado por vivenciar a chamada “Era de Ouro” da Walt Disney. A empresa alavancou assustadoramente a qualidade de seus filmes em 1989 com o lançamento de “A Pequena Sereia”, um clássico que muitos assistiram. Assim que os anos 90 chegaram, a Disney começou a criar um filme melhor que o outro. Foi assim com o impecável “A Bela e a Fera” – um dos meus favoritos da Disney, depois com “Aladdin”, “O Corcunda de Notre-Dame”, “Hércules”, “Mulan” e “Tarzan”. Entretanto, apesar de serem filmes excelentes, nenhum conseguiu atingir o grau de sucesso que “O Rei Leão” conquistou. Hoje é considerado um clássico. Suas cenas definiram uma linguagem inédita e as músicas tornaram-se inesquecíveis. Definitivamente, uma obra-prima de uma nova era.
O sol nasce no horizonte da savana africana. Os animais acordam e começam a se mobilizar. Um dia histórico está para acontecer. Chegando a Pedra do Rei, a cerimônia para comemorar o nascimento do leãozinho Simba, o filho do rei, começa. Tudo se aquieta novamente. O ciclo da vida continua. Mufasa confronta Scar, seu irmão traiçoeiro e pede explicações sobre sua ausência na cerimônia. O leão ignora a afronta de seu rei e continua a bolar uma tramoia para ocupar o trono de Mufasa. Alguns meses se passam e Simba cresce, mas continua filhote. Scar sabe que para assumir o posto de rei, precisa eliminar pai e filho. Enganando o pequeno sobrinho, o leão pede que espere no desfiladeiro para presenciar uma surpresa. As hienas, aliadas do vilão, estouram uma manada de gnus que correm direto ao encontro de Simba. Para tentar salvá-lo, Mufasa dispara em direção ao desfiladeiro e acaba assassinado pelo próprio irmão. Seu filho consegue fugir, mas graças a alguns acontecimentos durante os anos de seu exílio, Simba jura retornar e salvar a Pedra do Rei do governo tirano de seu tio.
A história que encanta gerações
O roteiro de “O Rei Leão” é um caso surpreendente de cooperação. Pasmem, mas foram vinte e nove envolvidos para entregar esta história inesquecível. Porém, os responsáveis pela adaptação da narrativa para as telonas foram três, Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton. O que sempre me encantou nas histórias dos filmes da Disney eram seus temas-base. Não importava se fosse uma adaptação brilhante de um romance como “A Bela e a Fera” e “Pinóquio” ou se fosse uma visão mais romântica de um ditado/senso-comum como neste caso – o leão, o rei da selva.
Os filmes da Disney sempre tiveram uma característica muito interessante. Até hoje, auxiliam na formação da ética, moral e dos valores do espectador juvenil. Mufasa é a introdução perfeita para isso. O personagem sempre mantém um discurso didático durante o filme. As lições de vida que ele dá para Simba refletem diretamente na plateia – “O Ciclo da Vida” também serve para todos nós. Os roteiristas também sabem fluir a história com maestria. Não perdem tempo com muitos conflitos na narrativa. A ousadia marca o texto do filme. Esta foi a primeira vez que a Disney abordou a morte de maneira tão explícita e sensível – em “Bambi”, a morte da mãe do protagonista é sugerida para o espectador que toma aquilo como verdade.
A subjetividade também marca o texto de “O Rei Leão”. Ao retirar Mufasa da narrativa, deixam implícito que, mesmo com a posição social, a bondade, a paternidade e, principalmente, a invulnerabilidade do personagem, a morte não faz distinção entre valores e riqueza ao dar seu abraço fúnebre. A partir de então, a história se baseia na tragédia e, mesmo assim, a alegria e a superação aparecem. Isso acontece com a introdução tardia de Timão e Pumba na história, que conseguem inserir a comédia inesquecível dos personagens. Porém, o reerguer emocional de Simba também acontece por causa da dupla, deixando claro que a superação das piores adversidades só é possível com o afeto e amparo dos amigos mais queridos.
Com a companhia de Timão e Pumba, Simba vive sua adolescência – idade perfeita para o “Hakuna Matata”. Essa falta de amadurecimento é evidente na dupla de amigos. Timão é arrogante e orgulhoso ocasionando uma espécie de guilty pleasure no espectador, porém é companheiro, leal e protetor. Já Pumba é ingênuoem excesso. Se não fosse por Simba, os dois continuariam desamparados e renegados pela sociedade – outra crítica expressiva do roteiro apaziguada pela comédia. Entretanto, o personagem mais impressionante do filme inteiro é o macaco Rafiki. Através dele, os roteiristas passam a mensagem mais bonita do filme inteiro. Ensina Simba a lidar com a dor e a morte e, consequentemente, a superá-las, inclusive a grande culpa que acompanha o protagonista. Entretanto, isto tem um custo. Repare que o protagonista segue um caminho cheio de obstáculos ao atravessar um bosque lotado de árvores velhas para sofrer a epifania necessária. Assim como quando Luke enfrenta seu maior medo na caverna de Dagobah, Simba encontra o pai para achar sua redenção. É exatamente esse o maior trunfo do roteiro. Essa interdependência entre os personagens retrata uma sociedade em perfeita harmonia e cooperação.
A história do filme é baseada na tragédia “Hamlet”, escrita por Shakespeare em 1599. Enquanto os outros animais vivem em paz, a família de Mufasa é perturbada pelo maléfico Scar. O conflito familiar entre os dois irmãos é deslumbrante apesar de ser introduzido apressadamente. Scar apenas anseia pelo poder “monárquico” do irmão e tenta de todas as maneiras consegui-lo. O maniqueísmo exacerbado sempre foi uma característica notável da Disney. Repare. Os protagonistas bondosos sofrem uma perda significante, amadurecem e resolvem seu conflito interno e externo. Já os antagonistas são caricaturais em excesso, além de sempre apresentarem os piores aspectos da natureza humana. Tomemos Scar como exemplo, então. É egoísta, oportunista, hipócrita, cruel, traíra, desonesto e preguiçoso. Ele se aproveita do sobrinho ingênuo e das hienas famintas e ignorantes para atingir seus objetivos. Entretanto, mesmo perspicaz e esperto ao conseguir saciar seu desejo de poder, Scar não consegue manter o equilíbrio no ecossistema da Pedra do Rei graças ao predomínio de predadores.
É inacreditável o nível de subjetividade que essa história contém. Se o espectador comparar o reinado de Scar com o de Mufasa, perceberá ideais muito claros. Mufasa é capaz de manter a ordem no vale através do equilibro perfeito entre sua coerção e consenso. Os animais se respeitam mutuamente e entendem sua participação no “ciclo da vida” garantindo um sentido praticamente utópico ao governo. Porém, Scar, mesmo gracioso em manipular terceiros, é incapaz de governar sem o auxílio de leis, exprimindo uma grande falta de pulso e percepção da realidade. E mesmo assim, o antagonista é incapaz de recuperar a devastação que seu governo causou ao ecossistema.
Apesar de não contar com personagens antropomorfizados, a história de “O Rei Leão” nunca deixará de ser uma fábula. Os roteiristas miscigenam diversas emoções humanas com a natureza selvagem dos animais. A empatia que os espectadores desenvolvem com os personagens é proveniente disto. A forte paixão entre pai e filho, o primeiro amor, a misericórdia diante do inimigo, a amizade dos amigos, a adaptação a novos ambientes, o medo da perda e da dor, o abraço terno e o protecionismo paterno são meros exemplos disto. Interessante foi a decisão de dar pouco destaque para as personagens femininas da história. Sarabi, mãe de Simba, é irrelevante e Nala funciona como um catalisador para a breve epifania do protagonista.
O rugido do leão
A dublagem da Delart marcou a infância de várias crianças inclusive. O estúdio foi responsável pelas inesquecíveis dublagens de “A Bela e a Fera”, “Aladdin”, “Pocahontas” e, claro, “O Rei Leão”. Inclusive, houve uma interessante polêmica na dublagem brasileira lançada nas fitas VHS do filme. Momentos antes de Scar ser devorado pelas hienas, o dublador Jorge Ramos solta um sucinto grito – “Eu sou bicha!”. Isso foi corrigido nas versões posteriores do longa. Entretanto, apesar do trabalho magistral com os dubladores brasileiros, admito que a dublagem americana é bem superior principalmente por causa das canções entoadas com muito mais vontade.
James Earl Jones dubla o icônico Mufasa. O ator se aproveita diversas vezes de sua dicção extremamente profunda e grave para comandar os discursos com Simba. A pose inquisitorial e forte do rei caiu perfeitamente para Earl Jones. O ator não trouxe sua característica mais notável para a atuação – Jones sempre mantém um ar ríspido e rabugento em seus personagens. Ele desenvolve muito bem o lado paternal do personagem exprimindo muita ternura e emoção em sua dublagem.
Jeremy Irons certamente é a voz que mais marca o elenco de “O Rei Leão”. O ator dubla Scar de um modo inesquecível. Sempre mantém a voz arrastada e levemente dramática mantendo uma teatralidade fantástica para o personagem. O ator também se expressa ironicamente com muita competência. São notáveis as inúmeras variações de dicção que Irons trabalha em Scar tornando o personagem completamente imprevisível em seus atos – uma hora covarde, outra, egocêntrico, porém sempre acompanhados de crueldade. Matthew Broderick dubla Simba já adulto, mas decepciona bastante não conseguindo superar o nível excelente atingido por Jonathan Taylor Thomas, dublador de Simba quando criança. A dublagem do ator não é ruim, pois consegue transmitir a grande falta de autoconfiança e a dúvida existencial que o personagem sentia no determinado momento do filme. Entretanto, o espectador não sente firmeza na voz de Broderick quando este braveja para expulsar Scar da Pedra do Rei. Com isso, Broderick cria uma relação interessante e um tanto prejudicial para a atuação da cena.
Robert Guillaume certamente é o melhor ator do filme dublando o histérico macaco xamã, Rafiki. O ator entoa sua voz levemente aguda e rouca de uma forma que consegue criar uma aura de inteligência e misticismo única para o personagem. Porém, mesmo com esse semblante sábio do personagem, o ator cria outra característica para Rafiki. Guillaume grita, canta e solta onomatopeias diversas vezes nas poucas cenas que o babuíno aparece. Assim, Rafiki cai no mesmo clichê – bem-vindo neste caso, de praticamente todos os gênios que já caminharam sobre este planeta. Completamente geniais e loucos. Guillaume também foi o único ator do elenco a se importar em criar um sotaque genuinamente africano. Pontos positivos para ele.
As últimas vozes, mas não menos importantes, também marcaram história na Disney. Whoopi Goldberg, Jim Cummings e Cheech Marin (consagrado pela cinessérie drogada “Cheech & Chong”) dublam as três hienas, Shenzi, Ed e Banzai. O único que se sobressai é Jim Cummings interpretando o acéfalo Ed. Cummings baseia-se em apenas onomatopeias, grunhidos e gritos. Entretanto, a característica mais notável no trabalho da dublagem das hienas é as risadas. Os três atores criaram uma risada perfeitamente alucinada para os personagens Goldberg e Cheech conferem uma voz aguda, doente e áspera casando perfeitamente com as figuras de Shenzi e Banzai. E, por fim, Nathan Lane e Ernie Sabella como Timão e Pumba, respectivamente. Lane não ornamenta a dicção de sua dublagem e, com isso, garante a simplicidade marcante do personagem. O ator sempre mantém um discurso estridente, frágil, petulante, egocêntrico e irônico. Já Sabella é o completo oposto da técnica de Lane. Ele prefere gritar com sua voz grave e gutural conferindo uma dimensão estabanada e histérica para o personagem.
Rowan Atkinson, Moira Kelly, Madge Sinclair e Niketa Calame completam um dos melhores elencos de vozes já reunidos pela Disney.
As inúmeras cores da África
Além de contar com uma história estupidamente bela e cativante, “O Rei Leão” marcou época pelas inovações técnicas, artísticas e criativas em sua animação. Deixarei para comentar sobre a concepção visual dos personagens nos parágrafos destinados a direção. Enquanto isso, falarei sobre o emprego cheio de significado da fotografia e da direção de arte que orquestrou o resultado extasiante das belíssimas paisagens que compõe os quadros do filme.
Logo na majestosa e inesquecível sequência de abertura, os animadores mostram um trabalho de tirar o fôlego. Os planos gerais cheios de detalhes são uma representação fiel de toda a fauna, flora e geografia terrestre de uma porção do terreno africano. As cores primárias fortes dos animais desenhados com um traço bem realista contrastam diretamente com as cores mais elaboradas dos cenários. Também nesta cena, o espectador perceberá o esquema fotográfico que predominará durante o resto do longa. A luz incidente sempre deixa os contornos dos personagens com um aspecto leitoso e condensado denotando a forte riqueza de vida e calor – esse tipo de iluminação foi repetido em “Tarzan”. Somente em poucos momentos a luz incidente muda de característica no cenário e nos personagens – repare, em especial, nas cenas que se passam no Cemitério dos Elefantes.
A estética da animação é perfeita. Absolutamente todos os cenários ou no termo mais apropriado, landscapes, são belos e majestosos. Sempre enormes, metaforizam o ego inflado do jovem príncipe. Após a morte de Mufasa, tornam-se menores, além de contar com um excesso de elementos no jogo de cena. O espaço fica reservado e levemente claustrofóbico. Essas interessantes características denotam a retração e insegurança de Simba que não encontra saída para seu conflito. Entretanto, depois da epifania catalisada por Rafiki, os landscapes da Pedra do Rei continuam grandes, porém fotografados em planos bem menores onde nunca é possível avistar o horizonte. Somente no final do longa, os cenários grandiloquentes retornam.
“O Rei Leão” marcou época por utilizar diversas técnicas novas em sua animação e algumas características fotográficas pouco habituais em desenhos animados. A Disney apresentou a maior gama de expressões faciais em uma animação até então. São feições extremamente bem construídas, fluídas, naturais e competentes em transmitir as emoções dos personagens. Fora isso, os animadores têm um cuidado notável ao tratar expressões de muitos personagens ao mesmo tempo. O uso da computação gráfica ganhou destaque e prestígio no campo das animações após o sucesso gerado por “Toy Story” em 1995. Poucos sabem, mas “O Rei Leão” foi um dos pioneiros ao introduzir a utilização de CG em suas cenas.
Cinco animadores especializados em computação gráfica trabalharam por mais de dois anos para criar apenas dois minutos e meio de animação da cena em que os gnus disparam movimentando-se de maneira imprevisível no desfiladeiro. Os animais eram totalmente digitais. O truque para não deixar a animação virtual explícita foi a introdução inteligente de filtros cel-shaded nos corpos dos bichos. O resultado de todo o trabalho dos profissionais foi espetacular. A cena entrou para a história do cinema graças à perfeição de sua técnica tanto artística quanto tecnológica.
Entretanto, apesar de todo o trabalho maravilhoso com a coloração e seus dégradés, cenários, artes conceituais, landscapes, concepção de personagens e expressões faciais, nada superará a conquista inestimável que a equipe conseguiu ao estudar os gestos de cada animal para reproduzi-losem animação. Issojá havia acontecido em “Bambi” no ano de 1942, mas nunca com tamanha amplitude como neste caso. Uma das grandes sacadas dos e animadores e da direção foi miscigenar expressões corporais selvagens com humanas.
Tomaremos uma cena como exemplo então. Simba está prestes a ser repreendido por Mufasa após a confusão no Cemitério dos Elefantes. Assim que Mufasa chama por seu filho, Simba assume uma postura curvada, tímida e deixando cauda e orelhas baixas. Isso exprime todo o medo que o personagem sentia. Logo depois Simba brinca com seu pai. Novamente a expressão selvagem aparece entre mordidas na orelha e cambalhotas. Já as expressões naturalmente humanas são mais frequentes em três personagens: Zazu, Scar e Timão. Talvez por serem os animais mais covardes e racionais. Scar geralmente gesticula com as patas, acaricia Simba com gestos tipicamente humanos, etc. Zazu cruza as asas, segura as barras de sua gaiola, etc. Já Timão sempre gesticula com nítido exagero, lambe os dedos após comer, cruza as pernas, coloca as mãos na cintura e mais uma infinidade de expressões similares às humanas. Destaque para o notório segmento da Hula. Até mesmo Pumba tem seus momentos. Um gesto, em especial, chama a atenção do espectador mais atento. Na cenaem que Pumba, Timão e Simba observam as estrelas, o javali acaricia sua pança abundante. Nos demais personagens, a humanidade sempre é concentrada em seus olhares.
Nants ingonyama bagithi baba!
Para quem sempre se perguntou o que raios a voz masculina cantarolava assim que o Sol começa a nascer na cena de abertura, a resposta está no título do tópico. A frase significa “Aí vem o leão!”. Simples e encantador. Os cânticos africanos acompanham as diversas músicas instrumentais arranjadas pelo mestre Hans Zimmer. Elas garantem o clima selvagem, exótico, pulsante, energético e extremamente cinético da trilha.
Zimmer captou o espírito da obra como nenhum outro compositor a trabalhar com o tema. A trilha instrumental, pouco lembrada, consegue arrancar lágrimas por si só. As composições são extremamente belas e, geralmente, acompanhadas pelos sons mais angelicais dos violinos. Os acordes são inteligentes e conversam diretamente com a cena. Todas são impregnadas de sentimento e emoção.
O compositor trabalha com uma gama assombrosa de instrumentos. Cada música do longa merece uma análise detalhada. Acredito que este é o único filme que apresenta tantas composições dignas de diversas interpretações, afinal estão carregadas de significado. Zimmer atinge tal grau de qualidade que consegue compor uma sinfonia. Sim, você não leu errado, uma sinfonia! “King of Pride Rock” é digna deste título mesmo com as compilações que encaixam perfeitamente nos minutos finais da música. Outra música, particularmente minha favorita da trilha instrumental, que merece destaque é “Under the Stars” – o cântico do final é simplesmente encantador.
Infelizmente, por algum devaneio errôneo dos diretores, a edição das músicas é equivocada. Incontáveis vezes pude perceber que as músicas de fundo repetiam conforme as cenas variavam. Isso é comum em novelas, mas em filmes apenas Michael Bay tem a capacidade de realizar tamanho descuido. O mais estranho é que Zimmer compôs material o suficiente para preencher boa parte da metragem do longa sem a necessidade desta repetição expressiva.
Agora a vez de comentar sobre o genial Elton John chegou. Não é surpresa que a maioria das trilhas que este cara participa entre para a minha lista dos “favoritos”. A maestria apresentada em “O Rei Leão” apareceu novamente nas canções de “O Caminho Para El Dorado”. As canções escritas por John e Tim Rice conquistam gerações de fãs e tornam-se músicas que relembram a infância de várias pessoas. As letras poéticas e criativas completam o fundo musical estupendo.
O interessante é que Elton John arranjou duas versões com letras diferentes de “Circle of Life”, “I Just Can’t Wait to be King” e “Can You Feel the Love Tonight”. A versão cinematográfica é bem distinta da apresentada no álbum do filme, mas ambas possuem uma qualidade extraordinária. A versão apresentada no filme de “Circle of Life” é mais bonita do que a do álbum. Isso acontece por um simples motivo, a voz de Carmen Twillie expressa mais emoção que a de Elton. Além do fato dela contar com o auxílio do backing vocal africano sensacional.
“O Rei Leão” ganhou dois Oscars, Melhor Trilha Original e Melhor Canção Original – “Can You Feel the Love Tonight”. Não há dúvidas que a música do longa é um de seus maiores méritos. Transcende gerações e te conquista para sempre. A prova viva disto é a excelente “Hakuna Matata”. Uma canção que você precisa ouvir somente uma vez para se lembrar pelo resto da vida.
Poesia em Movimento
Na crítica de “Enrolados”, escrevi que na grande maioria dos filmes da Disney, uma característica era notável: dois diretores para um só filme. Se a química da parceria fosse perfeita, o resultado seria uma explosão de criatividade. Foi o que aconteceu em “O Rei Leão”, um dos melhores filmes dos anos 90. Roger Allers e Rob Minkoff são os responsáveis por esta obra-prima da Disney.
A direção já começa impecável na abertura do filme. Existe um provérbio no ramo cinematográfico – “Se você quer a atenção do seu espectador, conquiste-o logo nos minutos iniciais de seu filme”. Se esse ditado não existe, então acabei de cria-lo e é a mais pura verdade. Tudo beira a perfeição nos primeiros cinco minutos do longa. Entretanto, do meio para o fim da cena acontece o fator que retira o filme de um produto reles comercial para uma obra de arte imortal.
Assim que Rafiki entra na cena, o espectador começa a entender “O Ciclo da Vida” e sua atmosfera que mistura o natural com o espiritual. O macaco surge banhado pelos mais puros raios solares iluminando os demais seres. Isso sim é um efeito poético e romântico. Após o ritual similar a um batismo, Rafiki pega Simba e o apresenta para os bichos que vivem no vale da Pedra do Rei. Os céus se abrem e Simba é abençoado pela luz divina e natural. Os demais animais se curvam ao reconhecer o sucessor do trono. Com a seleção muito inteligente de planos e aumentando o som da música gradativamente, os diretores conferem uma emoção inebriante para a cena. Certamente digna de lágrimas graças à beleza inestimável.
Como havia dito no tópico da animação, a direção da dupla concentrou-se muito na concepção visual inesquecível dos personagens. De primeira instância o espectador percebe o jogo de opostos que os diretores criaram. Começaremos por Mufasa então. O personagem tem coloração clara, é forte, grande, sadio, ativo e conta com uma juba mais voluptuosa. Scar é totalmente diferente de Mufasa. É fraco, preguiçoso, magro, recebe uma coloração mais escura e sempre está com as pupilas contraídas ao máximo. Isso denota o grande medo que o personagem sente em relação a seu irmão. Scar sempre está atento para não cometer nenhum erro em seus planos maquiavélicos. Note que o personagem sempre deixa suas garras a mostra reforçando ainda mais a ideia de insegurança transmitida subjetivamente.
Além disso, para discernir ainda mais os heróis dos vilões, os diretores usam efeitos de iluminação sucintos. Repare que Scar, com exceção de uma cena, nunca é iluminado diretamente pela luz do Sol – sempre aparece envolto pelas sombras de alguma caverna. Já as hienas também recebem essa espécie de iluminação sombria. Allers e Minkoff também fotografam as hienas de uma maneira bem diferente. Repare que nos planos que as hienas são ilustradas, os diretores abusam no close up nas faces alucinadas dos bichos causando um certo desconforto. A imagem é claustrofóbica, pois as hienas ocupam 90% do plano. A sacada é bem inteligente. Com essa jogada de imagem, os diretores denotam a personalidade instável e desordenada das hienas.
O sábio espetáculo de imagens não para por aí. Durante as cenas dedicadas às canções, os cineastas alteram bruscamente o traço da animação e a estilo de iluminação. Eles usam e abusam de spotlights (feixes de luz) durante os números musicais conquistando, assim, grande teatralidade para a cena – o segmento despojado, esverdeado e cheio de projeções de sombras de “Be Prepared” é o melhor exemplo disto. Eles apresentam uma gama satisfatória de um estilo de desenho mais belo que o outro. Cada vez que o traço varia, a paleta de cores se altera.
Também é interessante a concepção visual dos outros animais que vivem no Vale da Pedra do Rei. Repare que os demais bichos possuem características bem realistas – somente uma vez, recebem um tratamento estilo “cartoon”. Já os animais protagonistas contam com feições humanizadas em suas expressões. Intencionalmente ou não, Aller e Minkoff criaram uma espécie de segregação entre os habitantes selvagens no habitat fictício do longa.
Outra segregação criada pelos diretores se encontra nos olhos dos personagens. Repare que a grande maioria dos animais possui sua esclerótica, o famoso “branco do lho”, de cor amarelada. Timão e Zazu são os únicos que contam com a esclerótica branca natural, porém durante duas cenas, Simba possui a coloração esbranquiçada. Imagino que os diretores tentaram transmitir subjetivamente, pela milésima vez, a perda do espírito selvagem de Simba já que ambas as cenas retratam os conflitos internos do personagem e sua superação.
A dupla de cineastas também utiliza técnicas pouco habituais em animações entre as mais interessantes estão o contra zoom – truque de lentes que faz o segundo/terceiro plano afastar do protagonista localizado no centro da imagem e zooms ligeiros. Eles também têm um gosto único ao utilizar closes no momento propício seja quando Simba acorda Mufasa na aurora do dia ou quando implora a Sarabi para ir brincar com Nala.
Depois de dezessete anos, “O Rei Leão” voltou aos cinemas, só que agora em 3D. A conversão foi muito bem feita e adicionou uma experiência interessante a obra, apesar de sacrificar boa parte da majestosa paleta de cores graças à escuridão causada pelas lentes dos óculos 3D. Entretanto, a recompensa é muito maior. Não existem palavras para descrever a beleza de ver os flamingos voando a um palmo de sua frente durante a abertura do filme. O efeito também garante momentos bem divertidos como quando Scar salta em direção a plateia. Mas, enfim, o que aconteceu com Allers e Minkoff após a produção do filme? Roger Allers está afastado do cinema atualmente e Minkoff virou diretor de filmes medíocres. O último filme dele é o ainda inédito “Assalto em Dose Dupla”. Isso sim é um ótimo exemplo de desperdício de competência e criatividade.
Para finalizar o tópico, aponto uma característica que acabou virando marca registrada da Disney: a queda, leia-se “morte”, do vilão nunca causada pelo protagonista, mas sim por um fator externo. Repare, a Rainha de “A Branca de Neve e os Sete Anões” morre ao cair de um penhasco após ser atingida por um raio (se eu não me engano, era isso o que acontecia). Malévola de “A Bela Adormecida” após se transformar em um dragão também acaba caindo do alto de uma torre. Gastón de “A Bela e a Fera” cai do alto de uma torre após se desequilibrar. Frollo de “O Corcunda de Notre Dame” também cai de uma das torres de Notre-Dame após uma gárgula lhe olhar com um semblante demoníaco. Mr. Clayton de “Tarzan” se desequilibra ao duelar com Tarzan na copa das árvores e acaba caindo. Scar é devorado pelas hienas após Simba arremessá-lo, “sem querer”, para um penhasco. Com exceção da morte de Scar, todas as outras acontecem debaixo de muita, mas muita chuva. Chuva animada o suficiente para acabar com a sede no mundo. Vale lembrar que recentemente, os antagonistas de “Up”, “Enrolados” e “Encantada” também encontraram seu trágico fim após despencar de grandes alturas.
O Retorno do Rei
Sem sombra de dúvida, “O Rei Leão” é um dos melhores filmes da Walt Disney. Sinto orgulho por ter tido a oportunidade de aproveitar uma das melhores fases da Disney. Se não fosse pela magia de seus filmes, minha infância não teria sido tão fantástica como foi. Ele foi remasterizado recentemente com a edição imperdível em Blu-ray. O filme ficou ainda mais emocionante, colorido e vivo do que nunca. Imagino que a versão em 3D já deve ter saído de cartaz, infelizmente. Mas você ainda pode conferir esta versão caso tenha uma televisão compatível com essa tecnologia. “O Rei Leão” é um filme que encanta gerações com sua história maravilhosa e com suas canções que são relembradas até hoje. Ele conta com um grau de subjetividade ferrenho e influi, de alguma maneira, na educação do espectador. Este é um dos filmes que eu terei gosto de apresentar para meus filhos. Agradeço aos que esperaram pacientemente pela análise, mas creio que a espera valeu a pena. E lembre-se: hoje à noite, aqui na selva, quem dorme é o leão.
O Rei Leão (The Lion King, EUA – 1994)
Direção: Roger Allers, Rob Minkoff
Roteiro: Irene Mecchi, Jonathan Roberts, Linda Woolverton
Elenco: Matthew Broderick, James Earl Jones, Jeremy Irons, Whoopi Goldberg, Rowan Atkinson, Moira Kelly
Gênero: Drama, Aventura
Duração: 88 min