Com o Neorrealismo Italiano ganhando enorme popularidade após os sucessos perpetrados por Luchino Visconti em A Terra Treme e Roberto Rossellini com outros longas precursores do movimento como Alemanha, Ano Zero e Roma, Cidade Aberta, o movimento cinematográfico ainda revelaria ao mundo o talento inegável de Federico Fellini através de Os Boas Vidas, seu terceiro longa-metragem que definitivamente alçou o diretor para o sucesso mundial com uma inesperada indicação ao Oscar.
Entretanto, mesmo sendo um longa neorrealista, Os Boas Vidas é um longa de amadurecimento do movimento muito mais centrado em grandes dramas e preocupados com a condição social de classes menos favorecidas, além da carga ideológica presente sobre questões trabalhistas e de exploração. Fellini se afasta de tudo isso para tocar um drama que, de certa forma, poderia ser considerado próximo aos padrões hollywoodianos de Frank Capra.
Ser ou Não Ser
Fellini nos apresenta a um grupo de cinco amigos, todos de classe média acomodados em vidas confortáveis e repletas de agrados sem quaisquer responsabilidades. Porém, rapidamente a rotina de festas e zorra de Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e Riccardo sofre uma reviravolta quando descobrem que a irmã de Moraldo, Sandra, está grávida de Fausto. Com custo, os dois se casam e partem para uma vida desconhecida de responsabilidades, embora o jovem homem ainda insista em negar qualquer responsabilidade em seu cotidiano.
Em seu roteiro, Fellini trouxe diversas características pertencentes a sua própria vida, tanto que o título original do longa, I Vitelloni, vem diretamente de uma ofensa vinda de uma senhora que desaprovava as traquinagens do diretor enquanto vadiava nas ruas com seus amigos.
Com esse olhar mais maduro sobre a própria juventude, é rápido notar que existe muito moralismo em Os Boas Vidas. As ações impensadas dos rapazes prejudicam terceiros em muitos momentos trazendo o contraste forte entre a velha geração dos pais que preza pela moral e bons costumes da época, além de valores que separam os responsáveis da laia de vagabundos que os personagens convivem.
Todos carecem de encontrar um sentido pleno em suas vidas e, para disfarçar a melancolia, buscam o pleno escapismo. É uma crítica exemplar de Fellini que até hoje se encontra relevante, pois esse momento definitivo e confuso na vida de qualquer é o que separa o ser e o não ser. Acompanhamos pessoas que não são, não lutam ou batalham. Uns aspiram como no caso do amigo mais artista que passa suas noites escrevendo roteiros falidos, enquanto outros apenas se afundam em dívidas, lençóis de mulheres apaixonantes e ingênuas, além de desperdiçarem todas as boas chances que a vida oferece.
Mesmo tão complexo no assunto abordado, o cineasta trabalha a narrativa e a direção com bastante leveza, apelando poucas vezes para diálogos expositivos ou para a repetição de situações que podem levar a cenas redundantes ou simplesmente desconexas. O único pecado do diretor é justamente estender certos momentos além da conta. Fora isso, o drama funciona perfeitamente no qual os personagens precisam compreender a realidade que os cerca por si mesmos.
Alguns contrastes inteligentes são elaborados como no caso dos encontros de Moraldo com Guido, um jovem de treze anos que já trabalha na estação ferroviária. Moraldo, como seu próprio nome indica, é o único que carrega a moralidade consigo e se encontra perturbado pela completa inércia de sua vida embora acabe em outra tentativa escapistas para resolver seus problemas.
Mesmo que haja cinco personagens para trabalhar, Fellini dedica muito do tempo da obra em cima de Fausto e Sandra, ou sobre como Fausto negligencia sua família por ser um completo mulherengo. Apesar de ser uma situação clichê muito explorada pelo Cinema como um todo, há alguns finos detalhes que o diretor elabora com perfeição como durante a epifania do personagem ou no tratamento controlador hipócrita que Fausto aplica em Sandra, já que claramente ela é uma prisioneira das vaidades do marido que proíbe qualquer luxo que ela possa desfrutar: seja uma sessão tranquila no cinema ou um mero sanduíche.
A estética de Fellini também estava germinando com este que era apenas o seu segundo longa solo na direção. Apreciador da linguagem clássica, nota-se refinamento nas composições, incluindo algumas muito belas que capturam a beleza mundana da vida como quando mostra um deficiente mental acariciando uma estátua de um anjo. A narração over se faz presente e, assim como em outros filmes neorrealistas, peca por explicar o longa ou em descrever até mesmo a ação visível aos olhos.
Ainda assim, confere um toque moderno bastante apreciado por conseguir equilibrar bem a melancolia do drama com a galhofa do humor. O que mais chama a atenção na técnica do então jovem diretor acontece logo no começo da obra, quando ele usa a câmera subjetiva para ilustrar o mal-estar de Sandra durante uma festa. Com direito a quebra da quarta parede, o cineasta preserva a encenação do desmaio com esse mesmo plano, criando algo poético e surpreendente.
A inventividade só volta a surgir com o encerramento emocionante do longa no qual Fellini realiza pequenos travellings para simular o olhar do adeus de um personagem que desiste da vida provinciana que levava com seus amigos.
O Custo do Crescer
Os Boas Vidas nos ajuda a lembrar como a História tende a se repetir, apesar de ser esquecida a todo momento. Com alardes momentâneos sobre a dificuldade que a juventude contemporânea possui em se encontrar entre diversos prazeres e obrigações, Fellini eternizou em uma ótima obra de arte que isso já acontecia em 1953 e que também já aconteceu antes por diversas vezes. Neste conto moral inusitado, recebemos o conselho de um artista que experimentou o pior e o melhor até encontrar o domínio pleno do ser ou não ser.
Os Boas Vidas (I Vitelloni, Itália – 1953)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano
Elenco: Franco Interlenghi, Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Leopoldo Trieste, Riccardo Fellini, Leonora Ruffo
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 107 minutos