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Crítica | Sem Fôlego – Haynes e a infância

É fabulosa a maneira como Todd Haynes consegue manter-se fiel à coluna vertebral do seu cinema mesmo com histórias que superficialmente nada têm a ver. Essa temática, que me parece bem sintetizada na expressão “o corpo marginalizado” – seja em relação a um Outro (Veneno, Velvet Goldmine, Longe do Paraíso, Carol) ou ao próprio Eu (Mal do Século e Não Estou Lá) – recebe em Sem Fôlego um tratamento diferente: uma narrativa infantil. Mas afinal, o que é ser infantil?

No posicionamento de alguns cineastas, talvez seja visualizar uma pureza essencial e encarar o cinema como quem se suja, chuta uma bola, corre e se esconde, sempre disposto a seguir novas regras e recomeçar. É o argumento dos defensores de Paul W. S. Anderson e é o que torna algumas obras de Takashi Miike, das irmãs Wachowski e Tony Scott, por exemplo, experiências tão excitantes – o que nas mãos de um tecnocrata como Nolan não o faz sair do lugar. E não há aí qualquer desrespeito. Haynes, por sua vez, traz esse sentimento carregado de nostalgia, em um interessante jogo de reflexos convergentes.

Não poderia ser mais feliz a escolha do título, tanto no original como na tradução. Aqui, o cineasta dá tanto importância ao wonder (o maravilhamento), como ao struck (o golpe, o choque); assim como ficar sem fôlego pode denotar tanto uma surpresa positiva como o enclausuramento. Com o perdão da obviedade, mas já vale mais do que o travesseirinho “reconfortante” da nostalgia artificial em, mais recentemente, Stranger Things e It: A Coisa.

Este detalhe é desdobrado no roteiro – baseado no livro de Brian Selznick, autor de A invenção de Hugo Cabret – e, naturalmente, na forma cinematográfica. Ao partir de um simples jogo de espelhos entre histórias que ocorrem durante duas épocas do século XX, em duas fases diferentes do cinema, acompanhamos duas crianças (Oakes Fegley e Millicent Simmonds) em busca de seus lugares no mundo. Seus corpos semelhantemente danificados com a perda auditiva (um de nascença, outro por ocasião) são tratados, até mesmo por uma bravura espontânea das personagens, sem vitimismo, assim como sem mérito. Aí, inclusive, está uma das grande qualidades de Haynes: um olhar inocente para o corpo, igualitário, conciliador; a diferença é sempre um caminho alternativo, não uma rua sem saída.

Dessa maneira, Sem Fôlego pode tomar proporções de uma crítica à construção de um passado mítico, no qual no passado se encontra a salvação. Para Haynes, diretor de vários filmes de época, o passado é uma inspiração. Passeando pelas ruas de Nova York nos anos 20 e nos anos 70, apesar do cinema clássico ser oposto à pornografia e a generosidade dos pedestres em uma época ao banditismo pulsante de outra, os hábitos mudam, mas algo permanece. Esse aspecto, natural ao cinema, é esse fôlego que impulsionava o cinema mudo, preto e branco do começo do século e é o mesmo, inabalável, que mantém-se na narrativa dos anos 70, ao modo de sua época.

Parece ser esse mesmo ímpeto que torna especial o uso das músicas de David Bowie, assim como o tratamento devido à simples frase “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para a estrelas” – dessas com tudo para ser banal –, da maneira como foi concebida por Oscar Wilde (aquele mesmo que queria ser o ídolo pop em Velvet Goldmine).

Sem Fôlego consegue conciliar uma história do cinema e de seus reflexos na cultura durante o século XX com a jornada das personagens, assoladas por uma deficiência comum e pela orfandade. Dado esse impulso à aventura, o golpe que leva ao maravilhamento, pode cada momento do filme exalar a magia de uma iniciação, de um aprendizado. Seja nas constantes e intrigantes leituras de papéis  – a escrita como passagem do instinto pela razão, como em uma cena com o garoto negro (Jaden Michael) que se aproxima do protagonista masculino –, seja na alegria de descobrir algo perdido no tempo ou no prazer de fixar o destino humano (de outros, mas também do próprio artista) em uma obra… Enfim, no contexto de um mar de incertezas e bandeiras hasteadas, Haynes retoma a urgência sob o signo de uma visão nova, em formação.

Sem Fôlego (Wonderstruck, EUA – 2017)

Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick
Elenco: Oakes Fegley, Julianne Moore, Michelle Williams, Millicent Simmonds, Julianne Moore, Cory Michael Smith, James Urbaniak, Damian Young
Gênero: Drama
Duração: 116 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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