Milagres existem.
Se Seven: Os Sete Crimes Capitais é o clássico que é hoje, certamente foi por alguma manobra milagrosa do destino. O fato é que seria apenas mais um filmão de mistério da Warner de 1995. Não havia os nomes de David Fincher, Brad Pitt, Morgan Freeman ou Gwyneth Paltrow no elenco. Na verdade, seriam atores um tanto quanto cartunescos como Sylvester Stallone, Val Kilmer e Christina Applegate – só Al Pacino salvava do elenco que os produtores queriam. Ou dirigido por Guillermo Del Toro? Algo bem estranho.
Quando Andrew Kevin Walker, o roteirista do filme, terminou o texto e vendeu para a Warner, também encontrou oposição de alguns produtores em respeito ao final da obra. Simplesmente não havia a coragem necessária para emplacar algo tão sádico, depressivo e sombrio. As opções eram totalmente ridículas apelando até mesmo para substituir certas cabeças por a de cachorros.
Então, o que aconteceu para que Se7en se tornasse o clássico fenomenal que é hoje? Como disse, um milagre. Por ironia do destino, a Warner acabou enviando o texto original de Walker para David Fincher no lugar do roteiro corrigido. Pode parecer loucura, mas Fincher já tenha poder o suficiente para demandar algumas coisas.
Depois da terrível experiência com a Fox em Alien³, Fincher tinha jurado nunca mais dirigir um filme na vida dele. Mas isso mudou quando se apaixonou perdidamente pelo texto magnético do roteiro. E era justamente o original que ele queria contar no seu filme. Para entender o motivo da Warner não ter se oposto é bem simples: Fincher era Mozart.
O diretor tornou a produtora publicitária que trabalhava em uma das maiores da indústria em questão de poucos anos e justamente por causa de seu talento em como trabalhar espetacularmente bem o sentimento e sentidos que uma peça visual precisa provocar no espectador. Já muito rico e famoso, Fincher não perderia nada recusando o filme, mas a Warner pode perder a prospecção de um contrato com um gênio.
A coisa ficou melhor com a chegada de Fincher no projeto que finalmente realizou o casting que queria. Com enorme vontade para realizar o filme, não deu outro resultado: ele finalmente cravaria sua primeira obra-prima nos cinemas. Mesmo que Se7en não tenha sido tão bem recebido na época (nunca vou entender o motivo), não demorou nada para que fosse considerado um dos filmes mais influentes e precisos do cinema depois da Era de Ouro hollywoodiana dos anos 1970.
A Importância da Mensagem
Sei que é difícil, mas se alguém ainda não assistiu a Se7en recomendo imediatamente que vá assistir. É evidente que trabalharei a análise com spoilers, pois é assim que se crítica um filme fenomenal como esse. E como afirmei, saber das viradas e da cadência perfeita do roteiro antes de assistir ao filme, com certeza matará sua experiência.
Se7en, possivelmente, é o filme que mais me impactou na vida. Logo, a experiência única da primeira visita é inesquecível, mas nunca, com toda a certeza, é replicada do mesmo modo. Se7en é o filme perfeito na para se assistir pela primeira vez. A narrativa que Andrew Walker traz parte de um alicerce clichê para trazer à tona um dos planos de serial killers mais originais da História do Cinema.
Aqui, temos o veterano detetive Somerset (Morgan Freeman) em sua última semana de serviço antes de se aposentar da força policial de uma metrópole sem nome. Para substituí-lo, um novato esquentadinho, detetive Mills (Brad Pitt), surge no cenário. Rapidamente, a animosidade fica clara, mas tudo piora quando os dois são obrigados a trabalhar em um caso monstruoso envolvendo assassinatos punitivos inspirados nos sete pecados capitais: Gula, Avareza, Preguiça, Luxúria, Orgulho, Inveja e Ira.
Um dos traços mais bonitos de Se7en é a confiança mútua entre roteirista e diretor. Somerset praticamente é todo desenvolvido através do contraste de sequência que estabelecem sua rotina. Ou seja, é algo totalmente focado na imagem. Porém, Fincher também sabe fazer maravilhas nos diálogos voltados a exposição do personagem.
Walker se vale do contraste mais clássico do cinema noir e policial: o velho amargurado e racional vs. o novato deslumbrado emocional que tem fé no sistema. Praticamente esse é o alicerce textual de Somerset e Miller. O roteirista tem a perspicácia de tornar esse contraste em uma lenga-lenga dramática cheia de conversas intelectuais. Como todo bom criador, sabe que o foco do filme não é esse, mas sim a jornada entre muitos assassinatos desumanos.
O primeiro ato da obra é focado justamente em colocar os dois protagonistas nos eixos e se tornarem parceiros trabalhando juntos para resolver as peças do quebra-cabeça doentio que estão jogando. É particularmente genial tanto Walker e Fincher trabalharem em uma sequência envolvendo a abordagem dos dois sobre o modus operandi do psicopata.
Enquanto Somerset rapidamente saca que o psicopata cometerá mais cinco assassinatos para concluir sua “obra” e logo parte para fazer uma coletânea de referência bibliográficas que conversem com os sete pecados, Mills passa a noite em claro, sem saída e sem dar atenção a sua esposa, Tracy (Gwyneth Paltrow), se debruçando sobre as fotos procurando alguma pista despercebida.
Se7en tem um roteiro que traz o contexto psicológico dos personagens muito adiante. Logo, se pensarmos de volta na narrativa, veremos alguns detalhes escondidos sobre as motivações de cada um. Essa cena, apesar de belíssima, é bastante cruel. Somerset apenas ajuda Mills para se livrar do caso e Mills, por ser novato e imprudente, tenta mostrar serviço a todo tempo sendo negligente para com sua família.
Pior ainda é notar que nem com a ajuda de Somerset, Mills consegue compreender o que está em jogo, revelando sua imaturidade intelectual e emocional para lidar com um caso desses. Dentre todas as vítimas do filme, Mills é potencialmente a mais frágil delas.
É preciso ir no cerne da filosofia do filme para compreender isso. E essa filosofia é acompanhada pelo sistema que cerca Mills, representado pelo chefe da delegacia, Somerset e John Doe (Kevin Spacey). De certa forma, a mensagem que persiste é: o mundo é um lugar depravado e doente, completamente sem solução. Em apenas uma cena, descobrimos que Mills não vê a cidade dessa forma – ele sai do interior para provar um ponto. Ele é um idealista que se recusa a acreditar que deve parar de se importar com os outros e viver sua própria vida.
Ligando um ponto a outro, logo fica claro que Mills veio para a metrópole para tentar melhorar a situação decrépita e fria daquela sociedade. Ele e Tracy destoam completamente dos personagens que os cercam, sempre quietos, evitando problemas. Também é revelado que Tracy não queria mudar para lá. Temos todas as cartas na mesa para transformar Mills e corrompê-lo até o osso.
Porém, pela firme resistência do protagonista, ele é difícil de quebrar. Somente no impactante clímax e na descoberta do conteúdo da caixa que Mills finalmente desmorona. Depois de perder sucessivas vezes, ser um fracasso como detetive, ter que lidar que só está vivo porque o alvo de sua caçada o deixou viver, Mills se torna um criminoso, um pecado capital, um cidadão da metrópole, sujo, deprimido e fracassado. É justamente por isso que o texto de Walker é brilhante. Quase nada disso é exposto nos diálogos, mas sugerido pelo decorrer das cenas e da ótima atuação de Brad Pitt.
O bem simplesmente não pode existir em um mundo doente e condenado à destruição. Ou será que pode?
A Hipnose Mentirosa
A essência do trato com Somerset é ganhar novamente um contraste no fim do desenvolvimento do seu personagem. Um perfeito jogo de opostos com Mills tanto no começo quanto no fim. Somerset é um homem já calcificado pelas monstruosidades que viu na vida e ao longo de sua carreira. Parou de se importar, nunca quis construir uma família, mora sozinho em apartamento meticulosamente organizado.
Seu objetivo inicial é somente se aposentar e deixar o mundo queimar em seu próprio tempo devido a degeneração da sociedade. Porém, assim como Mills sabe, o público sente que por trás dos olhos nublados e tristes de Somerset, há alguém vivo que não aceita a condição auto imposta por si.
O simples desenvolvimento do personagem é pautado por um elemento principal: o metrônomo. O instrumento é usado para manter padrões, um ritmo e sintonia específica. Para o protagonista, ele também estabelece esse padrão, esse pensamento condicionado e a relação morta com a cidade e os outros.
Após Tracy conseguir fazer que os dois se entendam no jantar e oferecer a primeira sensação alegre em anos para Somerset, a jornada, inerentemente, aproxima os dois detetives passam a virar amigos e compartilhar segredos. Quando esse desconforto de ter redescoberto a alegria da profissão e de viver, ele fica perturbado, afinal o padrão foi quebrado, assim como sua autohipnose. Antes de dormir, agora já quase transformado, em um ato súbito de raiva, destrói o metrônomo com fúria.
O que torna essa mudança ainda mais genial, é que Somerset também perde e fracassa no final. Logo, não há redenção para nenhum personagem no filme. Walker testa o espectador ao mostrar o seguinte: antes de John Doe se apresentar na delegacia, o antigo detetive diz para Mills que ficará no caso até ele terminar, não importa o tempo que leve.
É um momento otimista, indicando algum triunfo, até que Walker subverte totalmente as expectativas ao jogar o psicopata se entregando logo ali na delegacia, mantendo a superioridade psicológica de seu jogo. Já no deserto, Somerset e Mills perdem com a caixa. Mills perde a liberdade e Somerset perde seus amigos.
O final é bastante ambíguo e aberto para várias interpretações, mas é notório que, a partir dessas pequenas catarses que Somerset sofre ao longo da narrativa, ele desiste da aposentadoria. Ele mesmo fala que concorda com a segunda parte da frase de Hemingway: Vale a pena lutar pelo mundo. O descrente agora acredita. O indiferente agora se importa. O ocioso se torna ativo. É um final belo com uma ponta de esperança.
Mas para chegar até esse desfecho agridoce, é preciso caminhar através dos círculos do Inferno.
Jornada Diabólica
O ponto mais elogiado de Se7en geralmente é o decorrer da investigação. Walker capricha ao máximo para gerar um mistério envolvente, além de ter estudado a fundo a mente de um psicopata criminoso. As escolhas dos alvos para representar todos os pecados capitais funcionam e são até mesmo explicadas pelo assassino ao fim do filme – com notórias falhas inseridas propositalmente, afinal nada justifica tirar a vida de inocentes.
Nitidamente, há um sólido padrão bem cadenciado entre a descoberta dos corpos e os novos rumos da investigação oferecendo um pouco do trabalho de detetive dos protagonistas. Com uma reviravolta excelente a respeito da terceira vítima e sobre uma participação inusitada do psicopata na cena do crime, Walker parecer perder brevemente o rumo a tal ponto que ele recorre a uma conveniência tão feia que parece não fazer parte do filme que estamos assistindo.
O fato dos detetives encontrarem o assassino justamente por uma lista de leitura da biblioteca pública é bastante forçado, além do próprio roteirista mostrar posteriormente que John Doe possui uma boa quantia de dinheiro – logo, é perfeitamente possível Doe comprar os livros, simplesmente não combina com a mente de um gênio do crime extremamente organizado.
Tanto que a partir dessa marca, o ritmo do roteiro fica mais acelerado exibindo o quinto assassinato não mais do que uns poucos minutos para encaminhar o terceiro ato com a rendição de Doe, outra sacada espetacular do texto.
Como esse ato é muito concentrado em diálogos, temos um refinamento para a conversa final do psicopata com os detetives. Novamente, Walker aposta nos contrastes entre eles, no eterno quente e frio que está em jogo.
Por fim, é um mistério exemplar de tão bem construído, inserindo descobertas que dialogam ativamente com diversos trechos anteriores do filme.
A Aurora de um Autor
Se7en deve marcar a primeira vez que Fincher experimentou alguma liberdade criativa para contar a história que queria dentro de um filme de estúdio. Com uma restrição muito menos presente, o diretor conseguiu conceber uma estética noir reformulada para uma linguagem verdadeiramente atemporal.
É difícil acreditar que Se7en tenha quase 23 anos de tão imperceptível que é o esquema de sua linguagem. Nota-se, evidentemente, que o olhar de Fincher é mesmo de um publicitário/diretor de videoclipes. Não digo isso de forma negativa, pois esta caraterística é a que mais marca o cinema que ele se propõe a fazer de modo exemplar.
Apesar de isso já existir em doses menores em Alien³, é aqui que a assinatura visual de Fincher finalmente desabrocha: a câmera mímica. De formação, ele entende que a audiência não deve tirar os olhos do produto, mas que ela nunca deve perceber que tem o olhar condicionado para tal.
Então como fazer isso? Simples, movimento. A encenação de Fincher é tão firme quanto a de Hitchcock para a movimentação das peças principais do plano. E assim que as pessoas andam, a câmera também se movimenta, como se estivesse grudada por uma fina cola invisível. Se elas param, o mesmo acontece. Se elas se movem minimamente, o plano também é reajustado como se tivesse respirado.
Logo, personagem e imagem tornam-se um ser, assim como o nosso psicológico gera empatia pelos mocinhos da história que vemos acontecer. É algo minucioso de precisão matemática que também colabora para a fama dele repetir diversas vezes a mesmíssima tomada nas gravações. Tudo tem que ser perfeito para nós nunca notemos o aparato cinematográfico. É a mágica da câmera invisível.
Essa é sua principal assinatura que comanda a decupagem inteira desse filme e de outras diversas obras – mesmo que Clube da Luta seja visualmente mais imaginativo. Ferramente ligado à elegância do cinema clássico e principalmente do cinema noir que ele visa homenagear, a câmera raramente sai do tripé. É a linguagem clássica em sua glória e perfeição com movimentos panorâmicos, tilts e travellings, além de raras participações de gruas.
Mesmo que em todos os diálogos tenhamos esses ajustes nos enquadramentos seguindo a proposta da movimentação mimética, todos os enquadramentos que Fincher realiza são assombrosamente equilibrados com diversos pontos de referência visual para agradar aos olhos. Logo, é quase impossível ficar cansado ao ver filmes dele, justamente por essa precisão fascinante: sempre há coisas interessantes para olhar.
Justamente por isso que Fincher se torna um cineasta completo: ele valoriza todas as áreas da produção. Aqui, vale o elogio ferrenho ao design de produção genial que sabe separar os ambientes de forma perfeita: a casa nojenta, suja e cheia de gordura do obeso, o escritório minimalista do defensor público, o apartamento abandonado cheio de aromatizadores para ninguém sentir o cheiro pútrido do homem amarrado na cama, do puteiro/boate infernal do subterrâneo, do quarto branco que emana produtos ricos em contraste ferrenho com o vermelho do sangue da moça mutilada, da biblioteca vitoriana que lembra tempos de Sherlock Holmes, da casa cinzenta de Somerset e, por fim, no apartamento ainda sem identidade, mas aconchegante de Mills – a cidade nunca daria chance dele se estabelecer ali, por isso o foco nas caixas de mudança.
Curioso que a fotografia do iraniano Darius Khondji nunca omite esses detalhes, mas torna eles uma parte orgânica do cenário pelo jogo de iluminação que acabaria definindo outra assinatura visual de David Fincher até hoje: luzes baixas, filme muito sensível para captar a iluminação enquanto sustenta a atmosfera sombria dos cenários, contraste relativamente elevado, e predileção por fontes artificiais de luz para criar efeitos barrocos.
Isso é o que define a fotografia de Se7en, capaz de criar imagens verdadeiramente espetaculares como a de um reflexo sombrio em uma poça d’água ou a contraluz de um homem correndo por sua vida em um salão abandonado. Fincher e seu cinematógrafo conseguem manufaturar todos os sentimentos sinestésicos pela acuidade visual desses espaços malditos que atravessamos.
É impossível não sentir um desconforto sobrenatural quando Somerset e Mills entram no apartamento de John Doe que mais se assemelha a um túnel que daria diretamente para o Inferno. O lugar não recebe luz natural e as paredes são pintadas de preto, elaborando um contraste diabólico com as luzes vermelhas espalhadas pelo local – incluindo a de uma cruz de neon. A
Aliás, é interessante notar que, assim como em outras cenas, essa da descoberta do apartamento traz a relação mais pura da equação mimética da encenação e câmera. Nós só vemos detalhes do apartamento, das pistas e dos suvenires de Doe quando os personagens se aproximam e se deparam enfaticamente naquilo. É uma troca de olhares natural entre ficção e realidade. Sublime.
Mas todos nós sabemos que a masterclass de David Fincher que cunha a obra-prima que Se7en é ocorre no terceiro ato. Primeiro, pela atuação monstruosa de Kevin Spacey como John Doe, literalmente um João Ninguém. Depois, pela sacada memorável do uso da chuva. Reparem que durante toda a investigação, a cidade é castigada por uma chuva intensa e ininterrupta, dificultando ainda mais a percepção do mistério, como se uma força sobrenatural impedisse os protagonistas de ver a verdade.
Só que a verdade vem à tona quando John Doe se entrega para a polícia, ali, enfim, a chuva para e o sol brilha também indicando que o período de opressão do antagonista finalmente se encerrou… na cidade. O terceiro ato concentra a maior parte da antecipação e build up da trama. Pegar o vilão não é o fim aqui.
Durante todo o vil e ótimo diálogo entre os detetives e o psicopata, Fincher tem a bela sacada de sempre manter as duas partes separadas pelas grades da viatura. Porém, se for reparar minuciosamente, vai notar que a boca de John Doe é perfeitamente enquadrada em um dos buracos da grade. Sua maior arma ali é sua lábia e as palavras machucam. Mas o que vai, volta e Doe também perde as estribeiras quando Somerset chama suas vítimas de “inocentes”.
Quando enfim nos aproximamos do destino final, há um plano geral sublime enquadrando o carro bem no meio de torres de alta tensão. Primeiro, nota-se a teia provocada pela cacofonia visual das ferragens e dos fios. Sentimos que os dois foram conduzidos para uma armadilha perfeita. Depois, com um olhar mais cuidadoso, é possível notar o número 7 se repetindo diversas vezes no meio do caos das ferragens – em particular, no canto esquerdo da tela, a iluminação natural até mesmo destaca a forma.
Mesmo com a intrusiva participação das imagens do ponto de vista do helicóptero, vemos novamente a genialidade de Fincher culminar criativamente. Quando Somerset abre a caixa, ele logo se assusta e é jogado para trás. Visualmente isso é traduzido por um corte seco e rápido da montagem – a mesma técnica é usada quando Mills encontra um balde de vômito na casa da primeira vítima.
Quando a câmera retorna para Mills e Doe, Fincher frisa que a atenção do detetive não está no psicopata e sim no conteúdo da caixa (um grande erro de conduta). Nessa imagem, Doe aparece totalmente desfocado pela última vez. Somerset retorna correndo para Mills, tentando evitar que ele assassine Doe temendo que o psicopata domine a cabeça do parceiro.
Aqui, finalmente a câmera perde a estabilidade, assim como toda a situação se torna instável e os dois viram reféns do psicopata. O uso do recurso da shaky cam é muito mais inteligente do que utilizado na perseguição a Doe na metade do filme – Fincher queria homenagear os seriados policias da época, além de dinamizar a sequência. Repare que quando o enquadramento está centrado em Doe, a câmera se torna estável novamente, mas volta a tremer e chacoalhar quando está focada nos detetives.
Ao mesmo tempo, temos o lance mais genial da fotografia e da direção: um plano brilhantemente construído cria uma aura iluminada para Doe, em um sadismo visual intenso equiparando o personagem a uma santidade que finalmente concluiu seus trabalhos e está próximo de ser encaminhado para os céus.
Quando Mills enfim descobre a verdade da gravidez de Tracy – é particularmente genial que a última cena que a personagem aparece seja completamente banal nunca indicando que será assassinada posteriormente, cria-se outro recurso brilhante. O impasse está estabelecido e logo vemos Mills lutando para não sucumbir ao ódio, vemos o medo no rosto de Somerset e também o sorriso cheio de malícia de Doe – enquanto isso, a trilha musical de Howard Shore explode em padrões monocórdicos.
A montagem intercala esses três rostos e Fincher homenageia com precisão os western spaghetti, em particular Três Homens em Conflito de Sergio Leone, exatamente a cena clímax do filme durante um impasse que culminará em um sangrento tiroteio. É assim que se faz belas homenagens para filmes clássicos, aliás.
Inserindo outra característica pioneira que seria inserida mais enfaticamente em Clube da Luta, Fincher usa um recurso visual para finalmente por fim ao impasse. O detetive só mata o psicopata quando surge um flash com a imagem de Tracy. Por uma breve sinapse traidora, ele se lembra dos momentos que nunca mais terá com sua esposa, e cede a carnificina da vingança – que, obviamente, não é plena. Mills se rende ao seu temperamento e não se transforma do detetive racional que uma narrativa clássica traria.
Também nessa questão, de Mills se tornar Ira, Fincher entrega isso em um foreshadowing brilhante. Para ver isso, repare na lousa que Somerset apresenta a disposição dos pecados. O número 5 é justamente a Ira. Quando Somerset visita Mills, o apartamento é justamente o de número 5A. Sutil, simples e brilhante.
Não devemos esquecer, também, da abertura que revolucionou os créditos iniciais como há anos não se via. As imagens turbulentas mostram John Doe planejando meticulosamente seus alvos e assassinatos, além de trazer a principal razão de nunca encontrarem suas impressões digitais. Para construir o efeito desejado, do desconforto visual, Fincher fez de tudo com a câmera a fim de tremer a película, mexer com o diafragma e obturador e até experimentar com instrumentos da revelação fotoquímica. Não é à toa que a abertura é o que é até hoje.
I Can See Clearly Now
Não tem como negar. Muitos encaram Se7en como o filme definitivo de David Fincher até hoje. Como gosto muito da maioria de suas obras, é difícil afirmar algo assim, mas certamente posso dizer que é um dos meus dez filmes favoritos de todos os tempos. Me encanta a escrita tão esperta de uma história de proposta relativamente simples, com viradas encaixadas de modo perfeito.
Para quem leu o texto até aqui, já sabe que o filme é uma obra completa para proporcionar a melhor experiência de tensão possível. Se7en é um milagre da sétima arte e permanecerá assim por eras. Assustando e chocando todos aqueles afortunados de conferirem a magistral obra-prima do crime.
Nasce um autor cinematográfico, nasce um clássico digno da era de ouro hollywoodiana.
Se7en: Os Sete Crimes Capitais (Se7en, EUA – 1995)
Direção: David Fincher
Roteiro: Andrew Kevin Walker
Elenco: Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow, Kevin Spacey, John Cassini, Daniel Zacapa
Gênero: Crime, Drama, Suspense
Duração: 127 min