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Crítica | The Jinx: A Vida e Mortes de Robert Durst

A primeira reação que nós sentimos ao terminar de ver The Jinx é extremo desconforto. Uma repulsa que mexe com suas entranhas como se acabasse de levar um soco oportuno. É traumático. Depois, surge uma urgência para escrever sobre. A minha sorte é que pude acalmar meus demônios já que não havia uma crítica para esta obra aqui no site.

Após o “sucesso” de seu filme medíocre, Entre Segredos e Mentiras, baseado nos casos de violência que cercam Robert Durst, o diretor Andrew Jarecki recebeu um telefonema de ninguém menos que Robert Durst. A proposta era simples, Durst queria dar um depoimento em vídeo sobre sua versão dos acontecimentos da história. Esclarecer de uma vez por todas que ele não é e nunca foi um assassino em série. Completamente extasiado, Jarecki aceitou na hora.

Em algumas ocasiões nas artes, parece que o universo conspira para lhe tornar um grande realizador. Elaborar, de fato, sua obra máxima. E afirmo, com todas as propriedades, que este foi o caso de Jarecki. Tornou-se imortal pelo imponderável. De um filme regular pulou para um dos melhores documentários que já vi em minha vida, mas ainda tenho algumas ressalvas sobre o trabalho dele aqui.

Jarecki segue o bê a bá de direção de documentário para desenvolver a tenebrosa história de Robert Durst. Ou seja, temos encenações de segmentos importantes da história, entrevistas posadas e muito material de arquivo. Apenas foge do padrão ao optar por não usar um narrador. Aqui, são os entrevistados que contam as histórias e os relatos são tão fortes e emocionantes que o uso da técnica é completamente desnecessário.

Ao contrário de muitos diretores de documentário, Jarecki faz as perguntas certas. As perguntas que incomodam. Assim toda a vastidão de personagem torna-se mais complexa, mais humanas. O maior rol de entrevistados envolve o caso do desaparecimento da primeira esposa de Robert Durst, Kathleen Durst.

Nisso, como todos os grandes documentaristas fazem em casos que envolvem passados conturbados, Jarecki cutuca os piores fantasmas dessas pessoas permeando o tom triste de um luto que ronda a família da Kathleen. Seja pelos irmãos, pela mãe, pelos sobrinhos ou pelas amigas da desaparecida. Alguns sentem ódio de Robert, outros como a mãe de Kathleen, sentem pena e tristeza. Entretanto, todos concordam que foi Durst quem matou Kathleen.

E de fato, o documentário é muito mais forte enquanto se concentra em apresentar, detalhadamente, todo o caso do desaparecimento da mulher. Jarecki então desenvolve uma linha investigativa seguindo os passos dos detetives que ficaram encarregados na época mesclando as entrevistas de Durst, dos policiais e dos familiares. Aliás, durante os capítulos, às vezes, Jarecki trabalha com uma narrativa não-linear transitando entre os assassinatos de Robert. Porém, é tudo tão bem encaixado que só agrega positivamente a obra, além de contribuir para o suspense caso o espectador não conheça a história.

É interessante como Jarecki não se impõe para manipular a narrativa sob um ponto de vista. Isso já é feito pelos relatos dos entrevistados. O melhor exemplo que posso dar é no conflito entre dois policiais que foram encarregados de casos diferentes. Enquanto um defende Durst para salvar sua própria pele e ficar em paz com sua consciência vide a completa inércia que teve no caso de Kathleen, outro, responsável pela captura de Durst após ele ter matado Morris Black, se sente impotente por conta do fracasso no julgamento de Durst em Galveston no qual ele foi declarado inocente.

No momento oportuno, os dois são confrontados com uma prova que Jarecki obteve durante a produção do documentário. A reação de cada um é impagável. Entretanto, ainda estamos falando de entrevistados normais. O choque verdadeiro acontece quando conhecemos Robert Durst e sua voz cavernosa.

Com pouca observação, é perfeitamente possível encarar Durst como um velhinho qualquer, mas assim que o homem se põe a falar, a coisa desanda totalmente: o personagem é uma figura perturbada. Ao decorrer das horas de entrevistas com Durst, notamos que ele é cheio de tiques nervosos, toda a sua linguagem corporal é refletida por gestos de alguém que tenta se defender ou se justificar mesmo quando não há ninguém contestando o que ele diz, até mesmo a pronuncia de suas falas dão a impressão de que nem ele acredita no que conta para nós, afinal todas as desculpas dele são esfarrapadas. Além da frieza que ele apresenta para discutir sobre o assunto –enquanto todos os outros entrevistados oferecem depoimentos emocionados.

Há uma atmosfera de cinismo que ronda a figura de Durst. É absolutamente assustador, pois vendo as evidencias mostradas no documentário, não há a menor dúvida que o homem é um assassino.

Jarecki acerta em praticamente tudo na direção do doc. A construção e síntese narrativa são ótimas, o uso de material de arquivo suplementa as deficiências do material captado para o filme – as entrevistas da atual esposa de Durst e de seu irmão, Douglas. Já as encenações são um espetáculo a parte. Todas têm uma cinematografia belíssima digna de Cronenweth, o diretor de fotografia de David Fincher. Fora serem muito bem enquadradas e esteticamente estonteantes, Jarecki opta por utilizar o slow motion em todas elas. O efeito é simbólico. Gera a impressão de ressuscitar um passado há muito tempo esquecido, congelado. Ao reviver isso, naturalmente as coisas caminham lentamente, são memorias ressurgidas após serem suprimidas há décadas. Seguindo o hábito das encenações, o diretor nunca revela a face dos personagens sempre fazendo a fotografia ocultar os rostos por penumbras ou enquadrá-los de modo que evite a revelação.

O motivo disso é simples: como até então nunca havia sido provada a identidade do assassino, não havia rosto para mostrar. Já dos outros personagens, serve para agregar suspense na atmosfera macabra que ele conferiu a todas essas passagens. O resultado é brilhante e muito eficiente demonstrando que Jarecki aprendeu bastante desde Segredos e Mentiras onde não conseguia formular uma história que fosse ao menos bem amarrada.

Fora isso, é inesperada a mudança de formato a partir do cliffhanger do quarto capítulo. No capítulo seguinte já percebemos que ele larga um pouco a técnica clássica do documentário para ficar algo mais próximo do cinema verdade. Pela primeira vez, vemos Jarecki se tornar um personagem pronunciado, com seus próprios dramas e demônios, dentro dessa história.

Nisso, ele realiza alguns experimentos com Durst ao colocá-lo para passear em Manhattan afim de observar como as pessoas reagem à presença dele. Como esperado, poucas pessoas reconhecem o idoso bizarro passando batido na maioria dos olhos dos transeuntes. Depois disso, quando tentam retomar o contato com Durst para finalizar o filme com a segunda entrevista – essa, substancial pois haveria o confronto com a prova definitiva que colocaria Durst como culpado da suspeita de seu segundo assassinato.

Jarecki se transforma no objeto de estudo do filme, pois passa a reconhecer que Durst já desconfia que eles descobriram algo. Dentro do contexto da série, fica bem claro que quem ameaça a liberdade de Durst acaba morto. Logo, a iminência do risco de vida do autor é transparecida pela expressão amedrontada de Jarecki e refletida nas piadas dos cinegrafistas e produtores. Fora isso, o cineasta lida com a decepção em descobrir que Durst estava mentindo. Os dois tiveram uma conexão no filme. Um foi seduzido pelo outro na busca estranha por uma figura paterna. Também há o questionamento ético que Jarecki passa: ele foi justo com Durst? É justo trair e destruir alguém que colaborou com a obra que definiria a vida dos dois? Pode parecer absurdo e óbvio, mas estar na pele do cineasta deve ter sido difícil para tomar essas escolhas. As escolhas certas.

Para notar como a mudança de técnica é brusca, basta perceber a transformação da fotografia. Antes era completamente sofisticada e controlada para virar desleixada e apressada – a urgência de terminar o filme é explicita.

Fechando com chave de ouro, o mais improvável acontece. Em um dos mais raros casos da História da Televisão e do Cinema, a arte atinge a vida de modo integral. Após ser confrontado com a prova que a produção conseguiu e terminar a entrevista, Durst pede para ir ao banheiro. Sem se dar conta que o microfone de lapela ainda está ligado, Durst resmunga como um esquizofrênico enquanto lava as mãos – assim como Pôncio Pilatos. Enquanto balbucia frases amaldiçoando a equipe, o homem se trai. Ele confessa todos os assassinatos para si mesmo. E, consequentemente, para o mundo.

No campo do filme, conseguir uma revelação avassaladora dessas torna sua obra histórica na hora. Entretanto, mesmo impecável na maioria da obra, Jarecki falha em não explorar mais as memórias que tangem o relacionamento de Robert com seu pai, um homem tão desprezível quanto. Eu senti muito a falta dessa parte, pois o diretor se preocupa em estabelecer cuidadosamente a infância traumática de Durst. Na base do meu conhecimento barato de psicologia, Jarecki nos leva a crer que o cerne da violência de Durst com os outros tem origem nos eventos horríveis de sua infância.

Agora no extracampo, depois da grande repercussão internacional que o documentário teve, Durst foi preso nas vésperas do último capítulo – o que levou a audiência nas alturas, e aguarda julgamento – pena de morte. Porém, o caminho até isso parece ter sido tortuoso segundo as entrevistas da produção do filme com a imprensa. As três entrevistas e um artigo revelador do New York Times revelam que a equipe não estava colaborando o tanto que deveria com a polícia afim de guardar provas para o grand finale do seriado, incluindo o áudio comprometedor. Segundo o artigo, há uma diferença de dois anos entre a captação do áudio para a revelação do mesmo.

Como a equipe não se pronuncia sobre a linha temporal dos fatos que ocorreram dentro da produção do filme, fica difícil defender Jarecki e seus produtores. Torna tudo ainda mais tenebroso e complexo acerca da produção desse filme. Se levarmos em conta o artigo jornalístico, a ética de Jarecki é tão repugnante quanto a de Durst – hoje todos os envolvidos com o documentário não se pronunciam com a imprensa.

Um caso absolutamente inacreditável no qual o cineasta comete atos dúbios para favorecer, única e exclusivamente, sua obra e não pela justiça dos mortos. Afinal é muito improvável que ele fosse entregar o material a polícia anos antes do seriado estar pronto. Também não acredito na alegação de Jarecki que a equipe foi descobrir o áudio “acidentalmente” no processo de montagem, afinal, durante o seriado, temos um momento que Durst fica sozinho em uma sala e confessa que mentiu no tribunal de Galveston. Na hora, um membro da equipe o avisa sobre o microfone que estava gravando tudo.

Ou seja, ao tomar conhecimento desse hábito bizarro de Durst, é muito improvável que eles não tenham escutado o que ele havia dito no banheiro assim que o criminoso se despede da equipe. Assim como Durst, Jarecki é um homem que tem seu testemunho traído pela própria obra.

Entretanto, mesmo agora que sabemos que Durst de fato é um psicopata, pelo menos para mim, tentei acreditar que ele, homem de história tão desgraçada e triste, era uma pessoa inocente. O assassinato é um crime tão horroroso que preferimos não acreditar que tal cidadão tenha cometido uma atrocidade sem tamanhos como essa. Para a minha sorte, nunca tive que lidar com a dor de um assassinato, mas a partir de tantos documentários com relatos desse tipo, é impossível não se confraternizar com a dor de quem você nem conhece. A mente aceita o fato, o coração pesa, os olhos ardem e a respiração falha.

Talvez seja uma dessas forças invisíveis e imponderáveis que unem as pessoas contra o ódio, o medo e o terror.

O que testemunhamos é o efeito da senilidade de um homem. Também da falta de cautela constante de Robert. O assassino é arrogante. Acha que é intocável por ter se livrado de todos os homicídios (conhecidos) que tinha cometido até então. No fim, é traido pela sua grande boca e enorme vaidade.

Com The Jinx, enfim, o tiro de Robert Durst saiu pela culatra.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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