Crítica | Dear White People: 2ª Temporada - A Irônica Acidez da Verdade
Dear White People é, sem sombra de dúvida, uma das séries mais importantes da atualidade. Na crítica sobre a primeira temporada (que você confere aqui), falamos sobre todo o respaldo social de grande valia para compreendermos os conflitos e as discussões acerca de raça, escravidão, racismo estrutural, privilégio branco e inúmeros outros temas tratados de uma forma tão ácida e verdadeiramente irônica que tentar refutar quaisquer argumentos utilizados pelos personagens é cair no ridículo e no desnecessário - afinal, se há um grupo de pessoas que sabe o que é sofrer preconceito por causa da cor da pele, são os negros. E, como podemos imaginar, cada um dos arquétipos apresentados nessa soberba dramédia não tem papas na língua e jogará na cara tudo o que fazemos de errado - ainda que sem perceber.
No mais novo ano que se inicia na Universidade Winchester, retornamos para os incrivelmente bem construídos dormitórios da Armstrong-Parker, abreviada para AP e que, como podemos nos recordar, funciona como um movimento de resistência da comunidade negra e de sua constante luta para entrar nos mesmos espaços ocupados majoritariamente pelos brancos. Diferente da temporada predecessora, em que Sam (Logan Browning) nos apresenta ao seu programa radiofônico Cara Gente Branca - que empresta o nome para a série - e utiliza isso para desmascarar grande parte dos problemas naquela famigerada instituição acadêmica, o aplaudível elenco retorna enfrentando problemas angustiantes e de âmbito tanto pessoal quanto social. A começar que nossa protagonista passa a enfrentar ataques diretos de um hater-troll intitulado AltIvy através das redes sociais, que insiste em diminuir a sua luta com comentários ofensivos e de cunho extremamente fascista.
O problema é que, o que começou como consequência esperada do breakdown de Troy (Brandon P. Bell) na season finale passada, tornou-se uma crescente ideologia de resposta ao movimento negro que ganhou inúmeros seguidores e fez cada um dos nossos queridos personagens ceder à isca plantada. O perfil em questão conseguiu milhares de seguidores em tempo recorde, disseminando um discurso de ódio que atinge proporções assustadores ao longo dos dez novos episódios e leva os protagonistas ao auge da loucura e do ódio coletivo - e tais sentimentos são usados até mesmo contra eles mesmos para desprezá-los ainda mais. O pano de fundo até mesmo explora, retornando com a montagem característica da série: a mescla entre passado e presente, a preferência pela simetria propositalmente excessiva, os plongées e contra-plongées quase absolutos, entre outros aspectos.
De qualquer modo, toda a estrutura da série segue um padrão de ostentação pura ao mesmo tempo em que entra em discordância com os personagens que apresenta e as histórias que resolve contar. Logo, é aplaudível o modo como o time de diretores e roteiristas ganha espaço para ousar, desde o posicionamento de um narrador onisciente (Giancarlo Esposito) que ganha uma materialização própria com o final do último episódio, até a quebra da quarta parede que intertextualiza uma metalinguagem incrivelmente bem orquestrada. Isso não se restringe apenas a um protagonista, como visto por exemplo em House of Cards, mas estende-se para todos os outros. É como se, em uníssono, o grupo dissesse “olhe as barbaridades pelas quais eu passo. Veja como não fazemos drama”.
As subtramas dão espaço mais que o suficiente para trabalhar suas personas. Uma delas, além de Sam, recebe uma atenção em dobro - e insurge na construção de Lionel (DeRon Horton). Aqui, o aspirante à jornalista sai de sua concha de introspecção para ganhar uma delineação forte, passível até mesmo de surpresa por grande parte do público, à medida que ganha voz no The Independent ao escrever um artigo sobre o financiamento e a corroboração da casa AP com empresas preconceituosas e mercenárias. Além disso, é divertido ver uma quebra em toda essa seriedade nas sequências em que abraça cada vez sua orientação sexual, procurando dispor-se dos meios necessários para “se enturmar” - e eventualmente encontrar um par romântico com o sedutor Wesley (Rudy Martinez que, ao lado de Horton, cria uma química fantástica).
Além do balanceamento entre tragédia e comédia que se apossa da série, o showrunner Justin Simien alcança sucesso ao adicionar alguns elementos de irreverência cênica, trabalhando os conceitos de trabalho filmado ao mesmo tempo em que cria pequenas obras de arte com a câmera. Desse modo, ele também consegue explorar outras vertentes narrativas, transitando entre as inúmeras construções imagéticas com o propósito que bem quiser -e não é à toa que nos primeiros episódios as críticas sociais também deem lugar a um mistério envolvendo anos de apagamento histórico dos negros, escravidão e sociedades secretas (e é aqui que a metalinguagem torna-se mais profunda e sagaz).
De fato o show se vale bastante de discursos progressistas para embasar a motivação de seus personagens. O embate entre uma classe subjugada por séculos de tortura e um extremismo exacerbado que até mesmo serve como reflexo de certos setores da sociedade contemporânea - assustadoramente mais do que deveria - chega a ser angustiante para o espectador e, caso tenha incomodado mais que o necessário, é porque atingiu o objetivo principal de levar à reflexão. Até mesmo os momentos de descontração partem de uma perspectiva ao qual a parcela “dominante” e privilegiada - homens heterossexuais brancos e de renda média-alta - não compreenderiam. Porque, como já dito inúmeras vezes, “cara gente branca: esta série não é sobre você”.
A segunda temporada de Dear White People vai muito além do que esperávamos e não se importa em criar uma atmosfera tensa para dizer exatamente o que tem que dizer. De modo indescritível, ela não satura os discursos políticos dos quais se vale e nem das ideologias que carrega - e abre margens para debates que realmente deveriam acontecer na vida real.
Dear White People – 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2018)
Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.
Crítica | Unbreakable Kimmy Schmidt - 4ª Temporada: Parte 1 - Quando Kimmy Finalmente Cresceu
Kimmy está de volta – e infelizmente para seu último ano. E sim, esta é uma notícia de grande infortúnio e dor, visto que Unbreakable Kimmy Schmidt chegou ao seu último ano na Netflix após quatro anos arrancando as mais irreverentes risadas de um crescente público. Apesar da triste notícia, a série criada por Robert Carlock e Tina Fey manteve-se em suas estruturas originais ao mesmo tempo em que expandiu a “mitologia” – se é que podemos chamar assim – acerca de cada um dos personagens principais: na verdade, o termo mitologia consegue até mesmo manter a dualidade de existência-inexistência desses tipos sociais que fazem referência às vertentes teatrais italianas conhecidas como commedia dell’arte, mas elevadas a um nível incomparável de absurdez.
Se pensávamos que Kimmy Schmidt (Ellie Kemper) havia mergulhado em um brusco coming-of-age após passar quinze anos enclausurada em um bunker, estávamos totalmente errado. É claro que, enfrentar uma Nova York da virada do século e não saber mais como é o mundo em que se vive é sempre um desafio, mas a nossa heroína apenas começara os seus grandes passos nas perigosas ruas da cidade que nunca dorme. Ainda que tenha evoluído psicologicamente e tenha compreendido alguns trejeitos para sobreviver na compulsoriedade cotidiana americana, é apenas nesta primeira parte do mais novo ano que ela compreende as responsabilidades de ser uma mulher adulta e todos os obstáculos que irá enfrentar – tudo mergulhado em uma crítica tão clara e tão ácida que chega a ser comicamente angustiante assistir a cada uma das cenas.
A protagonista, agora, faz parte de uma empresa de tecnologia cuja vaga conseguiu pelo carisma e pela indubitável inteligência emocional que sempre fez parte de si, até mesmo quando presa no bunker. Entretanto, ao contrário de se respaldar em traumas passados, ela olha para o futuro e não é assombrada diretamente pelas ações extremistas do Reverendo Richard Wayne (Jon Hamm, que faz uma pequena ponta nessa temporada); ela tem outras preocupações, inclusive manter uma nova rotina que nunca antes fizera parte de sua vida. Mas as coisas não são tão mágicas, quanto ela esperou, e ela acaba por cair em uma acusação de assédio sexual após demitir um dos funcionários da companhia – que, representando muito bem o estilo de Fey e de Carlock, serve como um reflexo mais brando do que enfrentamos ano passado no complicado mundo do entretenimento.
Enquanto isso, Titus (Tituss Burgess) e Jacqueline (Jane Krakowski) mantém-se em uma quase impossível relação de trabalho em que a outrora rica dona de casa experenciou algumas das tortuosas linhas do destino após separar-se do marido infiel e se tornou uma caça-talentos e agente. Titus, por sua vez, conserva sua adorável personalidade egocêntrica e talentosa que também sofre pela perda do namorado Mike (Mike Carlsen), ainda que quietamente. Todo esse confronto interno é traduzido em formas de diálogos hilários e que aprofundam a relação que tem com Jackie e Kimmy, bem como com outros coadjuvantes que também aparecem em cena uma vez ou outra – e que são de extrema importância para uma epifania inesperada, por exemplo.
Se todos passam por arcos de amadurecimento e confronto de seus obstáculos, isso não poderia ser diferente com Lillian (Carol Kane), a proprietária do buraco em que Titus e Kimmy vivem. Retornando com seus irreverentes e verdadeiros discursos sobre o crescimento da gentrificação e da brusca mudança pela qual sua comunidade passou nos últimos anos, ela abandona sua caricatura de escape cômico e ganha um arco dramático mais refinado, porém tão rebelde quanto sua personalidade. Isso se mantém até os momentos finais dessa primeira parte, na qual ela conhece a “inexistente” família de seu ex-amante, Artie (Peter Riegert), e se torna parte de um núcleo muito maior do que esperava.
Apesar dessa preocupação com o arco de cada um dos protagonistas, a série peca em trazer um filler que não se mostra tão necessário ou pertinente – pelo menos não em sua completude. No terceiro episódio, intitulado Party Monster: Scratching the Surface, Kimmy e Titus acham um documentário muito familiar na HouseFlix (coincidência? Acho que não) que fala sobre a história do Reverendo Wayne/DJ Lizzard, trazendo a interminável história das Mulheres-Toupeira e do fato de sua prisão ser errada. Apesar da “seriedade” estilística do mockumentary funcionar como um reflexo e uma pesada crítica social, bem como grande parte da série, tal episódio não é tão impactante ou envolvente quanto os outros e representa uma queda de ritmo narrativo muito grande para a série, ainda mais por durar o capítulo inteiro.
A primeira parte da última epopeia de Kimmy Schmidt tem seus errinhos, mas ainda é extremamente satisfatória. Sempre inovando e, ao mesmo tempo, trazendo elementos universais para um cosmos universalmente conhecido pelo telespectador – a comédia escrachada -, a série começa sua despedida do melhor jeito possível. Agora, é só esperarmos a próxima leva de episódios chegar.
Unbreakable Kimmy Schmidt – 4ª Temporada: Parte 1 (Idem, Estados Unidos – 2018)
Criado por: Robert Carlock, Tina Fey
Direção: Tristram Shapeero, Rhys Thomas, Claire Cowperthwaite, Claire Scanlon, Jude Weng
Roteiro: Sam Means, Dan Rubin, Meredith Scardino, Leila Strachan, Robert Carlock, Nick Bernardone, Tina Fey
Elenco: Ellie Kemper, Tituss Burgess, Carol Kane, Jane Krakowski, Mike Carlsen, Dylan Gelula, Amy Sedaris
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Comédia
Duração: 23 min.
Crítica | 13 Reasons Why: 2ª Temporada - O Retorno de Hannah Baker
13 Reasons Why mostrou-se uma série problemática desde a época de sua pré-produção – e um dos grandes motivos foi a sua “boa intenção”. Para aqueles acostumados a adotarem ditados populares ao mais comum dos cotidianos, sabemos que de boas intenções, o Inferno está cheio. E levando em consideração que o romance assinado por Jay Asher em 2007 tornou-se uma importante obra para compreendermos as consequências do constante bullying, quebrando tabus endossados pelo conservadorismo excessivo de nossa sociedade – como as discussões sobre maus-tratos em escola, depressão e suicídio -, Selena Gomez parece ter-se respaldado de forma equivocada quanto ao tratamento desses assuntos para um meio muito mais acessível e utilizado pelas novas gerações: as plataformas de streaming.
A série, composta de treze episódios, mostrou-se dotada de pontos positivos – mas os negativos infelizmente falaram mais altos: ao que podemos depreender do resultado final, inúmeros gatilhos além dos anunciados antes do início dos episódios foram jogados através das múltiplas subtramas e trouxeram vários vícios para as telinhas, incluindo tratar o suicídio da protagonista Hannah Baker (Katherine Langford) de forma estilizada e romantizada (e aqui menciono a romantização no momento em que a personagem resolve realizar as fitas para se vingar. É claro que há muita discussão em jogo aqui, mas não podemos deixar de lado que isso acontece, e mais de uma vez, ao longo do show).
Quando a Netflix finalmente tomou a decisão de renová-la para a segunda temporada, confesso que fiquei com um pé atrás. Não havia nenhum motivo concreto para manter mais treze episódios em continuidade – ainda mais porque a obra de Asher se encerra com o season finale anterior. Talvez o time de roteiristas coordenado pelo showrunner Brian Yorkey ganhasse um espaço maior de criação e possibilidade de acertar alguns erros estruturais cometidos na temporada predecessora, como a falta de ritmo. Mas como se poderia continuar a história de Hannah? Felizmente, as previões foram cumpridas e Yorkey conseguiu nos fornecer um lado que até então havia sido esquecido e que tornou-se foco da nova iteração: as consequências para Olivia Baker (Kate Walsh) e uma perspectiva oculta dos participantes desse trágico acontecimento.
Primeiramente, devo dizer que mudar o foco da narrativa e transformá-lo em um importante julgamento entre a família Baker e a Liberty High School foi uma saída de interessante. O deslize, ao contrário do ano anterior, não foi desenvolver apenas uma longa linha narrativa de forma monótona e quase desistiva, mas sim delinear inúmeras subtramas que, em grande parte, não conseguem ter o desenvolvimeto necessário mesmo com treze novos episódios de quase uma hora de duração cada. Temos as subtramas mais importantes, como a de Olivia e a de Clay (Dylan Minnette), que luta para conseguir que a justiça seja feita para Hannah e para um dos principais culpados de toda a história, Bryce (Justin Prenticen), mas também há inúmeros envolvimentos românticos, a manutenção de quase todos os personagens e a adição de coadjuvantes que uma vez ou outra trazem algo de necessário para a série.
Yorkey preza pela tentativa de prosseguimento dos envolvidos no suicídio de Hannah e como cada núcleo mais intimista segue uma linha progressiva de puro declínio e ruína. Jessica (Alisha Boe) enfrenta seus demônios interiores e luta para conseguir se reestabelecer em um microcosmos – a escola – extremamente opressora e passiva em relação a seus alunos; Alex (Miles Heizer), após sair de seu coma, passa os dias vivendo com uma grande lacuna em suas memórias e se vê incapacitado de poder ajudar no julgamento; o “fugitivo” Justin (Brandon Flynn) retorna de modo triunfal para a série em um dos melhores arcos de redenção para a nova temporada – e não, ao contrário do que podemos pensar, ele não se torna uma vítima das circunstâncias, e sim enfrenta as consequências de sua cumplicidade criminosa.
Se por um lado 13 Reasons Why faz um belíssimo trabalho expandindo o núcleo de seus protagonistas e inclusive colocando inúmeros críticas para as falhas do sistema judiciário e punitivo da sociedade em que vivemos – não é à toa que o desfecho da narrativa principal mantém-se fora dos clichês –, ela peca no quesito equilíbrio. A mudança atmosférica entre as construções cênicas é brusca e sem qualquer preparação, e isso também se estende para os novos coadjuvantes; o roteiro não faz bom uso do potencial dessas adições pelo fato de elas existirem em uma saturação além do necessário. No final das contas, parece que o próprio universo faz questão de eliminá-los sumariamente para destituir de pesos mortos, mantendo aquilo que se mostra pertinente e depois retornando ao acaso com os “excessos”.
A falta de estruturação é, de certa forma, compensada com uma estética bem pensada. Seguindo uma fórmula mais ou menos parecida com o ano anterior, temos dois momentos distintos: aqueles no tempo presente e aqueles que trazem a viva memória de Hannah – e gostaria desse momento para mencionar que a ainda protagonista retorna também como fantasma pessoal de Clay -, mas de uma perspectiva verdadeira e que não nos havia sendo apresentada.
A direção de arte e de fotografia conversam entre si para construir uma identidade imagética própria para o antes e o depois, prezando por uma paleta mais dinâmica e mais quente para os momentos em que a personagem de Langford estava viva e contrastando-a com uma neutralidade angustiante e doentia da cronologia atual. Essas escolhas também auxiliam nas incríveis performances dos atores e atrizes, que valem-se de uma entrega soberba e emocionante – e aqui também tiro momento para mencionar a performance de Flynn e Boe, cuja química quase transcendente os limites da tela.
Mesmo com os despontes, os equívocos parecem falar mais alto e, ainda que a explicitez desnecessária e os gatilhos não informados deixem de existir em uma completude quase total, algumas sequências de flashbacks ou para a resolução de arcos são depressivas, para não dizer mórbidas. O foco desliza gradativamente para algo que poderia ser mostrado de outra forma, mas que segue um padrão de inúmeras outras obras que já se utilizaram do mesmo convencionalismo explicativo – em diversos momentos, a série faz referência ao incrível documentário Tiros em Columbine, mas não do modo aplaudível como deveria ser apresentado.
13 Reasons Why ainda se mostra como um produto maçante. A quantidade de episódios e de subtramas serve mais como tapa-buracos que qualquer outra coisa – e detalhe: se a primeira temporada trouxe temas importantes para colocar em pauta dentro da nossa sociedade, essa preocupação, ainda que distorcida, deixa de existir no novo ano, dando lugar a construções melodramáticas e desinteressantes.
13 Reasons Why - 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2018)
Criado por: Brian Yorkey
Direção: Gregg Araki, Karen Moncrieff, Eliza Hittman, Michael Morris, Kat Candler, Jessica Yu, Kyle Patrick Alvarez
Roteiro: Brian Yorkey, Thomas Higgins, Marissa Jo Cerar, Hayley Tyler, Nic Sheff, Julia Bicknell, Felischa Marye, Rohit Kumar, Kirk Moore
Elenco: Dylan Minnette, Katherine Langford, Christian Navarro, Brandon Flynn, Justin Prentice, Miles Heizer, Alisha Boe, Ross Butler, Devin Druid, Amy Hargreaves, Derek Luke, Kate Walsh
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Drama
Duração: aprox. 59 min.
https://www.youtube.com/watch?v=qvWpoDTAYjM
Crítica | Fahrenheit 451 (2018) - A Desgraça em Chamas
Fahrenheit 451 é uma das obras de ficções mais conhecidas e aclamadas de todos os tempos. O romance, assinado por Ray Bradbury e lançado ainda na década de 1950, representou um marco no gênero da ficção científica e das vertentes distópicas que se iniciaram anos antes com Admirável Mundo Novo e 1984 – e partindo dessa premissa, é possível colocá-lo em um inquebrantável patamar da literatura clássica e que até hoje serve como tese para analisar governos corruptos, ideologias totalitárias e uma crítica em relação à volúpia da sociedade contemporânea em relação à ignorância. Aceitar a ignorância e a alienação em detrimento de um conhecimento que desde os primórdios da humanidade é explorado com grande afinco.
Como já falamos em diversos textos, a busca por repaginar obras escritas e audiovisuais clássicas – e aqui menciono o longa-metragem dirigido por François Truffaut em 1966 – é constante e até mesmo justificável se pensarmos na boa intenção de aproximar um crescente público millenial movido essencialmente pela imagem de criações atemporais. Entretanto, como já dizia o famoso ditado, “de boas intenções o Inferno está cheio”. E essa frase nunca foi tão bem explanada com a insossa releitura do telefilme realizada pela HBO – o que pode nos deixar bastante chocados, visto que a emisorra é bastante conhecida pela incontestável qualidade de suas inúmeras produções originais (ora, ela é reconhecida por trazer à vida Game of Thrones e Westworld, então não estamos falando de coisas simplórias).
Partindo do mesmo pano de fundo da investida predecessora, a sociedade cedeu a um regime neofascista regrado pela lei do fogo. Uma comunidade contraditoriamente progressista e reacionária que tem como heróis os vários grupos de bombeiros que não seguem mais o que nasceram para fazer, mas que queimam livros. A ideia por trás de tudo isso é que os livros, recheados com histórias fantasiosas, fazem com que os indivíduos pensem, reflitam, cheguem a conclusões e epifanias que o tiram de uma zona de conforto necessária para a manutenção de um amorfismo social. Todo e qualquer romance, digital ou físico, foi banido do mundo pelas mortais chamas desses bombeiros-policiais, emergindo como justiceiros e aplaudidos por aqueles que entregaram seu livre-arbítrio em busca de um bem comunitário e de uma apatia completa.
A trama principal segue a história do jovem Guy Montag (Michael B. Jordan), filho de um bombeiro assassinado que jurou seguir os passos do pai como forma de honrar sua memória – ainda que ela esteja fragmentada em pequenos e constantes frenesis. Guy é respaldada pela imagem também paternal de Beatty (Michael Shannon), chefe da divisão à qual pertence e que duramente repreende aqueles que ousam manter a memória dos livros em alta, conhecidos como eels. E pior: cada uma de suas missões é televisionada para todas as pessoas da gigantesca metrópole em que vivem – logo nas primeiras cenas, vemos os enormes arranha-céus tomados pelas transmissões ao vivo e pelos comentários em tempo real de seus “fãs”.
As coisas mudam de perspectiva quando, durante uma das delegações, Guy sente-se atraído pela imensidão inenarrável de uma biblioteca, escondida há anos em um casarão em ruínas e resguardado por uma velha senhora. Ele, antes de seguir com sua tarefa de eliminar cada um dos romances, esconde um exemplar e acaba se encontrando com Clarisse (Sofia Boutella), uma eel-informante que foi coagida a ajudar os bombeiros em troca da redução de sua pena e de sua marginalização compulsória. É claro que, com o desenrolar da trama, podemos imaginar que o outrora vingativo Guy irá mudar de lado e ajudar aqueles que mais precisam a restaurar o apreço pelos livros.
Olhando para as descrições acima, é quase impossível imaginar que algo poderia dar errado. Infelizmente, estávamos todos enganados: mesmo com um pano de fundo tão bem estruturado, o diretor Ramin Bahrani parece ter perdido em uma triste plenitude o incrível potencial a ser explorado. Na verdade, Bahrani resolveu o problema de reestruturar a clássica obra de Bradbury e de Truffaut de modo preguiçoso e vazio, sem qualquer nexo ou lógica. Não há sentido em absolutamente nada: na motivação dos personagens, nas viradas do roteiro e dos clímaces que se desenrolam de forma tão sutil que passam despercebidos – caso não prestemos bastante atenção ao final do segundo ato, não perceberemos a backstory por trás de Beatty e os motivos que o tornaram extremamente impiedoso. Para falar a verdade, nada disso importa e funciona como um tapa-buraco porcamente colocado.
O roteiro é um festival de frases prontas e clichês, e nem mesmo o conhecido carisma do trio protagonista consegue salvar essa tragédia – e não é por falta de tentativas, mas sim pelos arcos e pela personalidade nem um pouco interessantes de seus personagens. Cada um deles é movido por uma força-motriz linear e unidimensional que não parece tomar forma ou torná-los únicos. Ao contrário, eles se fundem em uma confusão de saídas problemáticas e resoluções ocasionais que nos deixam perdidos em meio a um espetáculo pirotécnico muito exagerado e artificial.
Bahrani ainda tenta se salvar ao brincar com a paleta de cores, a qual funciona na maior parte do tempo. Porém, essa preocupação estética reflete mais um problema pelo qual os remakes atuais passam: respaldar-se exclusiva e unicamente na expressão artística e deixar os outros componentes cinematográficos de lado. Afinal, de que adianta uma bela fotografia ou uma trilha sonora comovente se a estruturação narrativa e até mesmo a montagem são tristemente pensados?
O novo Fahrenheit 451 é errado. Com pouquíssimas exceções, não há muito para se salvar nessa montanha de equívocos – e acho que o pior dentro dessa “contemporânea perspectiva” foi utilizar-se de algo tão belo e majestoso como referência e descontruí-lo em pequenos fragmentos inúteis e ridículos, por falta de outro adjetivo que faça jus a esta desgraça completa.
Fahrenheit 451 (Idem, EUA – 2018)
Direção: Ramin Bahrani
Roteiro: Amir Naderi, baseado no romance homônimo de Ray Bradbury
Elenco: Michael B. Jordan, Sofia Boutella, Michael Shannon, Keir Dullea, Khandi Alexander, Martin Donovan, Lilly Singh
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 100 min.
https://www.youtube.com/watch?v=gwHA7d1OkAY
Crítica | 3%: 2ª Temporada - Os Dois Lados da Moeda
A Netflix sempre prezou por uma constante renovação de seu catálogo e pela geométrica produção de conteúdo original – e uma das grandes sacadas realizadas pela gigante do streaming foi se aproximar do crescente público brasileira ao arquitetar a primeira série nacional, cuja ideia principal era abrir portas para novos produtos audiovisuais que se afastassem do escopo novelesco ou comédia pastelão pelo qual nossa indústria cinematográfica e televisiva é conhecida. E foi assim que, em 2016, foi lançado 3%, um show que trouxe suas imperfeições, porém serviu como pontapé inicial para uma nova visão acerca da arte brasileira – afinal, esta é uma das poucas narrativas que atualmente se inclina para o gênero futurista-distópico. O eminente sucesso permitiu sua quase certeira renovação, e felizmente a equipe por trás da segunda iteração alcançou um novo patamar.
Como é de praxe, sempre que lidamos com um cosmos da ficção científica, somos primeiro apresentados às regras; logo depois, aos personagens-pivôs que continuaram ou desmantelarão o status quo, buscando a insurgência de uma nova ordem em detrimento de um conservadorismo exacerbado. Haverá conflitos, motins e sacrifícios necessários para o desenrolar da trama – e, se tudo der certo, o ápice trará uma verdade incontestável e uma irreversível e brusca mudança; é esse o caminho que a série traça e, mesmo com uma inovação no quesito técnico-artístico, algumas falhas ainda são bem perceptíveis, principalmente no tocante aos diálogos, que rendem-se às alternativas charlatonas para dar impulso a um evento importante.
Já passou um ano desde que o 104º Processo, responsável por selecionar os 3% da população do Continente que merece mudar de vida e ir ao Maralto, aconteceu; como bem sabemos, máscaras caíram, aliados foram construídos, amizades acabaram e o grupo de protagonistas ao qual fomos apresentados há algum tempo não existe mais. Michele (Bianca Comparato) agora vive nos luxos e no conforto de seu novo lar, tentando lidar com as traições às quais se submeteu para reencontrar o irmão André (Bruno Fagundes), o qual havia sido dado como morto, porém está preso em confinamento pelo primeiro assassinato do Novo Mundo. E é claro que, por trás das distorcidas promessas, há a figura do tirano e conturbado Ezequiel (João Miguel retornando em grande forma para a série), mantendo tudo sob controle e impedindo que quaisquer obstáculos ameacem romper.
Do outro lado, voltamos a acompanhar a saga de Joana (Vaneza Oliveira), desistente do Processo que procura destituir de vez todo o falho conceito de meritocracia que é explorado e criticado diversas vezes ao longo dos dez novos episódios. Ela, em determinado momento, cruza caminho com o grupo conhecido como A Causa, mencionado no ano predecessor e que aqui ganha mais delineações e complexidade para fundar uma segunda camada para a sociedade que nos é apresentada – é interessante notar também que, à medida que percebemos a profundidade narrativa ganhando bastante força, até mesmo as técnicas utilizadas para a filmagem são repaginadas com novas investidas, afastando-se dos vícios de linguagem como plano holandês e câmera na mão para retomar o classicismo das séries dramáticas de forma coesa e, ao mesmo tempo, original.
Michel Gomes também retorna para série no papel de Fernando, cujo arco de enganação o transformou em alguém amargo e sem qualquer esperança. Sua mentalidade, agora mais clara depois de ter falhado nas “missões”, é extremamente rebelde, fator que aumenta as rixas com a igreja comandada por um alienado pai, e suas tentativas fracassadas de impedir que os jovens de vinte anos entrem para o Processo por tratar-se de uma análise nem um pouco coerente das habilidades de cada um baseando-se em provas que não medem absolutamente nada. Esse discurso revolucionário acompanha, ainda que de forma indireta, cada um dos personagens, incluindo aqueles que dão às caras só agora. Uma dessas novas entradas vem em Marcela (Laila Garin), uma das líderes do exército do Maralto que é protagonista de uma das viradas mais interessantes de toda a série; sua personalidade é moldada conforme as falsas ideologias do Casal Fundador – que nos é explicada conforme os capítulos se desenrolam – e, aqui, ela também serve como a principal antagonista e empecilho para a fluidez dos nossos heróis. É possível até traçar paralelos entre ela e outras figuras da cultura pop contemporânea, incluindo os tiranos Presidente Snow, de Jogos Vorazes, e Ava Paige, de Maze Runner, seja pelos objetivos, seja pela construção cênica.
Não podemos dizer que César Charlone e Pedro Aguilera não tenham aprendido com os insuportáveis deslizes da primeira temporada; aqui, tanto o criador quanto o produtor executivo percebem que é possível explorar ainda mais aquilo que criaram, expandindo de forma exponencial todos os pequenos núcleos atmosféricos e narrativos e criando cenários que definitivamente não esperávamos ver, ao menos por enquanto. A montagem oscila entre o Maralto e o Continente, e ainda que possa parecer saturado, consegue dar sustância o suficiente para cada um dos protagonistas e coadjuvantes, mostrando a relação de interdependência entre cada um, levando a outro nível a ideia de relação simbiótica: Fernando, por exemplo, é respaldado pela melhor amiga Glória (Cynthia Senek), a qual tem relação até mesmo com sua paraplegia. Por vezes, o roteiro peca no excesso de tragédia e drama e a deixa um tanto quanto previsível, mas na maior parte as coisas funcionam e acabamos criando um laço com essa personagem.
A organicidade com a qual tudo flui é outro ponto a ser mencionado. Glória também puxa algumas presenças interessantes para a nova subtrama a ter início e consegue conversar com figuras cuja relação é palpavelmente inexistente, mas que traz um sentido anacrônico. O mesmo pode ser dito entre Michele e André, que traçam paralelos com a história do Casal Fundador – e aqui está o plot twist: o Casal, na verdade, era um Trio que entrou em discordância e acabou sofrendo uma brusca perda acidental de uma das idealizadoras do Maralto, cuja linha nunca prezara pelo Processo, mas sim para condições de vida igualitárias. Aproveito o momento para mencionar a incrível performance de Maria Flor, Fernanda Vasconcelos e Silvio Guindane como o grupo em questão; os três trazem, em um necessário filler para a compreensão da história como um todo, uma química inigualável e que certamente envolve o espectador ao máximo.
Ainda que a melhora seja visível, não posso deixar de mencionar a falta de cuidado e de “polimento” de alguns aspectos dessa iteração: os figurinos, antes tratados com pouco detalhamento e que tornavam as coisas menos críveis, sofrem um “banho de loja” completo e até conseguem se aproximar do gênero sci-fi ao qual estamos acostumados. Entretanto, ainda não é o bastante para nos fazer crer por completo e mergulhar na proposta que Aguilera e Charlone tentam nos passar – e ambos fazem um bom uso da fotografia e da direção de arte para mascarar esses defeitos. Além disso, alguns diálogos também parecem saídos de uma caixinha de frases prontas, espalhadas profusamente para tapar eventuais buracos; o desfecho da segunda temporada passa por uma péssima escolha de palavras que até cria um cliffhanger considerável, mas moldado em cima do monótono “final feliz” fabulesco.
De modo geral, 3% tornou-se mais respeitável, não só por conseguir cumprir com as expectativas que prometeu e falhou no primeiro ano, e sim também por conseguir esmiuçar um outrora perdido potencial. De fato, não podemos tirar mérito da equipe por trás da série – e definitivamente pela constante tentativa de colocar os parâmetros da produção audiovisual brasileira em um patamar que se torna cada vez mais perto.
3% - 2 Temporada (Idem, Brasil – 2018)
Criado por: Pedro Aguilera
Direção: Daina Giannecchini, Dani Libardi, Jotagá Crema, Philippe Barcinski
Roteiro: Pedro Aguilera
Elenco: Bianca Comparato, Michel Gomes, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, João Miguel, Viviane Porto, Celso Frateschi, Sérgio Mamberti, Zezé Motta, Fernanda Vasconcelos, Maria Flor, Bruno Fagundes, Cynthia Senek, Laila Garin, Samuel de Assis, Thaís Lago
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Ficção Científica
Duração: 55 min.
https://www.youtube.com/watch?v=e95abAtA6wc
Crítica | 7 Dias em Entebbe - Ofuscado pela Egolatria
José Padilha é certamente um dos nomes mais conhecidos do cenário mundial e nacional. O diretor e produtor é responsável por trazer em grande parte de suas obras temas que permitam uma abertura reflexiva no tocante à situação socioeconômica e política de diferentes realidades - não é à toa que tenha realizado obras como a franquia fílmica Tropa de Elite e a série O Mecanismo, além de ter entrado como produtor executivo de um dos maiores sucessos da Netflix, Narcos. Todas as obras com as quais trabalhava são carregadas de perspectivas críticas e é justamente essa manutenção de seu legado que tenta trazer em 7 Dias em Entebbe.
O longa-metragem, mais uma vez baseado em fatos reais, cede à própria egolatria e não consegue lidar com o fato de não ter sido realizado de forma interessante. O resultado quase catastrófico é por vezes salvo pelos breves momentos de glória e percepção estética de seus personagens e sua equipe de produção, mas mesmo assim se respalda demais numa egolatria sem tamanho que quer transformar água em vinho.
A história é baseada em fatos reais e gira em torno de um dos momentos de grande decisão da questão política em território palestino, o qual discorre acerca do sequestro de um avião da companhia Air France pela Frente Popular para a Libertação da Palestina e das Células Alemãs Revolucionárias que lutavam por um protagonismo étnico em meio a tantos conflitos sanguinolentos. A ambiência já nos é dada pelo próprio título do filme, visto que Entebbe foi o nome do aeroporto desativado no qual os reféns e os terroristas permaneceram durante sete dias e sete noite até que a operação de contra-investida fosse colocada em prática pelo governo israelense.
Apenas com tal sinopse, é possível deduzirmos uma sequência de fatos tão inesperada quanto qualquer outro clichê dos filmes de ação e drama. Temos os dois lados delineados com diferenças gritantes, seja pelo nacionalismo, pela rebeldia, pela busca à segurança, pela justiça e inúmeros outros temas. Cada um desses blocos terá, teoricamente, o seu protagonismo cênico e, através da gradativa junção das duas linhas narrativas, encontraremos um desfecho romantizado com um vitorioso e um derrotado. E, bom, é exatamente isso o que ocorre durante toda a obra: percepções exageradas e quase intangíveis de um fato real que parece jogado no ar sem explicação ou sem motivação envolvente o suficiente para interagir com o público.
Se Padilha alcançou um status consideravelmente alto por pequenas pérolas da indústria cinematográfica contemporânea, ele se perde em meio a tentativas frustradas de elevar o nível de suas histórias, a começar por uma montagem que não faz o menor sentido. Tudo bem, a cronologia tem como base flashbacks de ambos os lados, mas emergem em momentos de puro vazio, no qual o roteiro orquestrado por Gregory Burke encontra um beco sem saída e apela para o emocional como forma de desviar tais obstáculos - e é claro que, pela visibilidade de equívocos estruturais, isso não funciona.
Os personagens também não tem muito espaço de credibilidade ou evolução - e infelizmente isso se alastra até para as interpretações. Daniel Brühl encarna o líder militante alemão Wilfried Böse, cujo pacífico plano vai de encontro à mentalidade anarquista e violenta de sua parceira Brigitte Kuhlmann (Rosamund Pike), também pertencente à Célula Revolucionária. Entretanto, os dois atores de grande renome no cenário do entretenimento atual não têm sequer um resquício de química entre si, mantendo-se em posições defensivas que desenlaçam momentos vergonhosos e contraditórios ao que deveriam ser - e isso inclui as breves peças de escape cômico que são varridas inteiramente para debaixo do tapete. Pike ainda possui um pico momentâneo ao ter uma crise de ansiedade e protagonizar uma sequência em plano fechado que revela sua personalidade marcada pela angústia e pelo trauma, mas esse ápice logo se dissipa.
Nem mesmo o cuidado estético tem lugar de fala na obra. A opção pela câmera na mão, por enquadramentos claustrofóbicos e planos-sequência discordam da visão crítica de seu diretor em vários momentos, ainda mais se levarmos em conta sua tentativa de transformar uma ficcionalização em uma investida documentária que procura emular obras do gênero. A consequência como produto final é arrasadora é decepcionante, como se pode prever.
7 Dias em Entebbe é simplesmente errado. Uma mancha complicada na carreira de Padilha assim como Trem para Paris o é para a filmografia de Clint Eastwood. E o mais triste talvez seja que um momento decisivo para a história mundial tenha sido retratado de modo tão bruto, perdido e egocêntrico.
7 Dias em Entebbe (7 Days in Entebbe - Reino Unido/ EUA, 2018)
Direção: José Padilha
Roteiro: Gregory Burke
Elenco: Rosamund Pike, Daniel Brühl, Eddie Marsan, Nonso Anozie, Ben Schnetzer, Mark Ivanir, Juan Pablo Raba
Gênero: Drama
Duração: 107 min.
Crítica | Rampage: Destruição Total - Monstros, Monstros e mais Monstros
É um fato inegável dizer que Dwayne “The Rock” Johnson é um dos rostos mais carismáticos da Hollywood contemporânea - não apenas por sua capacidade e envolver qualquer que cruze com seus excêntricos e risíveis personagens, mas também por escolher projetos que caem no extremo caricato apenas para divertir seus fãs. O ator já encarnou diversas criações narrativas completamente opostas entre si, incluindo um fada-do-dente, um explorador literário, um avatar de jogos de aventura e até mesmo um corredor sedento pela vitória e por explosões (sim, estou me referindo ao seu papel na franquia Velozes e Furiosos). E mais uma vez, The Rock retorna para as telonas em mais um filme completamente previsível e que o traz em sua melhor forma para... Derrotar mais monstros gigantes!
Rampage: Destruição Total basicamente entrega o que promete, ainda que se perca no meio do caminho. Não é à toa que sua premissa seja “o grande encontra o maior ainda” - Johnson talvez seja, apesar de ter um grande coração e uma incrível personalidade, um dos homens mais intimidadores do cinema. Logo, para enfrentá-lo, o desnecessariamente gigantesco time de roteiristas por trás do longa-metragem teria que ultrapassar todas as expectativas antagônicas para colocá-lo em uma linha defensiva e cautelosa o suficiente para tirar o fôlego do público - não que isso funcione em sua completude, mas ao menos conseguimos nos divertir um pouco, esperando que o protagonista acabe com a raça dessas criaturas demoníacas.
A premissa principal busca certa referências nas narrativas sci-fi, colocando-nos em um prólogo muito bem filmado e pautado em uma sensação de plano-sequência aplaudível, ainda que não seja reaproveitado ou reutilizado pelo restante das quase duas horas de espetáculo. Enclausurados em uma “estação espacial de baixo orçamento”, como descrito por um dos vilões da história, vemos uma cientista desesperada para voltar para a Terra, visto que o experimento envolvendo o modificador genético Rampage deu errado e ocasionou o surgimento de uma criatura mortal e inesperada. Entretanto, ela deve recuperar as amostras de laboratório e, no final das contas, acaba explodindo na cápsula de emergência. Os destroços, pois, alastram-se pelo sul dos Estados Unidos e já premeditam um possível caos nos pequenos ecossistemas que invadem.
Enquanto isso, somos transportados a uma das reservas naturais comandadas pelo primatólogo Davis Oyoke (Johnson), o qual apresenta o bando de gorilas pelo qual é responsável a um grupo de pesquisadores amadores - e isso nos leva à insurgência de um outro personagem tão carismático quanto seu “mentor”, o símio albino George, tão antropomorfizado que chega a ser assustador sua capacidade de criar ironia e sarcasmo ao mesmo tempo em que mantém-se verdadeiro às suas raízes selvagens. É cômico ver como a relação entre Davis e George tem mais química que muitos outros casais da indústria cinematográfica moderna, e esse é um dos poucos brilhos que a produção realmente oferece para a audiência.
Como já podemos esperar, as amostras do gene modificado acabam infectando o gorila, transformando-o em uma máquina gigantesca movida pela raiva e pelos instintos mais primitivos - cuja funcionalidade é explicada por uma dupla idiótica de antagonistas, os cientistas e magnatas Claire (Malin Akerman) e Brett Wyden (Jake Lacy). As coisas já começam a ficar saturadas aqui, principalmente pelos diálogos mal escritos que nem ao menos conseguem alcançar um estado de canastrice proposital, mantendo-se em uma zona intermediária extremamente incomodadora. Claire é a cabeça do duo, responsável por unir as forças mais inteligentes do meio científico para criar este gene, enquanto Brett é um simplório menino mimado que nem mesmo serve para fazer o seu papel com escape cômico - as expressões blasé e os surtos psicóticos de sua irmã conseguem fazer um trabalho muito melhor.
E isso não é tudo: o crescimento inexplicável de George vem da combinação do DNA das partículas mais fortes dos animais terrestres e acaba infectando outros animais, incluindo um lobo selvagem apelidado de Ralph (cuja caracterização é realmente assustadora), e um crocodilo que se transforma em uma máquina de guerra jurássica e que permite uma leve comparação com o excesso de efeitos especiais de Jurassic World - sim, aquela mesma cena em que um dinossauro marinho emerge das águas para engolir um pterodáctilo. Aliás, a sequência de sua aparição é essencialmente mimética, senão plagiada com o maior descaramento possível.
As coisas também não permanecem por aí. Temos a entrada de mais personagens que se tornam descartáveis ou inutilizados - principalmente quando pensamos na completa perdição de Naomie Harris como a Dra. Kate Caldwell, uma geneticista que foi demitida da companhia dos Wyden após conseguir desenvolver o Rampage e que agora busca se vingar e destruir a reputação da companhia. Ela entra em uma onda de mentiras ao convencer Davis de que a cápsula contendo a amostra pertence a si, e essa bola de neve leva aonde? Para mais uma entrada forçada de um personagem: Harvey Russell, chefe do serviço secreto dos Estados Unidos. Tudo bem, é quase refrescante e divertido ver o carismático Jeffrey Dean Morgan fazendo uma inocente aparição com um forte sotaque sulista, e ele até consegue se desenvolver até meados do segundo ato - apenas para se perder em uma série de saturações narrativas que nem mesmo são agradáveis.
E, bom, se existem tantos pecados e equívocos no quesito roteiro, o diretor Brad Peyton consegue entreter o público com as cenas de ação e destruição - afinal, é isso que esperamos de uma obra como esta. Peyton já havia trabalhado com The Rock em Terremoto: A Falha de San Andreas, criando certos escopos fílmicos que conseguiram tirar nosso fôlego, incluindo a presença de efeitos especiais bem verdadeiros. Aqui, ele repete o feito, mesmo com certas ressalvas como a não finalização da estética em CGI do lobo-gigante; as cenas de luta entre os monstros e até mesmo do caos que toma conta da cidade segue o básico convencionalismo da alternância entre slow-motion e cortes rápidos, funcionando em grande parte. O problema é: em meio a tantas explicações monótonas e backstories que definitivamente não nos interessam, a narrativa se esquece de nos entregar mais cenas de confronto, deixando uma insatisfação no ar.
Rampage: Destruição Total vale mais por seu protagonista. E pelo gorila. Os dois criam mágica em cena, isso é inegável; porém, em uma visão mais ampla, os erros são tantos que fica difícil se acostumar com o constante boom imagético ao qual somos apresentados - e as risadas confortáveis que outrora existiam com The Rock se perdem juntamente à história.
Rampage: Destruição Total (Rampage, EUA – 2018)
Direção: Brad Peyton
Roteiro: Ryan Engle, Carlton Cuse, Ryan J. Condal, Adam Sztykiel
Elenco: Dwayne Johnson, Naomie Harris, Jeffrey Dean Morgan, Malin Akerman, Jake Lacy, Joe Manganiello, Marley Shelton, P.J. Byrne
Gênero: Ação, Aventura, Sci-Fi
Duração: 107 min.
https://www.youtube.com/watch?v=9DHLb2f--jA
Crítica | Cidade dos Anjos - Quando a Inocência Vira Pretensão
Nicolas Cage é um daqueles atores hollywoodianos cuja canastrice em cena é tanta, que não podemos deixar de nos divertir com sua inocência performática. Não é à toa que ele é lembrado por suas rendições não tão aplaudíveis - mas memoráveis pelos motivos errados - de longas-metragens como O Sacrifício, A Lenda do Tesouro Perdido e Motoqueiro Fantasma, obras que definitivamente poderiam ser esquecidas do panteão cinematográfico contemporâneo por inúmeras razões. Entretanto, não podemos deixar de mencionar algumas tentativas menos convencionais do ator em querer sair de sua linear zona de conforto como forma de se entregar a um novo escopo e uma nova faceta nunca concretizada, mas que até dá alguns sinais de vida.
E é justamente isso o que acontece em Cidade dos Anjos, uma história tão sutil que passa despercebida por grande parte dos espectadores. Não, não estou me referindo aqui à extensa poeticidade trazida pelo diretor Brad Silberling ou às metáforas delineadas pela relação além-mundo dos protagonistas - ainda mais porque tais elementos nem sequer existem de verdade dentro dessa arquitetura fílmica; refiro-me, aqui, a uma premissa inofensiva e que poderia traçar os mesmos passos dos romances românticos ou obras do nicho, quem sabe ousando pender para uma dramédia bem estruturada. No final das contas, infelizmente essa puerilidade dá margem a uma pretensão descomunal que o transforma em uma bola de neve desnecessariamente monótona.
A trama principal gira em torno de um anjo que se autodenomina Seth (Cage), cuja missão é simplesmente facilitar o término da vida terrena dos seres humanos e acompanhá-los para o outro lado do plano universal. Sua composição artística já se afasta dos convencionalismos religiosos e iconográficos desse tipo de personagem, optando pela utilização de um vestuário dark, com a entrada de uma longa capa preta, e que os deixa mais contemporâneos em relação à delineação original - roupas brancas, asas imponentes e a auréola brilhante. As coisas mudam de significado quando Seth cruza caminhos com a emocionalmente flagelada Dra. Maggie Rice (Meg Ryan), a qual tenta constantemente burlar as regras do Destino e da Morte e acaba se encontrando num ciclo interminável de perda e dor, mesmo que realize seu trabalho com o maior profissionalismo possível.
Ao que indica a concepção do primeiro ato, temos dois pontos de vista que, a priori, se contrapõe, mas que com o decorrer da narrativa, irão se fundir e se complementar: o primeiro busca uma reflexão mais sobrenatural e pautada pela fé, representada pela persona de Seth; o segundo é reafirmado constantemente por Maggie, sua crença inabalável na ciência e suas explicações metódicas que a transformam em um objeto prático e estigmatizado daquilo que sempre defendeu. Não digo aqui que existe um lado certo e outro errado, e sim que essa dualidade logo se choca e começa a inverter os papéis à medida em que a doutora percebe que pode abandonar alguns de seus vícios laborais em nome de uma vida mais “humana”, enquanto o anjo desenvolve sentimentos terrenos - como, por exemplo, o amor e o desejo.
Basicamente, temos a velha história do amor impossível entre duas criaturas muito diferentes entre si - ainda que não chegue aos exageros do recente A Forma da Água. Silberling, em conjunto à roteirista Dana Stevens, poderia ter transformado a narrativa original alemã em algo mais fabulesco, beirando as impossibilidades dramáticas em prol de uma mistura do fantástico com o real; mas aqui, optar por essa investida mais certeira é totalmente descartado para planos e enquadramentos excessivamente aéreos que deixam o longa-metragem com a roupagem de um videoclipe de baixo orçamento de meados de 1990. E isso não é tudo: além dessa pífia estética, não percebemos qualquer preocupação do diretor em reduzir a saturação imagética com uma montagem adequada, o que apenas aumenta o ritmo lento e a monotonia em cena.
É muito provável que o público, acostumado a tais histórias, consiga imaginar o que acontece depois disso. Seth se apaixona por Maggie e se vê num beco sem saída até tomar conhecimento de um curioso paciente da doutora chamado Nathaniel Messinger (Dennis Franz), que misteriosamente sente a presença do anjo por um simples fator: ele também já foi um e renegou sua condição sobre-humana para viver como um daqueles que sempre protegeu, constituindo uma família, porém nunca se esquecendo de sua vida passada. Logo, Seth vê em Nathaniel uma possibilidade de seguir seus passos e ficar mais próximo da mulher que passou a amar, ainda que os sentimentos da mesma estejam confusos e ela não saiba o que pensar ao certo.
Por mais que o personagem de Franz aparente ser insosso e irritadiço, ele rapidamente se torna um necessário escape cômico para a densa e complexa atmosfera que Silberling tenta criar aqui, mostrando que até mesmo o mais sério dos anjos pode ceder aos luxos e às divertidas banalidades da vida humana. Esses poucos ápices são menos frequentes do que deveriam ser e, no geral, são desperdiçados para criar saídas formulaicas para seus protagonistas, incluindo uma subtrama de separação, reencontro e arrependimento - tudo muito clichê e que beira o risível em certos momentos.
O final feliz é certeiro, ainda mais tratando-se de um romance; apesar de tudo seguir um padrão incessantemente irrefreável, não podemos tirar o mérito de Ryan em tentar fazer de um personagem simplório algo que vá além das nossas expectativas, seja pela presença inusitada do voz-over ou por suas inócuas propriocepções, seja dentro dos espaços em que é a grande protagonista, seja dentro do arco que cria para a mulher que encarna. Mesmo com tantas tentativas, a química entre ela e Cage é praticamente inexistente e não desperta nem mesmo a fagulha mais esparsa de credibilidade.
Cidade dos Anjos é um filme que promete mais que cumpre. Não há muito a se dizer sobre uma obra pretensiosa - apenas que, com uma tristeza quase intangível, ela morre na própria metáfora vencida.
Cidade dos Anjos (City of Angels, EUA – 1998)
Direção: Brad Silberling
Roteiro: Dana Stevens, baseado no roteiro original de Wim Wenders, Peter Handke e Richard Reitinger
Elenco: Nicolas Cage, Meg Ryan, Andre Braugher, Dennis Franz, Colm Feore, Robin Bartlett, Joanna Merlin, Sarah Dampf, Rhonda Dotson
Gênero: Romance, Drama
Duração: 114 min.
https://www.youtube.com/watch?v=UIq-RTIwUNw
Crítica | Take Your Pills - O Triunfo sobre as Limitações
A sociedade contemporânea atingiu um status de competição dentro de si mesma; em outras palavras, o que antes configurava-se como uma saudável ultrapassagem dos nossos próprios limites agora tornou-se uma excessiva necessidade de se transformar no melhor, no inalcançável, no perfeito. Basicamente, é essa a premissa que o novo documentário da jovem cineasta Alison Klayman busca analisar: como a liquidez das comunidades dos dias atuais cedeu a um ciclo vicioso onde os hábeis e capazes são descartados como objetos para dar lugar aos gênios-mirins, aos superdotados e até mesmo àqueles que não carregam nenhum tipo de escrúpulos para conseguirem o que querem.
O anúncio da estreia de Take Your Pills, longa-metragem não-ficcional produzido pela Netflix, talvez tenha adicionado mais uma camada de preocupação aos consumidores de remédios e medicamentos para tratamento de distúrbios psicológicos e mentais - e não pela falta de informações, visto que Klayman realiza uma profunda pesquisa para discorrer acerca do assunto, mas sim pelo produto final emergir como uma bola de neve questionável e erroneamente infundada pela quantidade de informações repetidas. O pano de fundo dessa análise médica e antropológica parte de um hábito comum a todos nós, o de tomar pílulas, porém com o agravante dessa ingestão não ter uma prescrição médica, por assim dizer, e sim um desejo de transfigurar-se em uma figura sobre-humana.
Sem dúvida alguma, o documentário inicia de modo bem impactante: diferentemente de outras obras do mesmo gênero e tema que buscam partir de preceitos médicos e quase ininteligíveis pela maior parte do público-alvo, essa rendição já merece alguns pontos apenas pelo modo como resolve introduzir o assunto em pauta. Levando-nos para um ambiente acadêmico, mais precisamente na corrida e exaustiva rotina universitária, a cineasta resolve nos apresentar para uma série de depoimentos pessoais de alunos e alunas que sofriam diariamente com o preço do sucesso e da conquista; sendo bombardeados por uma necessidade de despontarem como os melhores de suas turmas e possíveis prodígios, eles mesmos se renderam a uma promessa de alcançarem um potencial que normalmente não seria possível ao ingerirem uma pequena cápsula da droga conhecida como Adderall.
Klayman obtém um sucesso quase aplaudível ao tornar sua dissertação fílmica essencialmente didática sem cair em vícios de linguagem como a condescendência e a excessiva repetição de explicações, permitindo uma maior abrangência de público ao invés de restringir-se a uma pequena parcela. Sendo assim, vejo-me obrigado a explanar alguma coisas antes de continuar essa breve análise: o medicamente Adderall, conforme explicado no documentário, é um psicoestimulante introduzido no mercado farmacêutico no final da década de 1990 e, partindo da mesma composição da anfetamina e metanfetamina, foi e é ainda utilizado por inúmeros especialistas para o tratamento de distúrbios como TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade) e outros que atrapalhem o desenvolvimento da criança e do adolescente. Tal droga recentemente foi proibida em inúmeros países pela Organização Mundial de Saúde por um motivo factual e até mesmo assustador: seu uso indiscriminado.
É justamente nesse quesito que o primeiro ato do filme canaliza a nossa atenção: juntando o desejo de despontar em meio a uma massa medíocre desses alunos e as substâncias estimuladoras do Adderall, é mais que óbvio imaginar que certo contrabando começaria a ocorrer nos corredores das faculdades, com um número crescente de estudantes criando seus próprios contatos para conseguirem receitas médicas e “arsenais” para manterem-se o mais próximo possível da perfeição acadêmica - e, bom, considerando que, para as pessoas que não sofrem de TDAH, os efeitos permitem um número mais concentrado de sinapses neurológicas e uma descarga de adrenalina que permanece durante mais horas, é quase inebriante querer sentir na pele esse aumento considerável de potencial cerebral. E o mais interessante é como a diretora consegue articular essa moderna linguagem em algo sedutor o suficiente para nos deixar com a pulga atrás da orelha em relação ao que tais cápsulas realmente causam.
Entretanto, é claro que um documentário com este porte não deixaria de trazer opiniões de especialistas - e até metade de sua relativamente pequena duração (pouco mais que 80 minutos), as entrevistas inseridas não seguem um padrão clichê e ao qual estamos acostumados a ouvir. É refrescante termos um dos responsáveis pela introdução dos psicoestimulantes arrepender-se de sua criação e de como ela alcançou níveis absurdos de consumo, colocando “uma sociedade que deveria prezar pelo naturalismo à mercê dos médicos e dos medicamentos”, assim como é interessante analisarmos a forma com a qual as pessoas banalizam esse tratamento, ainda que cientes de todos os possíveis efeitos colaterais a longo prazo e observando inúmeros efeitos colaterais experenciados por pessoas que são obrigadas a se medicarem com tais remédios.
Eventualmente, Take Your Pills passa a se inclinar de modo compulsório às fabulescas morais do vício e de um futuro quase pós-apocalíptico para uma sociedade que não sabe mais conviver sem suas “pílulas diárias”. Ainda que tente afastar-se desses clichês, a estrutura documental começa a partir-se em pequenos fragmentos soltos e que funcionam mais como tapa-buraco que qualquer outra coisa, optando por uma excessiva musicalidade e até mesmo infantilidade para tentar cobrir os aparentes erros. No final das contas, a inovadora premissa apresentada na introdução é descartada para abrir espaço a inúmeras frases prontas de conscientização coletiva que todos sabemos que não causam nenhum surto epifânico de compreensão e entendimento no público.
Felizmente, o longa-metragem é dotado de uma fantástica estética e montagem que por vezes fala mais alto que a falha linha de pesquisa. Jennifer Fineran, responsável pela edição final, sabe muito bem como trabalhar uma linguagem moderna e clássica, arquitetando uma amálgama aplaudível que traz elementos de uma identidade futurista ao mesmo tempo em que permite um diálogo aberto a composições de décadas anteriores. Aliado ao trabalho fotográfico minucioso de Julia Liu, percebemos uma crescente opção pelo pop-art e pelas vanguardas artísticas de meados do século XX em uma agradável mescla com luzes neon e a angustiante técnica conhecida como “falha na transmissão”, utilizando-se da entrada de chuviscos e bugs na tela entre um bloco e outro. Além disso, conforme as entrevistas mergulham nos efeitos das drogas como Adderall, as construções cênicas são revestidas com um filtro embaçado e com pouca profundidade de campo, prezando pela acentuação de um único foco e de uma ambiência gera desfocada e intimista.
O mais novo documentário da Netflix funciona no que não deveria e deixa desejar onde não poderia. Ainda que tente sair dos convencionalismos narrativos, tal obra até consegue abrir outras portas para projetos futuros, mas não explora a potencialidade que tem do jeito certo - e considerando que é válido assisti-la mais por sua estética que pela história a ser contada, é meio óbvio que temos um problema estrutural a ser enfrentado aqui.
Take Your Pills (Idem, EUA – 2018)
Direção: Alison Klayman
Elenco: Eben Britton, Dr. Wendy Brown, Anjan Chatterjee
Gênero: Documentário
Duração: 87 min.
https://www.youtube.com/watch?v=X6Xebo1pngM
Crítica | Lara Croft: Tomb Raider - A Origem da Vida - Uma Sequência que Ninguém Pediu
Lara Croft: Tomb Raider tornou-se um sucesso de bilheteria; mesmo com sua pífia representação cinematográfica de uma das maiores franquias de games de todos os tempos, o público foi a delírio quando finalmente conseguiu ver uma das heroínas mais bad-ass do mundo da ação e da aventura receber um tratamento em live-action - e melhor: encarnada pelo incrível carisma de Angelina Jolie. Arrecadando mais de 270 milhões em seu box office mundial, era quase certo que a Paramount investisse mais uma vez em uma não tão aguardada sequência, intitulada A Origem da Vida e que traria a protagonista em mais uma perigosa jornada para salvar o mundo, a qual, do mesmo modo que o longa anterior, emerge como mais uma investida fracassada para o mundo dos jogos.
A fracassada rendição epopeica de Croft se expande mais uma vez para o mundo inteiro, agora colocando a heroína em uma busca pela Caixa de Pandora. É interessante ver esse intercâmbio entre culturas, seguindo o mesmo padrão que a iteração predecessora, de misturar diversas mitologias em um único cosmos, ainda que se mantenha em uma superficialidade excessiva. Esse talvez seja o ápice de uma narrativa saturada com acontecimentos inverossímeis, falta de senso lógico e resoluções tão ocasionais que chegam a ser risíveis - a começar pelas pessimamente construídas cenas de ação que mais se assemelham a um composé desequilibrado de cortes bruscos e câmera na mão.
Durante o primeiro ato, a personagem viaja até um templo submarino em pleno oceano Pacífico para resgatar um artefato místico e muito perigoso - uma orbe luminosa que contém a localização de um dos objetos mais aterrorizantes da História. Para que não caia em mãos erradas, esse mapa nem um pouco convencional deve ser mantido a salvo - mas é claro que, por um infortúnio do destino, agentes do serviço secreto chinês que trabalham com um dos vilões mais blasés que já perscrutaram as telonas, Jonathan Reiss (interpretado pela esquecível presença de Ciarán Hinds). Entretanto, é cômico ver como esses caçadores de recompensas conseguem roubar a orbe das mãos de Croft, atirando uma flecha que nem mesmo a pega de raspão e que, de alguma a forma, a faz derrubar o objeto nas mãos do inimigo.
As coisas só pioram depois disso: o diretor Jan de Bont parece copiar os trejeitos clichês de Simon West, não sabendo como arquitetar uma boa sequência de luta ou até mesmo como construir uma atmosfera tensa e envolvente, salvo por alguns breves momentos no segundo ato e no terceiro. Entretanto, De Bont se respalda demais em elementos intransigentes à narrativa, incluindo a melodramática trilha sonora que basicamente é composta com os formulaicos instrumentos de corda e um escopo pedante à catarse. Mas não podemos culpá-lo por completo, visto que o roteiro assinado por Dean Georgaris não honra o material original e apenas pontua várias frases feitas para fazer o mínimo de esforço à narrativa - e isso inclui metáforas repetitivas, discursos ridículos e desfechos inenarráveis de tão ruins que são.
Ao menos Jolie consegue despontar como uma sutil melhora para essa desnecessária sequência. Abandonando um forçado sotaque britânico, ela preza por uma naturalidade bem-vinda que predomina por grande parte do filme, ainda que em alguns momentos ela traga expressões faciais canastronas, principalmente nas cenas de luta. Mas sem dúvida seu comprometimento com o filme é muito maior que o seu colega Gerard Butler, que dá vida ao ex-oficial da marinha escocesa e mercenário Terry Sheridan. Diferentemente da primeira história, aqui a narrativa se preocupa em introduzir e traçar uma leve linha de relacionamento entre os personagens, abandonando o foreshadowing inexistente e permitindo que o público fique inteirado acerca dos personagens coadjuvantes. Croft vai atrás de Terry, que também é seu ex-amante, para recrutá-lo nessa perigosa aventura.
Ainda que o primeiro ato se desenrole de modo acompanhável e até mesmo interessante, o roteiro não sabe em que direção seguir - e nem mesmo pensa em recuperar alguns aspectos da clássica jornada do herói para fornecer um pouco de base estrutural aos seus protagonistas. Em vez disso, torna-se um escopo presunçoso recheado com inúmeras sequências ao “melhor” estilo pancadaria para preencher lacunas e furos.
O deslize mais doloroso, porém, insurge com a pífia montagem. Basicamente, o filme tem quatro finais; seu tempo de exposição é tão desnecessariamente longo que torna-se cansativo além do normal - e, ao contrário de Lara Croft: Tomb Raider, não temos uma linha narrativa que segue determinada cronologia e funciona como peças de um quebra-cabeça, mas sim blocos justapostos que se assemelham a curtas-metragens independentes. Cada uma dessas tramas tem início, meio e conclusão, por mais superficiais que sejam - e eventualmente cansamos de revirar os olhos quando o fade out logo dá margem para mais uma construção envolta em tiros e mortes aleatórias.
Ainda que tenha feito um modesto sucesso na bilheteria - arrecadando pouco menos que o dobro de seu pequeno orçamento -, A Origem da Vida apenas reafirma o conceito senseless e quase ridículo de tão surreal de uma franquia que não deveria existir. Mais uma vez, nada se salva aqui - e talvez esse tenha sido o pontapé inicial para a onda de remakes de jogos que iria se estabelecer na década de 2010, infelizmente.
Lara Croft: Tomb Raider - A Origem da Vida (Lara Croft: Tomb Raider - The Cradle of Life, EUA - 2003)
Direção: Jan de Bont
Roteiro: Dean Georgaris
Elenco: Angelina Jolie, Gerard Butler, Ciarán Hinds, Chris Barrie, Noah Taylor, Djimon Hounsou, Til Schweiger, Simon Yam, Terence Yin
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 117 min