Crítica | Dear White People: 2ª Temporada - A Irônica Acidez da Verdade

Crítica | Dear White People: 2ª Temporada - A Irônica Acidez da Verdade

Dear White People é, sem sombra de dúvida, uma das séries mais importantes da atualidade. Na crítica sobre a primeira temporada (que você confere aqui), falamos sobre todo o respaldo social de grande valia para compreendermos os conflitos e as discussões acerca de raça, escravidão, racismo estrutural, privilégio branco e inúmeros outros temas tratados de uma forma tão ácida e verdadeiramente irônica que tentar refutar quaisquer argumentos utilizados pelos personagens é cair no ridículo e no desnecessário - afinal, se há um grupo de pessoas que sabe o que é sofrer preconceito por causa da cor da pele, são os negros. E, como podemos imaginar, cada um dos arquétipos apresentados nessa soberba dramédia não tem papas na língua e jogará na cara tudo o que fazemos de errado - ainda que sem perceber.

No mais novo ano que se inicia na Universidade Winchester, retornamos para os incrivelmente bem construídos dormitórios da Armstrong-Parker, abreviada para AP e que, como podemos nos recordar, funciona como um movimento de resistência da comunidade negra e de sua constante luta para entrar nos mesmos espaços ocupados majoritariamente pelos brancos. Diferente da temporada predecessora, em que Sam (Logan Browning) nos apresenta ao seu programa radiofônico Cara Gente Branca - que empresta o nome para a série - e utiliza isso para desmascarar grande parte dos problemas naquela famigerada instituição acadêmica, o aplaudível elenco retorna enfrentando problemas angustiantes e de âmbito tanto pessoal quanto social. A começar que nossa protagonista passa a enfrentar ataques diretos de um hater-troll intitulado AltIvy através das redes sociais, que insiste em diminuir a sua luta com comentários ofensivos e de cunho extremamente fascista.

O problema é que, o que começou como consequência esperada do breakdown de Troy (Brandon P. Bell) na season finale passada, tornou-se uma crescente ideologia de resposta ao movimento negro que ganhou inúmeros seguidores e fez cada um dos nossos queridos personagens ceder à isca plantada. O perfil em questão conseguiu milhares de seguidores em tempo recorde, disseminando um discurso de ódio que atinge proporções assustadores ao longo dos dez novos episódios e leva os protagonistas ao auge da loucura e do ódio coletivo - e tais sentimentos são usados até mesmo contra eles mesmos para desprezá-los ainda mais. O pano de fundo até mesmo explora, retornando com a montagem característica da série: a mescla entre passado e presente, a preferência pela simetria propositalmente excessiva, os plongées e contra-plongées quase absolutos, entre outros aspectos.

De qualquer modo, toda a estrutura da série segue um padrão de ostentação pura ao mesmo tempo em que entra em discordância com os personagens que apresenta e as histórias que resolve contar. Logo, é aplaudível o modo como o time de diretores e roteiristas ganha espaço para ousar, desde o posicionamento de um narrador onisciente (Giancarlo Esposito) que ganha uma materialização própria com o final do último episódio, até a quebra da quarta parede que intertextualiza uma metalinguagem incrivelmente bem orquestrada. Isso não se restringe apenas a um protagonista, como visto por exemplo em House of Cards, mas estende-se para todos os outros. É como se, em uníssono, o grupo dissesse “olhe as barbaridades pelas quais eu passo. Veja como não fazemos drama”.

As subtramas dão espaço mais que o suficiente para trabalhar suas personas. Uma delas, além de Sam, recebe uma atenção em dobro - e insurge na construção de Lionel (DeRon Horton). Aqui, o aspirante à jornalista sai de sua concha de introspecção para ganhar uma delineação forte, passível até mesmo de surpresa por grande parte do público, à medida que ganha voz no The Independent ao escrever um artigo sobre o financiamento e a corroboração da casa AP com empresas preconceituosas e mercenárias. Além disso, é divertido ver uma quebra em toda essa seriedade nas sequências em que abraça cada vez sua orientação sexual, procurando dispor-se dos meios necessários para “se enturmar” - e eventualmente encontrar um par romântico com o sedutor Wesley (Rudy Martinez que, ao lado de Horton, cria uma química fantástica).

Além do balanceamento entre tragédia e comédia que se apossa da série, o showrunner Justin Simien alcança sucesso ao adicionar alguns elementos de irreverência cênica, trabalhando os conceitos de trabalho filmado ao mesmo tempo em que cria pequenas obras de arte com a câmera. Desse modo, ele também consegue explorar outras vertentes narrativas, transitando entre as inúmeras construções imagéticas com o propósito que bem quiser -e não é à toa que nos primeiros episódios as críticas sociais também deem lugar a um mistério envolvendo anos de apagamento histórico dos negros, escravidão e sociedades secretas (e é aqui que a metalinguagem torna-se mais profunda e sagaz).

De fato o show se vale bastante de discursos progressistas para embasar a motivação de seus personagens. O embate entre uma classe subjugada por séculos de tortura e um extremismo exacerbado que até mesmo serve como reflexo de certos setores da sociedade contemporânea - assustadoramente mais do que deveria - chega a ser angustiante para o espectador e, caso tenha incomodado mais que o necessário, é porque atingiu o objetivo principal de levar à reflexão. Até mesmo os momentos de descontração partem de uma perspectiva ao qual a parcela “dominante” e privilegiada - homens heterossexuais brancos e de renda média-alta - não compreenderiam. Porque, como já dito inúmeras vezes, “cara gente branca: esta série não é sobre você”.

A segunda temporada de Dear White People vai muito além do que esperávamos e não se importa em criar uma atmosfera tensa para dizer exatamente o que tem que dizer. De modo indescritível, ela não satura os discursos políticos dos quais se vale e nem das ideologias que carrega - e abre margens para debates que realmente deveriam acontecer na vida real.

Dear White People – 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2018)

Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai 
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.

 


Crítica | Unbreakable Kimmy Schmidt - 4ª Temporada: Parte 1 - Quando Kimmy Finalmente Cresceu

Crítica | Unbreakable Kimmy Schmidt - 4ª Temporada: Parte 1 - Quando Kimmy Finalmente Cresceu

Kimmy está de volta – e infelizmente para seu último ano. E sim, esta é uma notícia de grande infortúnio e dor, visto que Unbreakable Kimmy Schmidt chegou ao seu último ano na Netflix após quatro anos arrancando as mais irreverentes risadas de um crescente público. Apesar da triste notícia, a série criada por Robert Carlock e Tina Fey manteve-se em suas estruturas originais ao mesmo tempo em que expandiu a “mitologia” – se é que podemos chamar assim – acerca de cada um dos personagens principais: na verdade, o termo mitologia consegue até mesmo manter a dualidade de existência-inexistência desses tipos sociais que fazem referência às vertentes teatrais italianas conhecidas como commedia dell’arte, mas elevadas a um nível incomparável de absurdez.

Se pensávamos que Kimmy Schmidt (Ellie Kemper) havia mergulhado em um brusco coming-of-age após passar quinze anos enclausurada em um bunker, estávamos totalmente errado. É claro que, enfrentar uma Nova York da virada do século e não saber mais como é o mundo em que se vive é sempre um desafio, mas a nossa heroína apenas começara os seus grandes passos nas perigosas ruas da cidade que nunca dorme. Ainda que tenha evoluído psicologicamente e tenha compreendido alguns trejeitos para sobreviver na compulsoriedade cotidiana americana, é apenas nesta primeira parte do mais novo ano que ela compreende as responsabilidades de ser uma mulher adulta e todos os obstáculos que irá enfrentar – tudo mergulhado em uma crítica tão clara e tão ácida que chega a ser comicamente angustiante assistir a cada uma das cenas.

A protagonista, agora, faz parte de uma empresa de tecnologia cuja vaga conseguiu pelo carisma e pela indubitável inteligência emocional que sempre fez parte de si, até mesmo quando presa no bunker. Entretanto, ao contrário de se respaldar em traumas passados, ela olha para o futuro e não é assombrada diretamente pelas ações extremistas do Reverendo Richard Wayne (Jon Hamm, que faz uma pequena ponta nessa temporada); ela tem outras preocupações, inclusive manter uma nova rotina que nunca antes fizera parte de sua vida. Mas as coisas não são tão mágicas, quanto ela esperou, e ela acaba por cair em uma acusação de assédio sexual após demitir um dos funcionários da companhia – que, representando muito bem o estilo de Fey e de Carlock, serve como um reflexo mais brando do que enfrentamos ano passado no complicado mundo do entretenimento.

Enquanto isso, Titus (Tituss Burgess) e Jacqueline (Jane Krakowski) mantém-se em uma quase impossível relação de trabalho em que a outrora rica dona de casa experenciou algumas das tortuosas linhas do destino após separar-se do marido infiel e se tornou uma caça-talentos e agente. Titus, por sua vez, conserva sua adorável personalidade egocêntrica e talentosa que também sofre pela perda do namorado Mike (Mike Carlsen), ainda que quietamente. Todo esse confronto interno é traduzido em formas de diálogos hilários e que aprofundam a relação que tem com Jackie e Kimmy, bem como com outros coadjuvantes que também aparecem em cena uma vez ou outra – e que são de extrema importância para uma epifania inesperada, por exemplo.

Se todos passam por arcos de amadurecimento e confronto de seus obstáculos, isso não poderia ser diferente com Lillian (Carol Kane), a proprietária do buraco em que Titus e Kimmy vivem. Retornando com seus irreverentes e verdadeiros discursos sobre o crescimento da gentrificação e da brusca mudança pela qual sua comunidade passou nos últimos anos, ela abandona sua caricatura de escape cômico e ganha um arco dramático mais refinado, porém tão rebelde quanto sua personalidade. Isso se mantém até os momentos finais dessa primeira parte, na qual ela conhece a “inexistente” família de seu ex-amante, Artie (Peter Riegert), e se torna parte de um núcleo muito maior do que esperava.

Apesar dessa preocupação com o arco de cada um dos protagonistas, a série peca em trazer um filler que não se mostra tão necessário ou pertinente – pelo menos não em sua completude. No terceiro episódio, intitulado Party Monster: Scratching the Surface, Kimmy e Titus acham um documentário muito familiar na HouseFlix (coincidência? Acho que não) que fala sobre a história do Reverendo Wayne/DJ Lizzard, trazendo a interminável história das Mulheres-Toupeira e do fato de sua prisão ser errada. Apesar da “seriedade” estilística do mockumentary funcionar como um reflexo e uma pesada crítica social, bem como grande parte da série, tal episódio não é tão impactante ou envolvente quanto os outros e representa uma queda de ritmo narrativo muito grande para a série, ainda mais por durar o capítulo inteiro.

A primeira parte da última epopeia de Kimmy Schmidt tem seus errinhos, mas ainda é extremamente satisfatória. Sempre inovando e, ao mesmo tempo, trazendo elementos universais para um cosmos universalmente conhecido pelo telespectador – a comédia escrachada -, a série começa sua despedida do melhor jeito possível. Agora, é só esperarmos a próxima leva de episódios chegar.

Unbreakable Kimmy Schmidt – 4ª Temporada: Parte 1 (Idem, Estados Unidos – 2018)

Criado por: Robert Carlock, Tina Fey
Direção: Tristram Shapeero, Rhys Thomas, Claire Cowperthwaite, Claire Scanlon, Jude Weng
Roteiro: Sam Means, Dan Rubin, Meredith Scardino, Leila Strachan, Robert Carlock, Nick Bernardone, Tina Fey
Elenco: Ellie Kemper, Tituss Burgess, Carol Kane, Jane Krakowski, Mike Carlsen, Dylan Gelula, Amy Sedaris
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Comédia
Duração: 23 min.


Crítica | 13 Reasons Why: 2ª Temporada - O Retorno de Hannah Baker

Crítica | 13 Reasons Why: 2ª Temporada - O Retorno de Hannah Baker

13 Reasons Why mostrou-se uma série problemática desde a época de sua pré-produção – e um dos grandes motivos foi a sua “boa intenção”. Para aqueles acostumados a adotarem ditados populares ao mais comum dos cotidianos, sabemos que de boas intenções, o Inferno está cheio. E levando em consideração que o romance assinado por Jay Asher em 2007 tornou-se uma importante obra para compreendermos as consequências do constante bullying, quebrando tabus endossados pelo conservadorismo excessivo de nossa sociedade – como as discussões sobre maus-tratos em escola, depressão e suicídio -, Selena Gomez parece ter-se respaldado de forma equivocada quanto ao tratamento desses assuntos para um meio muito mais acessível e utilizado pelas novas gerações: as plataformas de streaming.

A série, composta de treze episódios, mostrou-se dotada de pontos positivos – mas os negativos infelizmente falaram mais altos: ao que podemos depreender do resultado final, inúmeros gatilhos além dos anunciados antes do início dos episódios foram jogados através das múltiplas subtramas e trouxeram vários vícios para as telinhas, incluindo tratar o suicídio da protagonista Hannah Baker (Katherine Langford) de forma estilizada e romantizada (e aqui menciono a romantização no momento em que a personagem resolve realizar as fitas para se vingar. É claro que há muita discussão em jogo aqui, mas não podemos deixar de lado que isso acontece, e mais de uma vez, ao longo do show).

Quando a Netflix finalmente tomou a decisão de renová-la para a segunda temporada, confesso que fiquei com um pé atrás. Não havia nenhum motivo concreto para manter mais treze episódios em continuidade – ainda mais porque a obra de Asher se encerra com o season finale anterior. Talvez o time de roteiristas coordenado pelo showrunner Brian Yorkey ganhasse um espaço maior de criação e possibilidade de acertar alguns erros estruturais cometidos na temporada predecessora, como a falta de ritmo. Mas como se poderia continuar a história de Hannah? Felizmente, as previões foram cumpridas e Yorkey conseguiu nos fornecer um lado que até então havia sido esquecido e que tornou-se foco da nova iteração: as consequências para Olivia Baker (Kate Walsh) e uma perspectiva oculta dos participantes desse trágico acontecimento.

Primeiramente, devo dizer que mudar o foco da narrativa e transformá-lo em um importante julgamento entre a família Baker e a Liberty High School foi uma saída de interessante. O deslize, ao contrário do ano anterior, não foi desenvolver apenas uma longa linha narrativa de forma monótona e quase desistiva, mas sim delinear inúmeras subtramas que, em grande parte, não conseguem ter o desenvolvimeto necessário mesmo com treze novos episódios de quase uma hora de duração cada. Temos as subtramas mais importantes, como a de Olivia e a de Clay (Dylan Minnette), que luta para conseguir que a justiça seja feita para Hannah e para um dos principais culpados de toda a história, Bryce (Justin Prenticen), mas também há inúmeros envolvimentos românticos, a manutenção de quase todos os personagens e a adição de coadjuvantes que uma vez ou outra trazem algo de necessário para a série.

Yorkey preza pela tentativa de prosseguimento dos envolvidos no suicídio de Hannah e como cada núcleo mais intimista segue uma linha progressiva de puro declínio e ruína. Jessica (Alisha Boe) enfrenta seus demônios interiores e luta para conseguir se reestabelecer em um microcosmos – a escola – extremamente opressora e passiva em relação a seus alunos; Alex (Miles Heizer), após sair de seu coma, passa os dias vivendo com uma grande lacuna em suas memórias e se vê incapacitado de poder ajudar no julgamento; o “fugitivo” Justin (Brandon Flynn) retorna de modo triunfal para a série em um dos melhores arcos de redenção para a nova temporada – e não, ao contrário do que podemos pensar, ele não se torna uma vítima das circunstâncias, e sim enfrenta as consequências de sua cumplicidade criminosa.

Se por um lado 13 Reasons Why faz um belíssimo trabalho expandindo o núcleo de seus protagonistas e inclusive colocando inúmeros críticas para as falhas do sistema judiciário e punitivo da sociedade em que vivemos – não é à toa que o desfecho da narrativa principal mantém-se fora dos clichês –, ela peca no quesito equilíbrio. A mudança atmosférica entre as construções cênicas é brusca e sem qualquer preparação, e isso também se estende para os novos coadjuvantes; o roteiro não faz bom uso do potencial dessas adições pelo fato de elas existirem em uma saturação além do necessário. No final das contas, parece que o próprio universo faz questão de eliminá-los sumariamente para destituir de pesos mortos, mantendo aquilo que se mostra pertinente e depois retornando ao acaso com os “excessos”.

A falta de estruturação é, de certa forma, compensada com uma estética bem pensada. Seguindo uma fórmula mais ou menos parecida com o ano anterior, temos dois momentos distintos: aqueles no tempo presente e aqueles que trazem a viva memória de Hannah – e gostaria desse momento para mencionar que a ainda protagonista retorna também como fantasma pessoal de Clay -, mas de uma perspectiva verdadeira e que não nos havia sendo apresentada.

A direção de arte e de fotografia conversam entre si para construir uma identidade imagética própria para o antes e o depois, prezando por uma paleta mais dinâmica e mais quente para os momentos em que a personagem de Langford estava viva e contrastando-a com uma neutralidade angustiante e doentia da cronologia atual. Essas escolhas também auxiliam nas incríveis performances dos atores e atrizes, que valem-se de uma entrega soberba e emocionante – e aqui também tiro momento para mencionar a performance de Flynn e Boe, cuja química quase transcendente os limites da tela.

Mesmo com os despontes, os equívocos parecem falar mais alto e, ainda que a explicitez desnecessária e os gatilhos não informados deixem de existir em uma completude quase total, algumas sequências de flashbacks ou para a resolução de arcos são depressivas, para não dizer mórbidas. O foco desliza gradativamente para algo que poderia ser mostrado de outra forma, mas que segue um padrão de inúmeras outras obras que já se utilizaram do mesmo convencionalismo explicativo – em diversos momentos, a série faz referência ao incrível documentário Tiros em Columbine, mas não do modo aplaudível como deveria ser apresentado.

13 Reasons Why ainda se mostra como um produto maçante. A quantidade de episódios e de subtramas serve mais como tapa-buracos que qualquer outra coisa – e detalhe: se a primeira temporada trouxe temas importantes para colocar em pauta dentro da nossa sociedade, essa preocupação, ainda que distorcida, deixa de existir no novo ano, dando lugar a construções melodramáticas e desinteressantes.

13 Reasons Why - 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2018)

Criado por: Brian Yorkey
Direção: Gregg Araki, Karen Moncrieff, Eliza Hittman, Michael Morris, Kat Candler, Jessica Yu, Kyle Patrick Alvarez
Roteiro: Brian Yorkey, Thomas Higgins, Marissa Jo Cerar, Hayley Tyler, Nic Sheff, Julia Bicknell, Felischa Marye, Rohit Kumar, Kirk Moore
Elenco: Dylan Minnette, Katherine Langford, Christian Navarro, Brandon Flynn, Justin Prentice, Miles Heizer, Alisha Boe, Ross Butler, Devin Druid, Amy Hargreaves, Derek Luke, Kate Walsh
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Drama
Duração: aprox. 59 min.

https://www.youtube.com/watch?v=qvWpoDTAYjM


Crítica | 3%: 2ª Temporada - Os Dois Lados da Moeda

Crítica | 3%: 2ª Temporada - Os Dois Lados da Moeda

A Netflix sempre prezou por uma constante renovação de seu catálogo e pela geométrica produção de conteúdo original – e uma das grandes sacadas realizadas pela gigante do streaming foi se aproximar do crescente público brasileira ao arquitetar a primeira série nacional, cuja ideia principal era abrir portas para novos produtos audiovisuais que se afastassem do escopo novelesco ou comédia pastelão pelo qual nossa indústria cinematográfica e televisiva é conhecida. E foi assim que, em 2016, foi lançado 3%, um show que trouxe suas imperfeições, porém serviu como pontapé inicial para uma nova visão acerca da arte brasileira – afinal, esta é uma das poucas narrativas que atualmente se inclina para o gênero futurista-distópico. O eminente sucesso permitiu sua quase certeira renovação, e felizmente a equipe por trás da segunda iteração alcançou um novo patamar.

Como é de praxe, sempre que lidamos com um cosmos da ficção científica, somos primeiro apresentados às regras; logo depois, aos personagens-pivôs que continuaram ou desmantelarão o status quo, buscando a insurgência de uma nova ordem em detrimento de um conservadorismo exacerbado. Haverá conflitos, motins e sacrifícios necessários para o desenrolar da trama – e, se tudo der certo, o ápice trará uma verdade incontestável e uma irreversível e brusca mudança; é esse o caminho que a série traça e, mesmo com uma inovação no quesito técnico-artístico, algumas falhas ainda são bem perceptíveis, principalmente no tocante aos diálogos, que rendem-se às alternativas charlatonas para dar impulso a um evento importante.

Já passou um ano desde que o 104º Processo, responsável por selecionar os 3% da população do Continente que merece mudar de vida e ir ao Maralto, aconteceu; como bem sabemos, máscaras caíram, aliados foram construídos, amizades acabaram e o grupo de protagonistas ao qual fomos apresentados há algum tempo não existe mais. Michele (Bianca Comparato) agora vive nos luxos e no conforto de seu novo lar, tentando lidar com as traições às quais se submeteu para reencontrar o irmão André (Bruno Fagundes), o qual havia sido dado como morto, porém está preso em confinamento pelo primeiro assassinato do Novo Mundo. E é claro que, por trás das distorcidas promessas, há a figura do tirano e conturbado Ezequiel (João Miguel retornando em grande forma para a série), mantendo tudo sob controle e impedindo que quaisquer obstáculos ameacem romper.

Do outro lado, voltamos a acompanhar a saga de Joana (Vaneza Oliveira), desistente do Processo que procura destituir de vez todo o falho conceito de meritocracia que é explorado e criticado diversas vezes ao longo dos dez novos episódios. Ela, em determinado momento, cruza caminho com o grupo conhecido como A Causa, mencionado no ano predecessor e que aqui ganha mais delineações e complexidade para fundar uma segunda camada para a sociedade que nos é apresentada – é interessante notar também que, à medida que percebemos a profundidade narrativa ganhando bastante força, até mesmo as técnicas utilizadas para a filmagem são repaginadas com novas investidas, afastando-se dos vícios de linguagem como plano holandês e câmera na mão para retomar o classicismo das séries dramáticas de forma coesa e, ao mesmo tempo, original.

Michel Gomes também retorna para série no papel de Fernando, cujo arco de enganação o transformou em alguém amargo e sem qualquer esperança. Sua mentalidade, agora mais clara depois de ter falhado nas “missões”, é extremamente rebelde, fator que aumenta as rixas com a igreja comandada por um alienado pai, e suas tentativas fracassadas de impedir que os jovens de vinte anos entrem para o Processo por tratar-se de uma análise nem um pouco coerente das habilidades de cada um baseando-se em provas que não medem absolutamente nada. Esse discurso revolucionário acompanha, ainda que de forma indireta, cada um dos personagens, incluindo aqueles que dão às caras só agora. Uma dessas novas entradas vem em Marcela (Laila Garin), uma das líderes do exército do Maralto que é protagonista de uma das viradas mais interessantes de toda a série; sua personalidade é moldada conforme as falsas ideologias do Casal Fundador – que nos é explicada conforme os capítulos se desenrolam – e, aqui, ela também serve como a principal antagonista e empecilho para a fluidez dos nossos heróis. É possível até traçar paralelos entre ela e outras figuras da cultura pop contemporânea, incluindo os tiranos Presidente Snow, de Jogos Vorazes, e Ava Paige, de Maze Runner, seja pelos objetivos, seja pela construção cênica.

Não podemos dizer que César Charlone e Pedro Aguilera não tenham aprendido com os insuportáveis deslizes da primeira temporada; aqui, tanto o criador quanto o produtor executivo percebem que é possível explorar ainda mais aquilo que criaram, expandindo de forma exponencial todos os pequenos núcleos atmosféricos e narrativos e criando cenários que definitivamente não esperávamos ver, ao menos por enquanto. A montagem oscila entre o Maralto e o Continente, e ainda que possa parecer saturado, consegue dar sustância o suficiente para cada um dos protagonistas e coadjuvantes, mostrando a relação de interdependência entre cada um, levando a outro nível a ideia de relação simbiótica: Fernando, por exemplo, é respaldado pela melhor amiga Glória (Cynthia Senek), a qual tem relação até mesmo com sua paraplegia. Por vezes, o roteiro peca no excesso de tragédia e drama e a deixa um tanto quanto previsível, mas na maior parte as coisas funcionam e acabamos criando um laço com essa personagem.

A organicidade com a qual tudo flui é outro ponto a ser mencionado. Glória também puxa algumas presenças interessantes para a nova subtrama a ter início e consegue conversar com figuras cuja relação é palpavelmente inexistente, mas que traz um sentido anacrônico. O mesmo pode ser dito entre Michele e André, que traçam paralelos com a história do Casal Fundador – e aqui está o plot twist: o Casal, na verdade, era um Trio que entrou em discordância e acabou sofrendo uma brusca perda acidental de uma das idealizadoras do Maralto, cuja linha nunca prezara pelo Processo, mas sim para condições de vida igualitárias. Aproveito o momento para mencionar a incrível performance de Maria Flor, Fernanda Vasconcelos e Silvio Guindane como o grupo em questão; os três trazem, em um necessário filler para a compreensão da história como um todo, uma química inigualável e que certamente envolve o espectador ao máximo.

Ainda que a melhora seja visível, não posso deixar de mencionar a falta de cuidado e de “polimento” de alguns aspectos dessa iteração: os figurinos, antes tratados com pouco detalhamento e que tornavam as coisas menos críveis, sofrem um “banho de loja” completo e até conseguem se aproximar do gênero sci-fi ao qual estamos acostumados. Entretanto, ainda não é o bastante para nos fazer crer por completo e mergulhar na proposta que Aguilera e Charlone tentam nos passar – e ambos fazem um bom uso da fotografia e da direção de arte para mascarar esses defeitos. Além disso, alguns diálogos também parecem saídos de uma caixinha de frases prontas, espalhadas profusamente para tapar eventuais buracos; o desfecho da segunda temporada passa por uma péssima escolha de palavras que até cria um cliffhanger considerável, mas moldado em cima do monótono “final feliz” fabulesco.

De modo geral, 3% tornou-se mais respeitável, não só por conseguir cumprir com as expectativas que prometeu e falhou no primeiro ano, e sim também por conseguir esmiuçar um outrora perdido potencial. De fato, não podemos tirar mérito da equipe por trás da série – e definitivamente pela constante tentativa de colocar os parâmetros da produção audiovisual brasileira em um patamar que se torna cada vez mais perto.

3% - 2 Temporada (Idem, Brasil – 2018)

Criado por: Pedro Aguilera
Direção: Daina Giannecchini, Dani Libardi, Jotagá Crema, Philippe Barcinski
Roteiro: Pedro Aguilera
Elenco: Bianca Comparato, Michel Gomes, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, João Miguel, Viviane Porto, Celso Frateschi, Sérgio Mamberti, Zezé Motta, Fernanda Vasconcelos, Maria Flor, Bruno Fagundes, Cynthia Senek, Laila Garin, Samuel de Assis, Thaís Lago
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Ficção Científica
Duração: 55 min.

https://www.youtube.com/watch?v=e95abAtA6wc