Crítica | I Comete: Um Verão na Corsega - Sociologia frustrada
O poder pode comprar qualquer coisa, até o respeito dos vizinhos. I Comete: Um Verão na Corsega, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, navega pelo mundo do poder e como o mesmo afeta os mais próximos, aos moldes de um filme de Richard Linklater - mas sem a eficiência do célebre cineasta americano.
Complicado em criar vínculo com qualquer personagem, o filme tem uma missão difícil de realizar. Vemos um verão quente em agosto de um vilarejo que, não tão discretamente, é comandado por uma família muito rica. Ali eles bebem toda noite, jogam ofensas pela tarde e acordam em suas mansões localizadas em paisagens lindas.
É compreensível o caminho que o diretor Pascal Tagnati tentou trilhar, chegando a ser um dos personagens afetados pela família. Mas com exceção deste, que tem um punhado de cenas, e um fazendeiro local que rende a melhor cena do filme, nenhum outro serve de catalisador para o espectador curtir a experiência. Até tem um personagem construído como alívio cômico, sempre falando em sexo, mas de nada serve quando se é um dos subordinados da família.
Há dois pontos que considero positivo entre elenco e trama: não é necessário anotar nomes ou acompanhar arcos, e toda cena de festa é agradável pela participação dos personagens bêbados estarem falando vulneravelmente. Nada a mais nesse filme se salva. Há uma subtrama sobre adoção e herança que até Tagnati desiste de desenvolver em certo ponto.
Os atores estão completamente naturais, dado o fato da falta de texto para trabalhar. Uma personagem que entra e sai do filme de maneira abrupta, entrega um monólogo perdido, que poderia ter ajustado o curso da história.
Não que temas como esse não devam ser abordados, vide Glauber Rocha e seu média Maranhão 66, em que ele acompanhou a comitiva de José Sarney na terra que lhe pertence e viu a barbárie, pegando elementos que depois evoluíram para Terra em Transe. Existe um porquê e dois lados bem trabalhados da história
I Comete começa como um filme adolescente no campo, e termina como uma aula de sociologia frustrada.
I Comete: Um Verão na Corsega (I Comete: A Corsican Summer, França - 2021)
Direção: Pascal Tagnati
Roteiro: Pascal Tagnati
Elenco: Jean-Christophe Folly, Pascal Tagnati, Cédric Appietto, Apollonia Bronchain Orsoni, Jérémy Alberti, Davia Benedetti
Gênero: Drama
Duração: 127 min
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Crítica | Pegando a Estrada - Um road movie sensacional
Viagem em família nunca é algo fácil, mas esse road movie faz com que você queria estar no carro junto dessa família. Pegando a Estrada, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um daqueles filmes que lhe pega pela mão durante toda a sua exibição.
O longa acompanha uma família caótica, comandada pela mãe prestativa e sempre de bom humor, o pai com a perna quebrada, o filho mais novo com uma energia fora do normal e o misterioso filho mais velho. No porta malas ainda tem a cachorra, com uma doença terminal. Eles estão na estrada para se despedir do filho mais velho, que sairá do país por alguma razão.
Se a sinopse lhe pareceu vaga, é porque de fato é. Entenda que, o diretor e roteirista Panah Panahi não quer que o espectador reflita sobre as paisagens acidentadas ou até mesmo os riscos de uma viagem secreta. O exercício, muito bem feito, é de curtir os últimos momentos da família, dentro do carro que representa a união deles, querendo eles ou não.
Panahi consegue levantar com um bom alicerce todos os defeitos e qualidades de cada um, usando apenas a sequência inicial. Há também momentos únicos entre cada geracional. Tem um momento espetacular em que mãe e filho dividem um cigarro, e aos desavisados, pode levar às lágrimas.
Pantea Panahiha interpreta com gosto uma mulher jovem, que sabe da responsabilidade que tem com os filhos, ao mesmo tempo que curte uma música no último volume na estrada. Sem sua performance, talvez o filme não tivesse a emoção necessária para dar avanço na história. Hasan Majuni também eleva o nível com seu sarcasmo como pai. O ator, interpretando com um gesso na perna, rende momentos hilários conforme situações vão acontecendo. Parece mais ser aquele tio do "pavê ou pra comer".
Já Amin Simiar embarcou com vontade no mistério do filho mais velho, que muitas vezes deixa a desejar em não se conectar muito com os outros. O que deveria ser uma despedida dele, fracassa devido a má conexão com o personagem. E por último e não menos importante, Rayan Sarlak como o caçula rouba as cenas que aparece. É difícil me conectar com crianças em filmes, mas aqui o menino parece estar atuando no método, sem nenhum receio em realizar até humor físico no decorrer do filme.
Nada melhor do que um road movie para explorar as muitas paisagens do Irã. É um lado ainda desconhecido para o cinema. Montanhas, estradas de terra, pousadas e vilarejos são fotografados de maneira cartão postal. Já nas cenas dentro do carro, é importante compreender que Panahi não nos coloca como voyeurs, pela lateral ou frente, mas dentro, como o quinto integrante da família.
Poucos são os filmes cuja história termina dá saudades. Pegando a Estrada pode fazer você questionar quem são aquelas pessoas, e se você pode ir tomar um café na casa delas. Eu vou.
Pegando a Estrada (Jaddeh Khaki, Irã - 2021)
Direção: Panah Panahi
Roteiro: Panah Panahi
Elenco: Hassan Madjooni, Pantea Panahiha, Rayan Sarlak, Amin Simiar
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 93 min
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Crítica | Os Inventados - De encontro aos sonhos
Quando mergulhamos em sonhos e tentamos buscar seus significados, acabamos esbarrando em muitas decepções. Os Inventados, filme que faz sua estreia mundial na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é uma produção argentina que se qualifica na mesma categoria dos sonhos.
Como base temos o personagem de Lucas, um ator que começou muito novo em um programa infantil, uma espécie de Chiquititas, que teve grande repercussão mas não lhe trouxe carreira. Divido entre telemarketing e uma infinidades de testes para comerciais, ele resolve encarar um workshop de atuação intensiva, onda cada participante deve permanecer no perfil que criar. A partir daí as coisas ficam interessantes.
A direção assinada a três mãos - Leo Basílico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodriguez Pandolfi -, consegue diluir o que talvez se tornasse uma crítica à atuação de método em uma espécie de thriller, onde sonhos são bem aceitos como respostas. Os três, que também assinam o roteiro, parecem estar mais interessados na desconstrução de uma personalidade do que de fato compreende-la. Lucas, o protagonista interpretado por Juan Grandinetti, é um bom exemplo de como apresentar de maneira rápida e eficaz quem iremos acompanhar, sem esperar mais nenhum desenvolvimento.
Grandinetti faz uma escolha para sua atuação que poucos conseguem administrar: o rosto vazio. Cada situação nova que ele enfrenta, seja as frustrações no trabalho ou no workshop, sempre permanece com semblante neutro. Isso funciona em certas partes, onde ele precisa refletir o que está acontecendo, mas peca em outras, quando é ele quem deveria agir.
No elenco de apoio temos uma variedade de experimentos, onde apenas uma personagem se destaca: Verônica, interpretada por Verónica Gerez. Ela serve como grande catalisador para toda trama acontecer, pois é seu mistério e carisma que levam Lucas a se inscrever no curso. Gerez ainda faz uma dança interessante entre abraçar a estética do filme e ser, literalmente, uma escada para o protagonista.
Com o retiro cercado por mato e apenas uma piscina, a fotografia se joga na iluminação. Tem momentos bonitos, onde parece obedecer a estética de um filme tradicional e, em pontualmente, tenta algo novo - vide um plano de corrida noturna.
Não é um filme para todos, que já fique avisado. Encare com descrença e entre limpo pra assistir, o que talvez seja uma ponte entre realidade e os sonhos.
Os Inventados (Los Inventados, Argentina - 2021)
Direção: Leo Basilico, Nicolás Longinotti, Pablo Rodríguez Pandolfi
Roteiro: Leo Basilico, Nicolás Longinotti, Pablo Rodríguez Pandolfi
Elenco: Juan Grandinetti, Verónica Gerez, Rosina Fraschina, Sebastián Godoy, Gastón Dubini, Iván Moschner
Gênero: Drama
Duração: 90 min
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Crítica | No Táxi do Jack - Uma corrida inesquecível
O procedimento padrão é dar bom dia, entrar no taxi e começar o papo com o motorista por um assunto aleatório, na esperança que o mesmo de continuidade. No Taxi do Jack, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é justamente isso que a diretora Susana Nobre faz.
É interessante conhecer uma história sobre o ponto de vista de quem viveu. Sempre há aquela emoção na desconfiança se tudo dito é verdade, servindo de passa tempo a análise de cada exagero. Mas quando a própria pessoa é o exagero, a regra é acreditar. Joaquim é um português que foi tentar a vida nos EUA quando jovem, traduzindo assim seu nome para Jack. Hoje, já velho, coleta carimbo de empresas em entrevistas fajutas, para justificar o auxílio desemprego.
Não estranhe em achar a estética desse filme parecida com um documentário, pois Nobre veio dessa vertente e aqui realiza seu segundo longa-metragem de ficção. Ela sabe muito bem mesclar o uso de narração com sequências do dia do personagem. Os diversos momentos em que Jack pilota sua Mercedes, ajusta sua peruca exagerada e tem aulas de inglês, sempre bem embalados de uma trilha e um trecho de narração sobre o passado. Até suas escolhas estéticas, é como um daqueles filmes dos anos 60, com cores que saltam aos olhos e toda direção de arte fica visível. Tudo isso muito bem receptível aos olhos graças ao personagem principal.
Joaquim Veríssimo interpreta com maestria esse personagem, tão abstrato que chega a ser real. Aquele tipo de pessoa que você já deve ter visto em uma churrascaria ou aquelas paradas de estrada. Ele mesmo, antes de conhecer a diretora, praticava a coleta de carimbos para ganhar auxílio desemprego. E a todo momento, Veríssimo entrega uma nova qualidade ou defeito do personagem. Não sei até que ponto ele estudou os taxistas, mas também se destaca o seu tom e pausa durante a narração, como quem se concentra na estrada e dá uns picos na história quando olha pelo retrovisor ou para no farol.
Agora a maior qualidade desse filme fica com sua inesperada trama. Vai de 0 à 100 em um piscar de olhos, sem se preocupar com o ridículo. Os personagens secundários, as locações e até as músicas de fundo, contribuem para um show de imprevisibilidade. Só não chegou a perfeição devido à algumas questões técnicas, que parecem feitas de qualquer jeito, como as externas onde as pessoas – não figurantes – constantemente olham para a câmera, e isso consegue incomodar em certos momentos.
Para quem curte um filme sem os pés no chão, vale pegar carona no táxi do Joaquim, ou melhor dizendo: Jack!
No Táxi do Jack (Portugal - 2021)
Direção: Susana Nobre
Roteiro: Susana Nobre
Elenco: Armindo Martins Rato, Maria Carvalho, Joaquim Veríssimo
Gênero: Drama
Duração: 71 min
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Crítica | Coisas Verdadeiras - Uma história de amor padrão
Filmes de amores expressos tem uma cartilha com regras a serem seguidas. Em Coisas Verdadeiras, novo filme de Harry Wootliff, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, cada uma das regras é seguida de maneira rigorosa.
Se você já assistiu uma trama sobre alguém que se apaixona por outra completamente diferente e vira a vida de ponta-cabeça, não vai se surpreender com as reviravoltas ou momentos chave para a personagem de Katie, interpretada por Ruth Wilson. Ela é uma funcionária de banco no setor de atendimento ao cliente, que lhe rende frustrações diárias. Até que um cliente misterioso, apenas chamado de Loiro, lhe joga uma cantada e oferece uma saída da monotonia.
Wilson, que muitos conhecem da série His Dark Materials, faz uma interpretação até que coerente com a narrativa, caminhando entre a ingenuidade e empolgação de navegar em um relacionamento novo. As muitas cenas banais de carinhos e olhares ganham um certo apreço, e até cenas de "escreve-e-apaga" em discussões via celular tem seu próprio contexto, mas não dá para negar que Katie nada mais é do que uma releitura de qualquer personagem de um livro de Nicolas Sparks. O filme em si já é baseado em um romance, o que já diz muito.
Já no papel do misterioso Loiro, Tom Burke, que interpretou Orson Welles em Mank, consegue estragar a superficialidade do personagem querendo ir mais do que necessário. Muitas vezes considerei que se tratava de um fantasma, pois ele sempre aparece repentinamente onde Katie estiver, e desaparece logo em seguinte. Obviamente isso vem do roteiro, mas uma vez isso já estabelecido, o ator não precisava tentar emplacar maneirismos e jargões, deixasse apenas o reflexo em Katie ampliar a presença.
Após seu primeiro filme, Only You, também ser um estudo em relacionamentos relâmpagos, Wootliff adapta o romance e dirige o filme sabendo muito bem o público que deve agradar. Aposta no seguro, sem arriscar sequências mirabolantes ou novidades em arcos dramáticos. Ela se mostra pulso firme com o ritmo, uma das coisas boas do filme. Não há tempo a perder com os personagens. Só vemos o que precisamos para juntar o quebra-cabeça e bola para a frente.
Uma das frustrações com o filme foi a mixagem de som. Coisa pequena, mas me pareceu muitas vezes que o som ambiente ou de objetos estava sempre fora de sincronia ou terminavam na hora errada. Maior exemplo é uma cena externa que corta para interna e ainda é perceptível os mesmos carros e passos, como se fosse o mesmo plano.
Aos que gostam de um filme sobre relacionamentos abusivos, e querem ver algo diferente eu recomendo 9 Semanas e Meia, Namorados Para Sempre ou 500 Dias Com Ela. Coisas Verdadeiras é para assistir na chuva, fim de tarde, sozinho ou com a paquera, e depois ir fazer a janta.
Coisas Verdadeiras (True Things, Reino Unido - 2021)
Direção: Harry Wootliff
Roteiro: Harry Wootliff e Molly Davies, baseado na obra de Deborah Kay Davies
Elenco: Ruth Wilson, Tom Burke, Hayley Squires, Elizabeth Rider, Frank McCusker, Ann Firbank, Tom Weston-Jones
Gênero: Drama, Romance
Duração: 102 min
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Crítica | Lidando com a Morte - A indústria funerária em pauta
O capitalismo tem muitas ramificações, e uma das mais lucrativas é a funerária. Neste documentário dirigido por Paul Rigter, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entramos no mundo da religião como produto, e morte a moeda de troca.
Abordado ao longo de anos, Lidando com a Morte (Dood in de Bijlmer, 2020) tem a vantagem de ver o progresso de sua pesquisa se tornar respostas. O documentário segue Anita, gerente de uma empresa funerária que entrega velórios customizado para cada religião, sejam aqueles com danças na rua até o tradicional cristão, com velas e uma oração.
É complicado compreender o mecanismo de início, tendo em vista que não há mal algum em querer ofertar, por exemplo, um rito islâmico para alguém longe de sua terra natal. Mas tudo abre a perspectiva quando o foco documental se pende para a abertura de uma nova filial em Amsterdã. É nas entrelinhas que vemos a falta de sensibilidade e sentimentos. A conversa com empresas similares, tentando adquiri-las para o empreendimento, os muitos estudos de mercado para compreender quais ritos estão faltando nas unidades mais próximas. Realmente um foco em se tornar a empresa mais abrangente.
Rigter, em seu primeiro trabalho documental, tem um cuidado em representar e entrecortar os ritos, mostrando suas falhas e banalidades. Uma hora vemos um treino de Anita em aprender o velório Hare Krisna, para depois ensinar aos funcionários, e ali cada detalhe é tratado com frieza e sem a menor vontade de aprender. Assim, a própria funcionária começa a ter suas dúvidas sobre a qualidade do serviço que está oferecendo e Rigter capta essas dúvidas sem máscaras ou uso de música, livre de manipulações.
Ao final da jornada, o filme ecoa na mente. O mercado funerário, que tanto dependemos, gastamos dinheiro, e muitas vezes sequer damos atenção, devido ao momento delicado, não é nada diferente que um restaurante com pratos típicos no menu. Uma jornada curiosa.
Lidando com a Morte (Dood in de Bijlmer, Holanda - 2020)
Direção: Paul Rigter
Gênero: Documentário
Duração: 74 min
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Crítica | Armugan - Refletindo sobre a vida e a morte
Sob um olhar frio, a morte não é necessariamente a pior parte, e sim os momentos que lhe antecedem. O filme espanhol Armugan, dirigido por Jo Sol, que está presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tem pontos a serem discutidos sobre os processos da vida.
Inicialmente, Sol entrega uma pequena narração e alguns planos contemplativos para o público digerir durante os créditos. É fundamental compreender e pegar o fio da meada a partir desse ponto, caso contrário a trama não funciona. Não há outras dicas ou sequer um outro momento para encontrar respostas, fazendo com que essa seja uma peça audiovisual que apela para o público se exercitar no campo da criação.
Em linhas gerais, Armugan é um homem com pouca mobilidade que tem uma missão na vida, e para ajuda-lo há um homem forte e alto, Anchel. Ambos servem um propósito muito claro e pontual na região em que vivem, mas tudo isso levanta muitas questões dos que lhe pedem ajuda. Um dos maiores conflitos ocorre quando uma mãe vem lhe pedir ajuda, pois seu filho está vivendo com auxílio de aparelhos.
Íñigo Martínez interpreta o personagem título com um semblante dúbio, fazendo assim um personagem tridimensional com as poucas falas que tem. É corajoso, da parte de Martínez, fazer um personagem que diz uma coisa e expressa outra. O conflito interno após cada missão, mesclando momentos solitários no alto da montanha com interações animais, dão pistas vagas para irmos montando o Armugan que quisermos. Já como seu fiel servo, Gonzalo Cunill tem pouco com o que trabalhar. Representado como um transeunte entre os que pedem ajuda e os que compreendem a missão, o personagem de Anchel se torna uma muleta da história, sendo ele o causador de conflitos no decorrer da narrativa. Há momentos pontuais e até mesmo a narração do começo, mas nada que possa acompanhar o personagem título.
Com um foco grande em discutir a morte, o diretor e também roteirista opta por filmar em preto e branco. Pareceu-me um exercício de linguagem para discutir o cinza do espectro, onde não necessariamente é extremo ou definitivo. Há uma combinação lírica em belas paisagens sem cor. Seguindo a cartilha da trama, a fotografia de Daniel Vergara é composta por momentos da luz mágica, o pôr do sol, reflexões na água e em momentos a opressão da luz incandescente, e tudo isso sem cor. Sabemos quais são os recursos visuais, mas não depende do filme nos entregar.
Não é fácil dissertar ou pedir para ser reflexivo sobre vida e morte, mas fique atento ao assistir esse filme e suas perguntas. Acho difícil alguém sair da sessão plenamente satisfeito com a sua interpretação, ou até mesmo comentando “que perda de tempo”. Mas é aí que Armugan lhe pega: é perda de tempo pensar em morrer para viver?
Armugan (Espanha, 2020)
Direção: Jo Sol
Roteiro: Jo Sol
Elenco: Gonzalo Cunill, Iñigo Martínez, Núria Lloansi, Núria Prims
Gênero: Drama
Duração: 90 min
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Crítica | A Taça Partida - O intimismo de Esteban Cabezas
Separação não é uma coisa fácil, principalmente sob o olhar de uma criança. E é aqui, em A Taça Partida (La Taza Rota, 2021), de Esteban Cabezas, presente na 45ª Mostra Internacional de São Paulo, que esse assunto é abordado de maneira leve e incisiva.
O filme acompanha Rodrigo, um jovem adulto que está separado da esposa, fora de casa e sem a guarda do filho. A trama se passa em um dia completo, onde Rodrigo decide, de uma maneira ou outra, aproveitar o máximo de tempo possível com o filho, fora dos dias em que pode vê-lo. É baseada em um relato de Joaquín Fernández, onde podemos perceber muitas das cenas e diálogos naturais, situações comuns, do ponto de vista de uma criança, de maneira caricata, e como isso pode reverberar para uma construção familiar a longo prazo. Querendo ou não, os próprios personagens, Clara e Rodrigo, também parecem de uma maneira serem afetados por essa questão afetuosa. Em momento algum citam seus pais, falando somente em si como primeiros de uma geração.
Na direção, Esteban faz um exercício de linguagem que começa desde o primeiro plano, quando Rubens sai de um táxi na madrugada e observa a rua deserta, à espera de começar a sua jornada em busca de um dia com seu filho. Ali podemos ver a presença da solidão, de um sujeito que se destaca dentro de um subúrbio, e, quando finalmente podemos entrar na casa, é de uma maneira voyeurística. A primeira coisa que vemos rachaduras, vidros trincados, e uma caneca quebrada. Quem sabe brigas passadas, discussões mal resolvidas, que representa, acima de tudo, o amadurecimento dos personagens. O como vão quebrando, trincando, esfarelando, e não deixam essas cicatrizes de lado. A personagem de Clara, a mãe interpretada por María Jesús González, diz na primeira cena, ao ser confrontada pelo namorado, que não jogaria a caneca fora, como símbolo de quem não quer deixar para trás um defeito.
Conforme a história progride, vemos que nenhum personagem é certo ou errado. Tanto a mãe quanto o pai estão batalhando por algo que o garoto não quer, ou não precisa querer. E fica aí a grande graça da interpretação de Juan Pablo Miranda: o ator consegue combinar muito bem o jeito canastrão de um pai ainda jovem, que tenta usar-se de exemplo para que o filho possa ter uma personalidade mais parecida com a sua, ao mesmo tempo que sequer tem uma formada. Há uma longa sequência em que Rodrigo fica na casa, aproveitando para bisbilhotar e se vingar da ex-mulher e seu novo namorado.
São esses e outros pontos que nos levam a crer, no decorrer do filme, em que não sabemos quem de fato é a criança que precisa de tutela. Se é Rodrigo que precisa do filho ou o filho que precisa do pai.
Em uma produção mais intimista, feita durante a pandemia, Estaban consegue estruturar os quadros dentro de uma casa, utilizando planos longos e cheios de detalhes. Conseguimos ver as rachaduras em conjunto de diálogos posicionados em mesas, em quinas, no banheiro, e até mesmo um plano que emenda a cozinha com a escada, onde ocorrem dois diálogos fortíssimos.
A beleza da fotografia assinada por Cristián Petit-Laurent está no artificio da mudança do dia ao decorrer do filme. Começamos com o dia nublado, que percorre para a luz dura do meio-dia, até as lâmpadas acessas no fim da tarde, dando um ar natural para a produção.
Por mais que o roteiro tente em alguns momentos, não me parece ter um ponto final ou queira concluir uma ideia. Há momentos naturais, mas pouco memoráveis. Não há todo o dramalhão conhecido em histórias de separação, e o que fica aqui são praticamente momento leves sobre amadurecimento. É um filme para aqueles que querem tirar um tempo para refletir sobre seus dias atuais, suas saudades e muitas vezes a suas próprias responsabilidades.
A Taça Partida (La Taza Rota, Chile - 2021)
Direção: Esteban Cabezas
Roteiro: Álvaro Ortega, Esteban Cabezas
Elenco: Juan Pablo Miranda, María Jesús González, Moisés Angulo, Román Cabezas, Rodrigo Soto, Daniel Antivilo
Gênero: Drama
Duração: 73 min
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Crítica | Higiene Social - Para admiradores de monólogos
Ensaios de peças e filmes muitas vezes ocorrem em ambientes abertos, onde atores e diretores constroem no ar as futuras ações dos personagens. Seja com um tom de voz ou um passo para frente, tudo vem de uma leitura detalhada do roteiro. Em Higiene Social (Hygiène Sociale, 2021), de Denis Cotê, que está presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, esses ensaios mais parecem o produto final.
O diretor explora o universo dos diálogos e assuntos que pode vir a colocar diante das telas, sem o uso do visual. Ele pede, de maneira tímida, que cada pessoa traga seu cenário e construa a situação na qual os personagens se encontram.
A trama muito simples acompanha Antonin, um cineasta aspirante que tem conversas reflexivas com cinco mulheres. São elas: sua irmã, uma coletora de impostos, sua esposa e sua amante. Já a quinta sintetiza todas essas conversas, e serve como uma voz de consciência para o personagem. Fica aqui uma questão: será que Cotê não estaria fazendo um estudo de personagem antes mesmo de realizar a obra? Há uma estranheza de que cada conversa auxilia na construção de Antonin, entretanto, visto o filme como um experimento de produção em um período de pandemia, e usando a simplicidade do diálogo como matriz, de nada servem, pois não há uma conclusão. São como uma experiência momentânea, um fast food.
Maxim Gaudette, que interpreta o protagonista, consegue entregar um bom ritmo, dentre inúmeras falas e diversos tons necessários. As conversas vão de cômicas até reflexões sobre o estado humano, e sua performance entrega uma energia que talvez não fosse necessária para o papel, mas que no final auxilia a digestão da história. Larissa Corriveau, que interpreta Solveig, a irmã, é a única que consegue acompanhar e, em uma cena hilária, superar o protagonista. Algo verbalmente interessante, debatendo à altura, sem soar falso. Já as outras, com sua pouca participação e uma insistência em assuntos similares, pareceu superficial e de pouca expressão com o que poderia ser realizado. Uma pequena tentativa vem de Evelyne Rompré, que interpreta a esposa. Há uma vertical para que seja construído um novo diálogo ou vertente mais parruda, mas não acontece.
Dentre as coisas que ali chamam atenção é a fotografia de François Messier-Rheault, que já havia trabalhado com Cotê em Antologia da Cidade Fantasma (Répertoire des villes disparues, 2019), que faz uma leitura em pinturas e até mesmo fotografia contemporânea para enquadrar cada um dos diálogos. Há pouca movimentação de atores, nem muita profundidade de campo ou alteração de iluminação; tudo fica à mercê do local. É sábio o uso de lentes objetivas que permitem, mescladas à luz natural, a quebra da profundidade de campo, com um foco infinito, deixando à quem assistir a decisão em que olhar. Só na primeira cena, em certo ponto do quadro, um desfoque digital completamente fora de lugar acaba roubando a atenção do plano.
Quem realmente merece reconhecimento é o departamento de som, representado por Jean-François Caissy e Frederic Cloutier. Cada momento, dialogo ou situação, tem uma dedicatória extrema ao desenho de som. É muito importante compreender que em cada fala existe uma tonalidade, e junto dela a ambientação extradiegética. Como não se trata de um local onde podemos ver o que está acontecendo, Cotê preferiu por construir os cenários por som, acentuando e sublinhando as cenas. Marcante é a conversa com a coletora de impostos, onde claramente se escuta uma obra com caminhões e trabalhadores, enquanto os personagens estão em uma região de vegetação alta. Criando assim uma sensação de conversa mais burocrata. É um mundo completamente imaginário.
Para os que gostam de monólogos, é uma boa pedida para uma sessão e divertimento curto. Mas se for necessário preencher os olhos e uma trama mastigada, Higiene Social é apenas um experimento de monotonia, onde o diretor consegue em alguns momentos boas descontrações, mas no final fica um gosto de preguiça em desenvolver outros meios de gravação e saída cinematográfica pós pandemia.
Higiene Social (Hygiène Sociale, Canadá - 2021)
Direção: Denis Cotê
Roteiro: Denis Cotê
Elenco: Maxim Gaudette, Larissa Corriveau, Eleonore Loiselle, Eve Duranceau, Kathleen Fortin, Evelyne Rompré
Gênero: Drama
Duração: 71 min
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