Crítica | Lawrence da Arábia - A Verdadeira Definição do Épico
Certos clássicos indiscutíveis e, também, tremendas obras-primas, por vezes, afastam o interesse do espectador devido a sua duração monstruosa. Grandes filmes, geralmente, trazem grandes histórias e até mesmo conseguem manter um bom ritmo para manter seu interesse por horas a fio. Com toda a certeza, um grande mestre em sustentar obras grandiosas é David Lean.
Entre um início de carreira intimista de longas relativamente curtos para trabalhar com histórias maiores, é um fato que Lean atingiu o épico em 1957 com A Ponte do Rio Kwai, um drama de guerra importantíssimo para a História do Cinema. Porém, mais importante ainda foi seu próximo projeto, o maior filme de sua vida e, possivelmente, sua obra-prima máxima: Lawrence da Arábia.
Glória, Honra e Ego
David Lean sabia que seria um tremendo desafio adaptar as conquistas improváveis de Thomas Edward Lawrence, um dos maiores militares do exército britânico durante as campanhas no Cairo contra os turcos na Primeira Guerra Mundial. Não só devido a grande polêmica que ronda sua figura, mas bem como na dificílima representação fiel dos fatos que ocorreram na Arábia entre 1916 e 1918.
A tarefa de roteirizar os feitos dessa figura histórica muito pertinente ficou a cargo de Robert Bolt e Michael Wilson. Baseando toda a narrativa a partir dos eventos descritos pelo próprio T.E. Lawrence em suas memórias e anotações, temos a criação de uma das histórias mais épicas já trazidas para a sétima arte, apesar de sua abordagem relativamente simples.
O mérito da simplicidade da história de Lawrence da Arábia recai no ponto de interesse que Lean e os roteiristas desejavam focar: na figura histórica e nada mais, deixando de lado qualquer importância sobre contexto histórico da Guerra tampouco da situação desconjuntada da Arábia que não era um Estado unificado, ainda mais sob rígido controle do Império Otomano.
Portanto, conhecemos o jovem Lawrence (Peter O’Toole) já estabelecido no Cairo, apesar de passar seus dias na cômoda reserva britânica na populosa cidade egípcia. Porém, devido ao seu comportamento bizarro e bastante insubordinado, acaba sendo escolhido para desempenhar uma missão impossível por conta de seus conhecimentos sobre as tribos beduínas locais: encontrar o príncipe Faisal e convencê-lo a unir seu módico exército para se aliar ao Reino Unido e lutar contra os turcos. Porém, para formar um exército de verdade, Lawrence se arrisca ao máximo conseguindo um feito sem precedentes: unir as tribos árabes para lutar somente por uma bandeira.
Tendo em vista essa informação, é bastante evidente que David Lean procura fazer de tudo para tornar suas imagens muito complementares ao texto para dar essa aura complexa a Lawrence que, até mesmo após a conclusão do filme, é um homem misterioso e muito provavelmente imerso na própria loucura. Lean propõe um ferrenho estudo de personagem através de ações e silêncio, nunca apostando em diálogos expositivos.
Logo nos primeiros minutos de obra, o diretor pode nos enganar ao mostrar Lawrence como um parvo insubordinado qualquer, um jovem de espírito rebelde, mas isso logo é desmontado quando descobrimos os ares intelectuais e o grande egocentrismo do tenente. Entretanto, essas características se tornam muito úteis quando ele interage com os beduínos, também revelando a mensagem anti-imperialista da primeira parte do filme, além de enaltecer a troca de cultura benéfica entre os povos.
Desse modo, compreendemos muito bem como Lawrence conseguiu unir diversas tribos de beduínos por conta de seu interesse, respeito com o próximo e sede de saber, além de ser livre de preconceitos. Mas existem diversas ironias para o primeiro ato do longa, destituindo o poder que Lawrence acreditava ter ao conquistar seu primeiro amigo que logo é assassinado por Sherif Ali (Omar Sharif) que, futuramente, acaba sendo um grande companheiro do protagonista.
Lean, dessa forma, avança a narrativa exibindo rapsódias das barbáries cometidas pelos beduínos viciados pela violência enquanto Lawrence tenta unificar todos para combater os inimigos. Nota-se, também, uma estrutura que é inspirada pela conquista no diálogo tão bem apresentada em Os Sete Samurais de Akira Kurosawa. Ou seja, os aliados nunca são conquistados à força, mas através de promessas feitas pela língua ferina de Lawrence que busca controlar tudo e todos, em uma clara manifestação de desejo pelo controle pleno sobre homens e a natureza.
Isso é recorrente através de imagens enigmáticas de pequenos tornados observados no horizonte dos desertos e pelas más escolhas egoístas que Lawrence assume sempre escolhendo o caminho com maior perigo. O personagem deseja desbravar e se tornar mestre de seu próprio destino – o que torna o começo do filme bastante irônico. Aliás, esse ponto do “um homem faz o que ele quer” é o mais exposto em diálogos muito concentrados na primeira metade do longa.
Muitas vezes, Lawrence e Sherif se confrontam por conta de suas ideias sobre destino e determinação do próprio homem. Como Lawrence crê em sua invulnerabilidade por ter feito o impossível em acumular um grande exército, acaba motivado a resgatar um companheiro que acabou perdido no deserto por causa do cansaço e esgotamento físico. Sherif se opõe a tentativa heroica absurda que Lawrence pretende tomar, mas o protagonista escuta apenas a si mesmo e parte em busca do infeliz desconhecido.
Com absoluta certeza, temos o ápice criativo e emocional de Lean com Lawrence da Arábia de tal modo que essa pequena cena merece uma análise por si só.
O Surgimento do Herói
Nesse instante, Lean elabora sua arte na expressão máxima do visual que o Cinema se vale. Com o auxílio muito perspicaz da montagem, não revelando de antemão se Lawrence foi feliz em sua missão, o diretor restringe o ponto de vista do espectador em Daud, um garoto órfão que vira lacaio do protagonista. Com o restante do exército já se mobilizado, apenas o menino aguarda Lawrence em meio ao deserto de Nafud com poucas esperanças de ver seu amigo novamente.
É justamente aí que a magia acontece como podem ver no trecho abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=-tuNR-uD_mE
Lean primeiro observa o garoto desanimado e um tanto mortificado pelo calor olhando o horizonte. Nesse raro momento, o cineasta usa uma câmera subjetiva mostrando o que parece ser uma miragem de algum ser pequenino se aproximando no horizonte. Incrédulo, o garoto parte sem acreditar nos próprios olhos. Novamente alternando entre a objetividade da ação de vermos o órfão galopando em seu camelo para a subjetiva em um raríssimo travelling em profunidade, avançando para dentro do deserto em velocidade crescente, Lean então permite a explosão do magnífico tema musical de Maurice Jarre, até enfim revelar Lawrence conquistando seu próprio destino.
A catarse é tão poderosa que Lean encerra sua bela cena com um dos mais belos planos gerais que compõe ao longo do filme, observando tudo a distância em toda organicidade da ação e do encontro atrapalhado de Daud com o protagonista. Apenas com duas cores majoritárias e instrumentos simples, Lean arquiteta um dos momentos mais maravilhosos que o Cinema já nos proporcionou.
Obviamente, por se tratar de um momento tão poderoso, ele tem reverberações em sequências menores, mas igualmente fantásticas. A mais impactante tem a ver com o desfecho do personagem que Lawrence salva, jogando nosso protagonista no cargo de divindade controladora que ele tanto desejava. Esse momento também marca o início do declínio do herói, já embriagado pelo poder e com flertes psicóticos pela conquista e guerra.
A partir da troca de relações com Sherif, observamos a troca de costumes e ideias ser melhor aprofundada com o árabe se tornando mais diplomático enquanto Lawrence se torna mais violento e selvagem, como uma criatura esfomeada do deserto. A graça da fluidez da narrativa se encontra justamente nesses altos e baixos que eles experimentam a cada novo acontecimento importante. Logo, se temos uma ascensão para Lawrence, certamente temos o declínio.
O curioso é que os roteiristas não abordam o declínio daquele modo clichê e muito martelado por diversos outros filmes, mas sim através da realidade que Lawrence sempre menosprezou: a motivação dos integrantes tribais de seu exército. Tão logo uma promessa é paga, rapidamente Lawrence se encontra sozinho, mas ainda bastante iludido acreditando que todos retornarão para o seu comando e batalharão por seu nome.
O fato do homem se julgar extraordinário e então se deparar com uma situação que o diminui para o ordinário rende momentos sempre curiosos que flertam tanto com o psicológico perturbado do militar quanto com sua sexualidade. Nesse ponto, o protagonista simplesmente busca se reestruturar, mas acaba se tornando uma antítese de si próprio na segunda metade da obra.
A Derrocada
Enquanto a primeira parte do longa é praticamente sublime, a segunda é ligeiramente inferior por conta do grau mais estacionário do desenvolvimento narrativo de Lawrence, além de uma grande fragmentação via elipses que podem tornar tudo demasiadamente apressado. Entretanto, é importante salientar que isso não interfere negativamente na experiência, afinal Lean consegue explorar um pouco mais o lado sombrio da mente de Lawrence, demarcando sua completa transformação.
Rapidamente o personagem entra em contradição e, para não perder seu sentimento de grandiloquência, acaba fazendo o impossível para unir seus aliados novamente recorrendo a lealdades superficiais que tornam sua liderança totalmente falsa, apesar do exército britânico ainda admirar seus feitos. Logo, Lean constrói duas sequências muito impactantes mostrando Lawrence como um de paixões selvagens, o colocando como um falso profeta, um militar inescrupuloso e, pior, um criminoso de guerra responsável por um dos massacres mais viscerais do confronto.
O último ato sintetiza o que torna Lawrence apenas um humano normal, um herói falho e muito questionável e, pior de tudo, apenas um inglês, um elemento exógeno que nunca seria capaz de liderar o povo árabe. Justamente por isso que o final do longa é tão poderoso ao contrastar a miséria silenciosa de um homem com a felicidade de outro, completamente ignorante a dor alheia.
Essa questão sobre ser ou não ser um britânico, praticamente é sustentada por Lean e pela atuação de O’Toole. Basta reparar como o personagem se comporta ao vestir as vestes militares de seu país, andando de modo incômodo e se portando de modo infantil. Porém, quando recebe as túnicas brancas icônicas, Lean nos apresenta a um momento íntimo do herói ao se afastar de seu exército para dançar sozinho, se sentido totalmente confortável com as vestes, acreditando ser um verdadeiro árabe.
A partir desses pequeninos detalhes, da composição exemplar de O’Toole em sua atuação e da sensibilidade visual de David Lean que temos a criação de um personagem tão imprevisível e misterioso, mas perfeitamente compreensível ao espectador desvendar boa parte dos desejos, conquistar e falhas desta figura tão bem construída.
Conceito das Circunstâncias
David Lean foi extremamente radical em sua proposta para retratar a história de T.E. Lawrence: ou ele filmava nas locações onde ocorreram os eventos, ou nada disso seria realizado. Com um orçamento relativamente apertado, o enorme desafio de filmar no deserto e o pesadelo logístico envolvendo quatorze meses de fotografia principal em locações instáveis ou totalmente imprevisíveis, a produção de Lawrence da Arábia tornou-se tão histórica quanto o filme.
Devido a essas dificuldades logísticas e também do peso absurdo dos equipamentos, logo Lean se viu limitado ao sacrifício de gravar nas locações que desejava, afinal ele não tinha controle sobre a luz, tempo, clima, etc. Nas primeiras dificuldades enfrentadas, portanto, Lean decidiu se ater a uma proposta estética bastante radical que, felizmente, dá bastante certo e pode ser bem imperceptível para alguns espectadores.
Basicamente, Lean sempre mantem a ação em um único eixo, exatamente como veríamos em um palco de teatro. Os personagens se movem horizontalmente e conversam entre si quase que somente de perfil para a câmera – o cineasta praticamente sustenta os diálogos com planos únicos. Obviamente que um diretor do gabarito do britânico se esforça para trazer composições majestosas muito bem construídas valorizando a direção de arte quando preciso, mas totalmente atenta as paisagens magníficas capturadas em planos abertos estonteantes, além de composições que visivelmente valorizam a profundidade de campo com figurantes passeando a todo momento.
Assim, vemos a imensidão do poder da natureza e toda a pequeneza dos homens que ousam desbravar o deserto. Algo bem clássico da linguagem do western que Lean traz para seu filme. Isso também colabora visualmente para diminuir a figura egocêntrica e narcisista de Lawrence que sempre acaba perdendo seus duelos contra a natureza. Desse modo, o espaço da ação é sempre definido em travellings elegantes ou lentas panorâmicas que vão sempre da esquerda para a direita – isso, segundo Lean, visava trazer mais impacto de progresso para a jornada de Lawrence.
Raras são as vezes que o cineasta movimenta sua câmera em profundidade, ou seja, adentrando a ação e se livrando da estrutura bidimensional que comanda a estética da obra. Tanto que quando Lean se aventura a movimentar a câmera desse modo, acaba criando justamente a cena que mencionei anteriormente no texto. É fenomenal. Porém, é justamente por Lean se manter tão fiel a estética ornamentada que isso não se torna um incômodo, afinal ele também cria uma decupagem bastante rica que explora a hierarquia dos planos tanto como a altura da câmera.
É visualmente rico e majestoso. O mérito, obviamente, também está na cinematografia exemplar de Freddie Young que fez uso de objetivas com distâncias focais homéricas para conseguir o efeito quase impossível de replicar a ilusão óptica de uma miragem. Além disso, há um controle magistral de iluminação artificial misturada com a intensidade castigadora de luz solar no deserto, sempre conseguindo o feito absurdo de expor corretamente o brilho da areia em contraste com o vibrante azul do céu. Não há palavras para descrever, é simplesmente divino.
Divino de tal modo que Lean trouxe uma das transições visuais mais apaixonadas do Cinema: um fósforo se apagando para cortar subitamente na aurora de um sol gigantesco.
Conquistador de Tudo e Nada
É preciso ver para crer no caso de Lawrence da Arábia. Não é à toa que se trata de um dos maiores épicos que a Sétima Arte já proporcionou, além de ser a obra-prima máxima de um cineasta monumental. Superada a barreira da duração, é possível ficar imerso nessa enorme conquista do Cinema saboreando arte cinematográfica da mais alta qualidade.
Filmes tão realistas e elegantes como esse simplesmente não existem mais. Tudo respira, é orgânico e visualmente majestoso nessa obra, incluindo suas memoráveis cenas de batalha também feitas em total aposta no realismo concentrando um exército de homens, cavalos e camelos. Depois de todo o esforço de Lean, da trilha musical hipnotizante e toda a força deste clássico histórico, o leitor não tiver o interesse despertado, simplesmente quem perde é o mesmo.
A história do conquistador de tudo e nada é a superação completa de todos os sentidos do cinema naquela época e até mesmo hoje.
Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido – 1962)
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt, Michael Wilson, T.E. Lawrence
Elenco: Peter O’Toole, Alec Guinness, Anthony Quinn, Jack Hawkins, Omar Sharif, Claude Rains, Arthur Kennerdy
Gênero: Biografia, Drama, Guerra, Aventura
Duração: 227 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=zSfE5TiyPd8
Review | A Way Out - A revolução da experiência co-op
Jogos cooperativos marcaram o meu primeiro contato com os videogames através dos inúmeros clássicos de corrida, tiro e puzzle oferecidos pelo PlayStation e Nintendo 64. Conformes os jogos evoluíram e se tornaram mais complexos em diversas jornadas lineares próximas de narrativas cinematográficas, a pureza dos games cooperativos simplesmente acabou esquecida até mesmo pelos gêneros que mais se consagraram pela enorme diversão que era reunir os amigos e jogar até cansar.
Em caminhos duvidosos que a indústria bilionária dos games caminha, abandonando a complexidade narrativa, a jogatina single player e até mesmo a linearidade que permite certas maravilhas, existir um game como A Way Out é algo quase surreal. O game de Josef Fares, mesmo criador do ótimo Brothers: A Tale of Two Sons, funciona como um pequeno milagre cuja proposta radical é realmente sua melhor qualidade: a obrigatoriedade da jogatina cooperativa.
O Retorno à Vanguarda
Josef Fares provou em sua estreia no campo dos games que era um diretor e roteirista muito apegado a narrativa e ao conceito de seu game. Brothers, em essência, é um jogo para ser jogado com um amigo, apesar de ser perfeitamente possível concluir a sua história jogando sozinho. Rapidamente, pelo teor emocional denso do game e da ideia de jogatina tão peculiar, Fares chamou a atenção da indústria até leva-lo a realizar A Way Out em parceria com a EA.
Apesar da péssima imagem que a gigante dos games conquistou em 2017 através de diversos desastres comerciais e práticas pouco aprovadas pela comunidade, é inegável que esse game possa recuperar um pouco do brilho antigo encantador da publisher por ter apostado na ideia excêntrica de Fares: um game inteiramente cooperativo no qual podemos fugir de uma prisão e buscar a vingança contra quem armou a nossa “estadia” em um lugar tão inóspito.
Pode não parecer, mas Josef Fares traz uma das melhores narrativas da geração. Dois jogadores controlam o esquentadinho Leo e o engenhoso Vincent. Ambos presos em uma penitenciária rígida, acabam descobrindo que o responsável pelos seus encarceramentos é o mesmo indivíduo detestável: Harvey. Obstinados por um desejo de vingança, os dois arquitetam um plano muito improvável para escapar da prisão.
A premissa, obviamente, flerta com um dos subgêneros de ação mais atraentes e também mais difíceis de trabalhar para ser convincente. Apesar de Fares, anteriormente um cineasta, utilizar algumas conveniências narrativas, o diretor acerta em cheio ao introduzir a dinâmica de pequenas missões para que os jogadores colaborem entre si para surrupiarem itens necessários para superar diversos obstáculos dispostos no caminho até a liberdade.
Essas situações rendem segmentos “stealth”, além de oferecerem dinâmicas de interatividade com outros presos e objetos entre os diversos cenários típicos de uma penitenciária americana: pátio, refeitório, corredores de celas, lavanderia, marcenaria, entre outros. Nesses momentos, os jogadores experimentarão conversas cômicas e dramáticas com outros presos. Aliás, Fares é sábio em nunca repetir segmentos que os jogadores já experimentaram, mesmo quando há uma necessidade narrativa para tal, evitando repetição ou filler injustificado.
As elipses são marcadas por elegantes transições cinematográficas que marcam presença no game inteiro. Aliás, devido a natureza própria da linguagem de A Way Out, é essencialmente genial como Fares lida com o foco narrativo entre Leo e Vincent por meio do spli-screen, a tela dividida. Em certos momentos, algum personagem receberá uma tela maior para enfatizar a carga dramática de alguma cena.
Por ser um diretor de cinema antes de diretor de games, Fares também traz uma linguagem visual bastante rica para as muitas cutscenes presentes para desenvolver os personagens que são sim muito carismáticos. Não somente pela dublagem excepcional, mas por conta do texto trazer à tona as imperfeições de cada um em um ritmo muito agradável e dinâmico. É muito difícil não se afeiçoar pelos contrastes desses dois gerando um apego genuíno em uma das melhores relações personagem-jogador que já tiver o prazer de experimentar.
Embora Fares apresente uma narrativa que não traga muitas surpresas, ele se vale do benefício da exploração rasa dos games sobre as fugas de prisão. Por nos habituar a rotina e a amizade crescente entre os protagonistas, rapidamente a história engaja por estarmos fazendo parte dela e a fazendo acontecer ativamente. Isso é muito diferente da experiência passiva de assistir a clássicos como Fuga de Alcatraz, Um Sonho de Liberdade, Fugindo do Inferno ou Prison Break, pois o personagem é literalmente uma extensão do jogador.
O mais interessante é que a narrativa mantém o interesse do jogador mesmo depois da ótima sequência de fuga. Fares conduz o game exatamente como um filme, trazendo set pieces explosivas que flertam com diversos clássicos filmes de ação dos anos 1990 como O Fugitivo e outras diversas obras de Brian De Palma como Scarface e o intenso uso da linguagem visual característica do cineasta através da tela dividida.
Mesmo que, até o clímax do game, tenhamos alguns trechos mais insossos, rapidamente o diretor consegue surpreender ao apresentar desfechos explosivos para esses capítulos com perseguições grandiosas que oferecem muita adrenalina ao jogador. O segmento favorito, sem sombra de dúvidas, envolve uma visita a um hospital na qual Fares homenageia diretamente o famoso plano-sequência de Oldboy ao mudar o posicionamento tradicional da câmera.
Com tantos pontos altos e divertidos, o jogador é totalmente pego de surpresa pela reviravolta final muito cruel e complicada por subverter o sentimento cooperativo de até então. Oferecendo dois finais complicados, mas de beleza pesarosa que tem enorme potencial de emocionar o jogador de modo muito honesto. É algo realmente magistral que consegue tornar os pequenos defeitos e fraquezas praticamente irrelevantes da história do game.
Horizontes de Belezas e Tempestades
Para acompanhar a experiência de uma narrativa divertida e marcante, é uma obrigação que o jogo funcione em termos técnicos, além de trazer uma jogabilidade intuitiva. Felizmente, há muito capricho no trabalho do diretor para fazer a experiência do game em algo realmente entusiasmante e significativo.
A constante colaboração entre os jogadores marca o ponto principal da jogabilidade. Em pontos mundanos e óbvios para os mais inteligentes ou emocionais, o esquema simplesmente funciona. Com a adição de inimigos na metade do game, também há um trabalho bem inteligente de coordenação e sincronia que força algumas estratégias óbvias de emboscadas para que os jogadores realizem para superar desafios. São coisas simples, mas muito funcionais dentro da dinâmica oferecida pelos puzzles e outras interações.
Apesar de termos uma proposta de jogabilidade bem legal que eleva o sentido do co-op, existem alguns problemas irritantes em A Way Out. Falta um pouco de polimento nas animações dos personagens, incluindo dos protagonistas, além de diversos pequenos bugs que afetam a jogabilidade negativamente. Também há um problema com a câmera que, às vezes, pode se tornar um problema para manejar. Por vezes o jogador terá que lidar com uma pequena falta de capricho na finalização de certas cenas que evidenciam erros de continuidade óbvios. Por exemplo, em determinada situação, Leo abandona sua arma em uma mesa para logo depois o vermos manejando a mesma.
A inteligência artificial dos inimigos e policiais também deixa a desejar. Isso se torna muito evidente durante o último ato do game no qual ele se torna um verdadeiro shooter de terceira pessoa aos moldes de Army of Two, mas com uma jogabilidade muito rudimentar que lembram as piores experiências de tiroteio de Uncharted – isso no primeiro jogo da franquia. É óbvio que o tiroteio não é algo enfatizado durante a jornada de um game de aventura/ação, mas ela se faz muito presente durante as horas finais do jogo que se tornam menos interessantes pelo péssima resposta dos controles e da dinâmica desagradável dos armamentos.
Mas isso ocorre apenar no terceiro ato do jogo. De resto, temos uma experiência, em grande maioria, muito divertida e funcional. O que colabora bastante é o cuidado visual empregado pelos realizadores. Embora haja uma demora para carregar texturas e quedas superficiais de frame rate, os cenários sempre são criados de modo charmoso e bastante adequado para a atmosfera setentista retratada nas decorações e mobília.
O cuidado não é feito para passar despercebido, já que temos diversos mini games espalhados pelos cenários desde jogos de botão, quedas de braço ou até mesmo uma boba disputa para ver quem consegue se equilibrar em cadeiras de rodas por mais segundos. São joguinhos que fortalecem ainda mais a relação entre os personagens que conseguem aproveitar os pequenos prazeres da liberdade enquanto passam por perseguições infernais.
Também é igualmente esperta a decisão dos jogadores constantemente terem que votar por abordagens diferentes entre segmentos decisivos do jogo. Com diferenças drásticas no desenvolvimento das fases, o fator replay se torna praticamente obrigatório para experimentar as outras possibilidades que o game oferece.
Vidas Marcadas pela Violência
Possivelmente uma das maiores boas surpresas do ano, A Way Out é um game que definitivamente merece ser jogado. Seu custo é acessível já que dois amigos podem jogá-lo sem a necessidade da compra de uma segunda cópia, o que torna a proposta comercial da EA muito perspicaz. Porém, não é somente pelo custo mais modesto que o novo game de Josef Fares merece sua atenção.
Como explorei constantemente na análise, a experiência da jogatina co-op foi revolucionada. Não há como jogar esse jogo sozinho, pois isso simplesmente mataria a experiência. A única saída para aproveitar A Way Out é jogando com um amigo em uma tarde bastante agradável. As recompensas que o game oferece afeta em diversos níveis. Ou seja, é um verdadeiro pacote completo como há um tempinho não víamos.
Temos muita diversão, sequências repletas de adrenalina, outras bastante emotivas e ternas até um ápice emocional muito inesperado por um dos finais mais surpreendentes para o que era construído até então. Uma revolução de jogatina nunca foi tão nostálgica e despretensiosa.
Pontos positivos: ótima narrativa, grande influência cinematográfica, puzzles criativos, jogabilidade fascinante, gráficos agradáveis, duração satisfatória, personagens interessantes, conclusões arrebatadoras, política de compra justa
Pontos negativos: bugs gráficos, ocasionais problemas de performance nas versões padrões dos consoles, antagonista mal aproveitado
Agradecemos a EA pela cópia gentilmente cedida para a realização dessa análise
A Way Out (2018)
Desenvolvedora: Hazelight Studios
Distribuidora: EA
Gênero: Ação em Terceira Pessoa, Shooter em Terceira Pessoa
Plataformas: Xbox One, PS4, PC
https://www.youtube.com/watch?v=VWvRa4D98Zg
Review | Far Cry 5 - Apocalipse no Paraíso
A Ubisoft experimentou diversas doses generosas de sucesso com a franquia Far Cry, apesar das mecânicas muito turbulentas que desenvolvedora aplicou em Far Cry 2, o primeiro game principal da franquia assumido pelo estúdio. O ápice, até então, logo se deu com o fantástico Far Cry 3 que simplesmente se tornou um clássico instantâneo valendo a jogatina até mesmo nos dias de hoje.
Em um contexto maior, é bem claro que estamos acompanhando um novo alvorecer para a Ubisoft que enfrento diversas polêmicas envolvendo downgrades gráficos entre outros elementos desfavoráveis. É justo apontar que essa retomada digna já ocorreu com outros dois ótimos jogos: Watch Dogs 2 e, principalmente, com Assassin’s Creed Origins. Agora, neste primeiro lançamento para 2018, é possível afirmar com bastante segurança que temos mais uma ótima evidência dessa boa fase da publisher: Far Cry 5.
Fugindo da Insanidade
Segundo o vilão mais famoso da franquia, Vaas Montenegro, em um ditado muito conhecido, diz que a “insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente na esperança de resultados diferentes”. Certamente isso estava acontecendo com os outros jogos Far Cry, apesar da mudança de cenário e adição de algumas novas mecânicas. No fundo, simplesmente era o mesmíssimo jogo que conquistou muita gente.
Isso, felizmente, é passado. Bom, em grande parte. Far Cry 5 é um grande experimento de novas apostas da Ubisoft para a franquia. As mudanças são impossíveis de ignorar, pois mexem com mecânicas até então consideradas básicas. Por exemplo, não existe mais um sistema de níveis que oferecem pontos de progressão para comprar novas habilidades.
Agora, as habilidades são compradas através de perks disponibilizados pela conclusão de desafios bastante simples e relativamente fáceis que o jogador pode se dedicar imediatamente no começo do game para adquirir upgrades de vida e na bolsa de itens. Aliás, isso leva a perda significativa da ênfase envelhecida da caça. Como os upgrades de mochila, entre outros, estão ligados à árvore de habilidades, a mecânica praticamente foi limada do jogo, apesar de haver bastante vida selvagem em Hope County.
A caça tem o intuito de enriquecer financeiramente seu personagem que, pela primeira vez, pode ser masculino ou feminino – há até mesmo um simples menu de customização para o protagonista. A questão monetária em Far Cry 5 é realmente importante, pois as missões geralmente não vão te oferecer alguns trocados – apenas as missões secundárias ainda bastante genéricas baseadas em quests de eliminação ou coleta. E como há uma tonelada de veículos e armas para comprar, certamente a caça é uma boa opção para vender as peles e enriquecer com certa rapidez para aprimorar seus equipamentos em lojas especializadas.
Também é bastante fácil ficar perdido no começo do game – isso, por si, já é incrível. Todo o game design usa pitadas de inspiração de Skyrim e Zelda: Breath of the Wild em não segurar a mão do jogador. Isso ocorre por características simples, mas que podem ser estranhas para os jogadores mais habituados a franquia. A experiência geral de Far Cry 5 é basicamente não-linear, ou seja, não é preciso seguir caminhos pré-estabelecidos durante a campanha principal, pois todo o mapa de Hope County está liberado desde o começo permitindo que você inicie sua jornada do modo que quiser.
O mapa é ligeiramente menor que outras iterações da franquia como Far Cry 4, mas certamente é muito mais denso repleto de atividades e pontos de interesse que despertam a atenção do jogador. Aqui, a área é segmentada em três enormes porções, cada qual com um chefe diferente ligado a família Seed, a antagonista do jogo – logo iremos discutir a polêmica narrativa adiante. Para concluir os pontos principais da campanha, temos uma estrutura similar a vista em Ghost Recon Wildlands na qual é preciso reunir diversos pontos de resistência (oferecidos na conclusão de missões ou intervenções randômicas no mapa) para forçar o chefe de cada área a te enfrentar em combate direto.
O mais curioso é que conforme o jogador progride ao se aproximar do duelo contra o chefe, mais lotado de inimigos o mapa se torna – algo bastante lógico. Isso colabora para uma curva de dificuldade mais acentuada que convida o jogador a explorar toda a abordagem stealth refinada do game. Também, em cada área, temos três pontos de interesse revelados permitindo o conhecimento das missões que vão oferecer os companheiros que podem te auxiliar na jornada assim como em Metal Gear Solid V. Cada um possui habilidades distintas, porém é um pouco triste que a relação do protagonista com estes colegas nunca avance além do básico.
A forma que a Ubisoft também pensou o HUD é minimalista, sem informações pipocando para todos os lados, além da ausência completa do mini mapa: temos apenas a bússola na parte superior da tela para guiar o jogador até o objetivo. Isso, de fato, traz um impacto derradeiro na experiência da jogatina, afinal, para descobrir pontos de interesse e novas missões principais, o game nos incentiva a explorar todo o terreno jogável a fim de liberar a névoa que cobre o mapa principal. Ou seja, as antigas torres de rádio que tínhamos de ativar nos outros jogos finalmente foram superadas. A exploração é realmente o que comanda Far Cry 5.
Basicamente, essas são as novidades de mecânica mais importantes do jogo que conseguem oferecer um amplo significado de progresso e evolução finalmente fugindo um pouco da fórmula que os jogos anteriores estavam apostando de modo exaustivo.
A Semente Maldita
Desde Far cry 3, as narrativas destes jogos se tornaram um ponto decisivo para o sucesso comercial dos mesmos, afinal tivemos a criação de um dos antagonistas mais interessantes dos games, apesar de muito mal aproveitado. Ao decorrer das outras iterações, ficou nítido o esforço da Ubisoft em tentar replicar o sucesso de Vaas Montenegro. Ainda que algumas criações fossem interessantes, simplesmente faltava aquele “tchan” especial que tornou o pirata psicótico em algo único.
Essa corrida atrás do “prejuízo” nos levou até os antagonistas desse quinto jogo principal: a família Seed. A abordagem sobre os vilões certamente virou um jogo de marketing eficiente, afinal poucos gamers desconhecem a tal polêmica envolvendo o uso do cristianismo em leituras extremas e apocalípticas. Enfim, no game encarnamos o clássico clichê do Novato, ou Rookie. Ou seja, um personagem sem nome e, para piorar, completamente mudo – algo sem precedentes para os games principais da franquia.
Fazendo parte de um pequeno esquadrão, o protagonista vai até Hope County, já totalmente sitiada pela seita de Joseph Seed e seus irmãos e irmã: John, Jacob e Faith. Expedindo o mandado de prisão e capturando o religioso lunático, Novato e sua equipe acabam caindo em uma enorme cilada que os deixa totalmente presos em Hope County e também sem qualquer comunicação com o mundo exterior. Fugindo por pouco, o agente terá que enfrentar e desmantelar toda a família Seed para libertar Hope County, além de resgatar seus três colegas policiais que foram capturados pelos fanáticos.
Em primeiro momento, sim, a história é basicamente idêntica a estrutura da narrativa de Far Cry 3 e o pior de tudo é que ela não chega realmente a brilhar a ponto de justificar todo o esforço intenso do jogador em liberar toda Hope County, além de contar com um dos finais mais decepcionantes de toda a franquia – independente da escolha que você fizer.
A deficiência inicial obviamente é por conta do protagonista não dizer uma única palavra, um conceito de personagem já bastante abandonado e que me surpreendeu muito negativamente em rever aqui. A amarga impressão que fica foi a preguiça extrema de criar diálogos mais elaborados para explorar a fundo esses personagens coadjuvantes e também dos vilões que rapidamente se tornam repetitivos por mais loucos que sejam.
Erroneamente, os roteiristas pensam que quanto mais violento e insano, melhor, mas certamente esse não é o caso para fazer um vilão interessante, já que na maioria do jogo Joseph Seed, o pai, é um vilão passivo e não age nunca contra o jogador, mesmo que ele mate toda a sua família. Infelizmente, uma estrutura narrativa é utilizada nas três porções de Hope County.
Enquanto tudo é novidade, a narrativa de Far Cry 5 realmente funciona. Independente do chefe que escolher, certamente terá uma boa experiência ao aceitar as estranhíssimas interrupções a cada etapa do progresso ser conquista. Ali, inevitavelmente, o protagonista será capturado pelo vilão e trazido para seu covil a fim de desenvolver o ponto de vista dos estranhos personagens através extensos monólogos que flertam com os temas religiosos cristãos do jogo: fé, pecado, violência, utopia, etc.
O problema é que não há muito interesse no modo que as ideias são expostas já que os personagens frequentemente sentam, te encaram e passam tagarelar incansavelmente e como o assunto da religião é tratado com extrema superficialidade e clichês apocalípticos, é muito fácil perder o interesse. Isso se torna mais evidente nos outros encontros que o protagonista possui com os vilões que simplesmente repetem o mesmíssimo discurso de outrora, com apenas variações mínimas. Isso seria resolvido se nosso protagonista não fosse um amorfo completo e contestasse os monólogos insuportáveis dos antagonistas.
Ironicamente, é justo Joseph Seed, o antagonista principal, o mais desinteressante e menos criativo já que não há realmente nada que o destaque diante de seus irmãos que possuem pontos narrativos principais como o pecado, violência e drogas. Nesse leque muito pobre, apenas é seguro afirmar que jovem Faith traz algo mais sólido para a experiência, pois envolve diretamente seus companheiros em um uso um pouco melhor elaborado – apesar de ser basicamente a mesma coisa vista com Jacob Seed, incluindo uma reviravolta principal.
De coadjuvantes, esse é facilmente um dos piores elementos de Far Cry 5 já que o sentimento de companheirismo é bem restrito e superficial, afinal não há trocas com o protagonista sempre calado. Eles ordenam e nós fazemos. Até mesmo o uso de um padre católico rebelde acaba desperdiçado, pois o jogo não se aventura a explorar melhor seu personagem para trazer à tona o quão caricatos e estúpidos os antagonistas são em sua interpretação deturpada do cristianismo.
Sobre outro ponto muito debatido, os roteiristas não levam muito à sério as críticas que o jogo propõe ao governo do partido republicano. Apenas apontamentos genéricos que não ferem a ideologia de qualquer jogador. Há também uma variedade respeitosa para os personagens que encontramos na jornada desde caipiras bêbados nacionalistas até simples mulheres que desejam tocar seu comércio local de volta para a normalidade. É tudo realmente muito superficial, pouco inspirado ou até mesmo vazio para ser levado a sério.
Condado das Esperanças
A Ubisoft elevou o patamar gráfico de seus jogos com o estonteante Assassin’s Creed Origins, mas eu simplesmente não esperava encontrar algo igualmente belo ou até mesmo superior em Far Cry 5. O jogo é simplesmente impecável visualmente com texturas riquíssimas para a vegetação, cidades ou outros cenários que você deseje se aventurar. Até mesmo o detalhe interno dos veículos é feito com bastante cuidado.
Se tornando um verdadeiro manjar para os olhos contando com um trabalho excepcional de iluminação, efeitos volumétricos e de saturação das cores, há muito pouco, visualmente, que o game deixa a desejar. Os modelos dos personagens não acompanham o fotorrealismo absurdo, além das animações de alguns deixarem a desejar, fora a falta de uma variedade satisfatórias de skins para os “edenetes” que eliminados aos montes. Por incrível que pareça, a inteligência artificial tanto dos inimigos quanto para os companheiros é relativamente satisfatória – só não experimente colocar um companheiro para dirigir até o destino de uma missão que é garantia de estresse.
O mapa geral de Hope County é bastante diverso, afinal estamos em um vale quase paradisíaco de muitos rios, fazendas, cidadezinhas, bares, florestas de coníferas e plantações douradas de trigo e milho. Para os fissurados pela exploração vertical, apesar de menos intensa, ainda é presente com as escaladas nas montanhas que guardam segredos valiosos de tesouros escondidos que você não deve menosprezar de forma alguma.
Em termos de jogabilidade, Far Cry nunca foi tão prazeroso de jogar. Aqui temos o super soldado de sempre, mas obediente como nunca para atirar, correr e realizar outras ações ágeis mantendo o jogo em uma alta dose de adrenalina. As armas respondem bem e possuem diferenças significativas no uso estratégico de cada uma para as abordagens distintas que o jogador pode utilizar ao decidir invadir um campo repleto de inimigos.
A resposta rápida aos comandos também se faz valer para os veículos que, para novatos, pode levar certo tempo para acostumar, mas assim que dominamos os controles dos aviões, helicópteros, carros, caminhões e barcos, a exploração se torna ainda mais prazerosa. Com missões diversificadas para evitar a fadiga rápida, temos uma seleção de atividades realmente generosa e bastante divertida para tornar toda Hope County em um lugar vivo, apesar do estado de sítio que o local vive.
Entre atividades secundárias, há um novo sistema de pesca com desafios próprios bastante interessante, além das proezas míticas de Clutch Nixon, um típico herói caipira americano, que realizou os desafios mais estúpidos e radicais dos Estados Unidos que só podem ser superados justamente pelo jogador. Entretanto, a maior adição que vai te manter ocupado por um bom tempo é novo modo Far Cry Arcade que pode ser jogado tanto em single player quanto em multi player on-line.
De modo curto e grosso, este é um sistema de criação de mapas a la Super Mario Maker que permite a criação de níveis riquíssimos pelas possibilidades vastas oferecidas pelo editor de mapas que a Ubisoft desenvolveu. É algo absolutamente insano que tem potencial de ser melhor do que o próprio jogo que apresentou o recurso. O sucesso foi tanto que a comunidade já conseguiu realizar réplicas de fases de outros jogos dentro do editor. É algo realmente muito divertido que permite também o avanço das habilidades do próprio protagonista para a campanha solo.
Os únicos problemas técnicos evidentes no game estão centrados em bugs ocasionais totalmente inexplicáveis, além de alguns travamentos estranhos que presenciei raramente ao longo da enorme jogatina. Também é um pouco decepcionante perceber que há sim uma ótima trilha musical original para o jogo que raramente surge nos longos períodos de silêncio que enfrentamos ao explorar o mapa.
Ainda que eu Ande pelo vale da sombra e da morte
Far Cry 5 é a personificação do andar sobre o vale da sombra e da morte devido seu tom religioso totalmente desperdiçado em uma das histórias mais fracas que a franquia já conheceu até então. Porém, é preciso apontar que a jogabilidade, os gráficos e a direção de arte do jogo são absolutamente fantásticos. A Ubisoft apostou suas fichas na evolução das mecânicas clássicas de uma de suas franquias mais consagradas e isso certamente chamou muito bem nossa atenção.
Esses esforços realmente são valiosos e merecem ser parabenizados por trazer frescor e um nível de liberdade jamais experimentado na franquia. Porém, pela dose repetitiva do enredo e da estrutura geral do progresso do jogo, claramente existem problemas no paraíso que não serão corrigidos de modo algum. A duração consideravelmente longa também não contribui para disfarçar esse esgotamento de jogabilidade que o jogador pode ou não experimentar. O que era para ser fluído, é concreto e esquematizado, removendo a organicidade tão bem impregnada no primeiro ato do game.
Acertando no mais difícil e errando no que deveria ser o cômodo, Far Cry 5 é uma experiência digna para qualquer fã da franquia, mas imperfeita.
Agradecemos a Ubisoft pela cópia especialmente cedida para avaliação
Pontos positivos: muito conteúdo que valoriza seu dinheiro, jogabilidade impecável, gráficos estonteantes, renovação corajosa de mecânicas consagradas e funcionais, grau de exploração e liberdade excelente, adição dos companheiros ajudantes, mapa rico e variado
Pontos negativos: protagonista mudo, personagens inexpressivos, vilões superficiais e repetitivos, estrutura repetitiva e pouco inspirada dos atos, conclusão narrativa nada gratificante, bugs ocasionais
Far Cry 5 (Idem – 2018)
Desenvolvedora: Ubisoft
Plataformas: PC, PS4, Xbox One
Gênero: RPG e Shooter em Primeira Pessoa
https://www.youtube.com/watch?v=VR2KqWGOpFI
Crítica | Uma Mulher Sob Influência - A Obra-Prima de John Cassavetes
Há diversos defeitos e gostos duvidosos no cinema de John Cassavetes, porém é inegável que existe muita paixão em suas obras. A começar, as produções eram quase sempre bancadas pelo próprio diretor que constantemente trabalhava como ator para pagar seus filmes. Ou seja, totalmente independentes. Aliás, é bastante seguro afirmar que Cassavetes fundou o cinema independente americano com Sombras, seu primeiro longa.
Ao decorrer de sua carreira, ficou nítido que diretor buscava transpor o conceito do documentário de “cinema-direto”, ou seja, capturar “a vida como ela é” para a ficção com o auxílio constante de improvisações que tanto agregavam quanto prejudicavam seus filmes. O ápice de sua carreira aconteceria em 1974 com Uma Mulher Sob Influência, uma de suas poucas obras a conseguirem chamar a atenção do Oscar conquistando duas merecidas indicações.
Ocorre que este seria um dos longas mais “comportados” da carreira dele ao trazer um intenso drama sobre o casal Longhetti e seus três filhos. Tudo orbita a figura de Mabel (Gena Rowlands), uma mulher instável por conta de um distúrbio psicológico nunca revelado que lhe oferece doses de histeria e confusão mental diariamente. Como seu marido, Nick (Peter Falk), trabalha diversas horas por dia em construção civil e reparos urbano, a estranha mulher tenta encontrar seu papel na sociedade como mãe e dona de casa, apesar de sua condição psicológica.
Porém, quando as coisas começam a sair do controle e da “normalidade”, Nick começa a perceber que a imprevisibilidade de sua esposa coloca a própria família em risco, dificultando sua rotina desregrada. Esse fato desencadeia inúmeros conflitos que põem à prova seu amor por Mabel.
Mistério da Loucura
Apesar de hoje ser um enorme clichê e uma pergunta canastrona, Cassavetes elabora todo o roteiro de Uma Mulher Sob Influência na seguinte questão: afinal, quem é o mais louco? Obviamente que ele não pretende responder a pergunta, mas é inegável que a moral do longa seja esta. A verdade é que o primeiro ato do filme é estupendamente realizado.
Isso ocorre porque o roteirista segue um bê-á-bá bastante básico, mas estranhamente ausente em suas narrativas. Trabalhando com a rotina, ele nos permite conhecer de fato quem é Mabel. Inicialmente uma mulher equilibrada e boa mãe que zela pelos filhos, rapidamente essa figura é desconstruída quando ela experimenta a frustração de não poder dormir com Nick naquela noite. Descompensada, ela vaga sozinha pela cidade em busca de companhia e álcool até cometer, enfim, o adultério com um desconhecido que, posteriormente, ela crê que seja seu marido.
É nesse exato instante que o filme começa a mudar abruptamente e apresentar a realidade de que Mabel não é uma pessoa normal. Através da icônica cena do almoço/espaguete, vemos que a relação entre Mabel e Nick já está fragilizada tanto por conta das sandices da mulher quanto pela impaciência do homem. Com diversos amigos e convidados, Cassavetes permite o improviso que escala a um nível de excitação e entusiasmo para ser totalmente castrada pela reação de Nick contra os pedidos inofensivos de Mabel.
Logo é estabelecida uma relação na qual toda vez Mabel é agredida psicologicamente ou fisicamente por seu marido, sua situação mental deteriora consideravelmente até a ruptura completa de um ataque de nervos. O diretor então mostra duas diferentes loucuras: a do lunático pacífico e a do histérico violento, e como ambas são vistas pela sociedade. A mais desconfortável e indesejada é a de Mabel, pois mesmo que a mulher seja inocente e totalmente refém de sua situação, é uma personagem inconveniente com grandes lapsos de memória.
Ela só se torna agressiva quando encurralada e posta no limite, temendo uma internação. O mais belo de tudo isso é que não existe em si uma exposição explicita dessa evolução de loucura. Tudo vem através da ótima atuação de Gena Rowlands que até mesmo evidencia boas sacadas de Cassavetes como diretor.
O fato é que Uma Mulher Sob Influência foi idealizado como uma peça de teatro (e talvez funcionasse melhor em um). Portanto, quando há um grande aglomerado de personagens, as coisas fluem mesmo que em profundidade de campo ou fora de foco, afinal Cassavetes oferece apenas um olhar sobre a situação e não todos. Isso permite que atores, principalmente Rowlands, continuem criando e mergulhando a fundo em seus personagens.
Mesmo que bastante caricata e pouco sutil, a Mabel de Rowlands é muito interessante ao misturar diversos sintomas de distúrbios psicológicos para impedir o espectador de identificar qual é o problema que ela sofre. Há muita mistura de depressão, ansiedade, Alzheimer, bipolaridade, demência, TOC e diversos tiques nervosos que oferecem um retrato imprevisível e, ainda assim, amável para Mabel.
Com a abordagem explícita para sua loucura, o mesmo não acontece com Nick, o louco aceito e tolerado que também não tem ciência da sua própria loucura. Nick é um personagem que transita no limiar da hipocrisia através de seu descuido com os filhos ou pura irresponsabilidade, já que não sabe ser um pai para as crianças. Peter Falk cria um personagem de extremo que, por vezes, se torna cansativo, pois sempre está berrando ou sussurrando coisas inaudíveis. É algo teatral que enriquece o longa, mas acaba tornando muitas das discussões improvisadas totalmente artificiais – isso é muito mais grave no terceiro ato do longa.
Por conta dessas escaladas absurdas emocionais, Cassavetes não consegue realizar seu “cinema-direto” aqui, pois é nítido para o espectador toda a manipulação desses exageros repetitivos. Aliás, enquanto tudo é novo e interessante até metade do longa, o mesmo não pode ser dito para o que vem depois.
Isso ocorre por conta de diversos fatores. O principal deles é a repetição de pontos que anteriormente já haviam sido bem elaborados e concretizados como no caso do clímax narrativo no qual temos outra discussão eterna entre Mabel e Nick. O segundo mais importante é a completa falta de percepção de Cassavetes em notar que seu filme gigantesco não possui os elementos necessários para justificar a longa duração e do ritmo decadente que rapidamente se torna entediante.
A relação com as crianças nunca é desenvolvida fora do básico, além de termos diversas cenas desnecessárias que não agregam em absolutamente nada para edificar melhor o personagem de Nick já muito bem explorado até então. Em questão de poucos minutos, é fácil perceber que o filme passa a ficar redundante e fragilizado, não conseguindo o impacto de outrora.
Mesmo com a narrativa já debilitada, Cassavetes também não consegue inventar ou renovar a estética crua do longa para criar um visual mais interessante, apesar da trilha musical continuar poderosa. Trabalhando quase sempre no mesmo cenário, a técnica de sua direção se torna bastante mecânica e previsível, com uma repetição incomoda de enquadramentos – incluindo seus exageradíssimos close-ups, em conjunto de uma câmera na mão intrusiva. Ou seja, o melhor comando de Cassavetes na direção ainda é com seus atores que conseguem criar, enfim, um improviso que agrega na narrativa por uma quantidade satisfatória de tempo.
Sob a Influência de Cassavetes
É fácil apontar Uma Mulher Sob Influência como o melhor filme da carreira de Cassavetes. A estética crua mais comportada em conjunto com uma narrativa que permite o desenvolvimento de seus personagens (até certo ponto) tornam a experiência de assistir a esse drama realmente interessante, mesmo que se torne entediante no terceiro ato.
Através de performances assustadoras de Peter Falk e Gena Rowlands, temos um estudo histérico sobre a loucura conveniente e inconveniente, além de trazer retratos sobre a classe trabalhadora e seus respectivos matrimônios. Entre altos e baixos, muitos gritos e sussurros repletos de exageros, Cassavetes conseguiu criar sua obra-prima, mesmo que imperfeita.
Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, EUA – 1974)
Direção: John Cassavetes
Roteiro: John Cassavetes
Elenco: Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, Katherine Cassavetes, Matthew Cassel, Mario Gallo, Eddie Shaw, Charles Horvath
Gênero: Drama
Duração: 155 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=d5O7ujg3VQU
Crítica | Viver - Kurosawa Renascido
O baque do fracasso crítico que O Idiota para Akira Kurosawa foi tremendo. Em sua autobiografia, o cineasta admitiu que a experiência com o estúdio de outrora foi bastante negativa praticamente se tornando a maior decepção em toda sua carreira. Por isso, com o ego machucado, parece que houve um alinhamento dos cosmos para que Kurosawa fizesse Viver, um drama existencial repleto de mensagens importantes e, até hoje, relevantes – principalmente para a população brasileira.
Logo, exorcizando seus próprios demônios, é bem possível que Kurosawa tenha criado o filme mais pessoal de sua carreira. Viver traz a história funcionário público chefe do departamento de relações públicas da prefeitura da cidade, Kanji Watanabe (Takashi Shimura). Sua rotina monótona repleta de burocracia é rapidamente virada de cabeça para baixo quando descobre que possui câncer de estômago em estágio avançado, o condenando a uma sobrevida de apenas seis meses ou menos. Assustado pela perspectiva aterradora de seu futuro próximo, o senhor Watanabe terá um grande trabalho em descobrir o verdadeiro sentido de viver.
Um Conto Moral
Kurosawa parece fissurado na moral de seus filmes. Se em Rashomon tínhamos a busca pela honestidade e em O Idiota o verdadeiro sentido da bondade, em Viver o roteirista quer trazer à tona o sentido da vida – algo bastante compreensível para um cineasta que se tornou imortal. Trazendo uma narrativa bastante simples, quase como um conto, Kurosawa não busca enfatizar a história ou os personagens à exaustão, afinal Viver é uma obra conceitual bastante idealizada para gerar drama.
Tudo envolve a jornada de Watanabe quando descobre seu cruel destino – coisa que o cineasta aponta já na abertura do filme, antes mesmo de nos apresentar ao personagem. Kurosawa aproveita a longa duração do filme para contar todas as passagens que julga importantes com bastante calma. A rotina de Watanabe é permeada de atividades inúteis e de um repasse intenso de tarefas para outros departamentos públicos, nunca resolvendo os problemas que chegam a ele – essa sequência é tão icônica que acabou sendo homenageada em Brazil: O Filme.
Vital para compreendermos o personagem, o ator Takashi Shimura elabora um contraste perfeito para criar o retrato de Watanabe antes e depois da descoberta do câncer. O detalhe genial é que a diferença é muito sutil. O protagonista já é um homem morto, sempre curvado olhando para os pés e agindo lentamente com um semblante triste. A única diferença é a petrificação de seu olhar quando tem ciência de sua enfermidade, já que Shimura mantém todo o andar zumbificado do personagem.
Aliás, o segmento da descoberta da doença é repleto de um estranho humor. Kurosawa não traz a informação do método convencional ao introduzir um diálogo sádico antes da consulta definitiva com um médico mentiroso. Dessa forma, o roteirista encaixa críticas tanto a ética médica quanto ao setor burocrático vadio do serviço público.
Não sendo o foco de Viver, Kurosawa ainda se preocupa em mostrar a família degradada de Watanabe com a relação conturbada que o senhor tem com o próprio filho só interessado no dinheiro de sua aposentadoria, como se contasse os dias para que ele morresse e ficasse com toda a herança para si. Esse é um dos dramas mais genuínos da obra, já que sentimos todo o pesar de Watanabe totalmente decepcionado com os rumos que guiou em sua própria vida, não podendo nem mesmo contar com o apoio de seu filho no momento mais difícil que já enfrentou.
Passado o primeiro ato, Kurosawa divide o segundo ato em duas partes, colocando o personagem a encarar os clichês das histórias que pregam como se deve viver a vida. Logo, Watanabe tenta de todo modo ser alguém que não é: um bon vivant se entregando a uma noitada de extravagâncias, bebidas e mulheres. O clima de estranheza não é só transmitido pela atuação de Shimura que mostra semblantes confusos e infelizes para o personagem, mas como Kurosawa captura o tom patético da busca ingênua de Watanabe.
Reconhecendo que está errado, o protagonista segue outro extremo ao forçar uma paixão com uma menina muito mais jovem que também trabalhava no serviço público. Também sendo um segmento repleto de estranheza pelo ar patético da relação, Kurosawa aposta em diálogos truncados como se o próprio Watanabe fosse um burocrata até para conversar.
O núcleo enfim gera a catarse bastante original no protagonista na qual o roteirista aproveita ao máximo para mostrar como a máquina pública pode funcionar apenas com uma pequena dose de vontade, além de tangenciar os temas de amor ao próximo, altruísmo e legado. O estranho é que Kurosawa escolhe um rumo muito duvidoso no terceiro ato que consiste quase metade do longo filme.
Através de uma reunião solene repleta de flashbacks, o roteirista mostra o que aconteceu com a vida do protagonista nos últimos cinco meses de um modo bastante anticlimático em uma tentativa de remontar a narrativa de relatos fragmentados de Rashomon. Apesar de conseguir criar críticas criativas repletas de antagonismos contra o Estado e seus representantes oficiais, o encadeamento das ações simplesmente já não geram tanto fascínio, apesar da coragem do roteirista em mudar os rumos do filme de modo tão devastador.
Elaborando ironias finais e um toque de sentimentalismo bem eficaz, Kurosawa consegue construir a história do homem moribundo que se esforçou ao máximo para dar mais vida à cidade que ele viveu e nunca aproveitou.
Sinfonia da Vida
Kurosawa mostra toda a gratidão pelo dom da vida com sua direção cuidadosa em Viver. Estendendo a cinematografia como se fosse o próprio Watanabe, o diretor nos apresenta uma plástica imóvel e fria, com jogos simples de enquadramentos enfatizando sempre a montanha de papelada estacionada em todos os cantos do cenário que envolve o departamento.
Isso, evidentemente, é alterado aos poucos conforme o protagonista passa a experimentar mais prazeres na vida após superar o luto da notícia. O diálogo centrado no bar, antes das passagens agitadas com encenações repletas de movimento e agitação, traz uma bela iluminação sombria que Kurosawa valoriza através de diversos enquadramentos repletos de molduras criadas pelo próprio cenário, como se mostrasse o personagem totalmente aprisionado pela sua condição.
O espaço apertado e escuro se transforma em cenários festivos e amplos, oferecendo algum aconchego para o homem triste tão fragilizado – há momentos estéticos geniais como os constantes jogos de reflexos em espelhos muito bem alocados. Em outro momento, o diretor brinca com os sons, cortando completamente a ambiência para mostrar o isolamento psicológico de Watanabe para enfim irromper com sons pesados do tráfego intenso da cidade colocando o personagem de “volta a vida”.
De modo geral, a abordagem de Kurosawa é bastante simples, mas eficiente em trazer uma linguagem visual compreensível, além de ter diversos momentos verdadeiramente artísticos. Temos a já citada sequência da burocracia que é simplesmente genial, além de outras cenas muito poéticas como uma que envolve o pôr do sol e, enfim, a impactante cena da morte do protagonista.
Nela, Kurosawa retoma um enquadramento que utiliza molduras para aprisionar Watanabe, mas logo muda o ponto de vista capturando a imagem icônica do personagem sentado ao balanço sob uma nevasca delicada cantando sua música favorita sobre o tempo e amores. O diretor também firma a cena final com uma ironia cruel, mas realista, removendo um pouco do idealismo prévio que a obra tanto se apoiava.
Viver a Vida
Nessa história inspiradora que com certeza sofrerá muitas alterações conforme o espectador a revisita e envelhece, Kurosawa fez um atestado belo de amor a vida e do espírito humano. Um filme tão influente que conseguiu um clichê de ponto de partida rendendo diversas outras obras, incluindo uma certa série de televisão que revolucionou o formato de narrativa em seriados dramáticos.
Viver é outro grande acerto da carreira de Kurosawa conseguindo manter a tradição moral sempre pertinente ao cineasta que visa não só entreter, mas educar ao resgatar o melhor que temos a oferecer.
Viver (Ikiru, Japão – 1952)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni
Elenco: Takashi Shimura, Haruo Tanaka, Minoru Chiaki, Miki Odagiri, Bukezen Hidari
Gênero: Drama
Duração: 142 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=Lc4y-asVh3c
Crítica | A Época da Inocência - A Prisão dos Bons Costumes
Martin Scorsese é um dos principais diretores autores do cinema americano tendo até mesmo revolucionado a linguagem da arte como um todo com suas invenções visuais e soluções inteligentes. Como é comum para esse tipo de artista, há simplesmente uma área que Scorsese domina e faz melhor que muita gente: os seus filmes urbanos sobre máfia e crime. Mesmo que tenhamos uma porção de obras-primas desse tema bastante complexo, vez ou outra Scorsese precisa exorcizar seus demônios.
Filmes religiosos são uma constante, além de thrillers, documentários e filmes biográficos. A Época da Inocência é um de seus poucos e, provavelmente, o único filme de romance de época. É algo simplesmente incomum em sua carreira não muito familiarizada com esse tipo de história e isso certamente é sentido ao longo do filme demasiado burocrático. Apesar disso, há um grande discurso dessa clássica história de Edith Wharton com a verve pessoal de Scorsese e é justamente isso que torna esse longa memorável.
A Prisão da Aristocracia
Para quem desconhece, A Época da Inocência é adaptado do livro homônimo de Edith Wharton. Com cuidados especiais de Jay Cocks e Martin Scorsese para a adaptação, temos uma narrativa bastante próxima a da obra original. Aqui, acompanhamos a alta sociedade elitista de Nova Iorque em 1870 através do olhar do advogado Newland da respeitada família Archer.
Sabendo que seria de bom tom casar-se com uma moça de família renomada, Newland está noivo de May Welland. Apesar do casamento ser bom para seu status público, o protagonista de mentalidade à frente de seu tempo, sabe que sua noiva tem os pensamentos fechados e pequenos impregnados na alta sociedade nova-iorquina. Desestabilizando ainda mais sua vida, Newland acaba conhecendo a prima casa de May, a condessa Ellen Olenska que fugiu da Europa em busca de suas raízes e de um divórcio contra seu desinteressado marido.
Newland e Ellen acabam próximos com as constantes visitas que um faz ao outro. Uma atração inapropriada surge e ambos se apaixonam, afinal ambos compartilham opiniões muito parecidas, além do corajoso modo de agir diante às imposições daquela sociedade. Em um dilema complicadíssimo, Newland precisa decidir se abandona sua noiva ou aceita não desestabilizar seu círculo social repleto de fofoqueiros hipócritas extremamente ricos.
A abordagem da adaptação que Scorsese traz em A Época da Inocência com certeza não é para todos. Ele opta em tornar seu filme menos cinematográfico ao inserir o mais incomum dos narradores over na sétima arte: o onisciente e onipresente. Através de múltiplas intrusões da narradora, Scorsese busca estabelecer os modos dessa alta sociedade de 1870, dos comportamentos éticos e da moral dos bons costumes entre aqueles cidadãos.
É uma característica única, mas certamente também funciona como uma faca de dois gumes que mais fere do que beneficia. Há um certo ditado que no cinema quase todo narrador over é dispensável com uma dose equilibrada de diálogo expositivo. Como não temos esse tipo de exposição nas conversas requintadas entre os personagens, a narradora pega toda a função para si, nunca falando algo que fosse realmente pertinente. É simplesmente incômodo, pois é possível ajustar essas inserções apenas com imagens mais inteligentes. Scorsese simplesmente decide sacrificar o ar cinematográfico para aproximar seu longa com um tom mais “literário”.
Há uma gritante falha estrutural nessa história da mesma forma. Apesar de acompanharmos sempre o ponto de vista do protagonista Newland, a narrativa perde significativamente a sua moral ao constantemente afirmar que aquela sociedade é “venenosa, hipócrita e depravada” ao nunca mostrar na tela as provas dessa afirmação. Para o espectador, apenas sentimos que os coadjuvantes são pessoas tediosas, muito chatas e preconceituosas de mente fechada, mas nada que fosse além disso.
Há casos sutilíssimos que tentam mostrar o nível de corrupção moral dos personagens ao fazer um homem casado perder o respeito de seu nome pelas incessantes investidas amigáveis na condessa Olenska – nada que fosse realmente condenável surge em tela. Ou quando a esposa desse mesmo homem procura a ajuda de sra. Mingott, uma das mulheres mais ricas e bem quistas da alta sociedade nova-iorquina. Mingott, sempre muito divertida e aparentemente uma mulher de pensamentos mais progressistas, enxota a mulher de sua casa, ultrajada pela “perversão” que havia se instalado naquele lar.
É sutil, de fato, mas insuficiente para mostrar o nível de canalhice que a narradora afirma ou dos sentimentos de Newland a respeito de seus colegas. Aliás, é justamente pelas estranhas escolhas com o protagonista que mal entendemos direito quem são aquelas pessoas e as respectivas importâncias sociais de seus papeis no meio. Nesse vai e vem constante de jantares e bailes com inúmeros rostos desconhecidos para o espectador, é inevitável perder o interesse nesses personagens tratados com a menor relevância possível pelo texto – apesar de serem peças fundamentais da moral do filme.
É impressionante, portanto, que A Época da Inocência não seja um desastre narrativo completo. Pelas boas performances de Daniel Day-Lewis e Michelle Pfeiffer, a proibida história de amor entre os dois funciona satisfatoriamente, apesar da jornada ser bastante tediosa. É proposital, de certa forma, que tudo seja tão lento e frio, afinal todo o ambiente externo aos dois vive de castrar emoções, transformando todos em robozinhos da alta sociedade, com os mesmos pensamentos, vícios e opiniões compartilhados em fofocas depois de elegantes jantares abastados.
Nos momentos que o casal proibido compartilha a sós, há fagulhas de personalidade e paixão que injetam mais vida ao retrato congelado que Scorse pinta com a encenação e ritmo do filme. Assim como na vida real, não existe uma justificativa no florescer do amor e na tensão sexual entre os personagens, e ainda assim conseguem convencer o espectador.
Isso se trata por uma condição inevitável de empatia para conosco: a opressão. Condessa Olenska é uma personagem oprimida em todas as suas características. Ela é prisioneira do marido, das boas normas que a impedem de conseguir o divórcio, é julgada por todos por ser uma mulher mais independente, além de ser indesejada na posição sócio econômica que conquistou, é rejeitada até mesmo pela própria família.
Nesse núcleo de opressão passivo agressivo, Newland tenta salvar a mulher dos maus dizeres e dos rumores odiosos. Se posicionando quase como uma figura paterna protetora, acaba se apaixonando pela mulher que tanto defende. Apesar disso, ao analisarmos melhor Newland, vemos que ele também se encontra em uma situação reversa, mas similar. É um jogo de situações similares, apesar de opostas.
O protagonista é prisioneiro de sua própria classe social. Embora pense e aja de modo diferente no âmago de sua privacidade, Newland precisa se comportar como os demais, embora durante sua jornada amorosa proibida, ele confronte pensamentos cruéis de seus colegas de vez em quando. Depois, através de suas próprias decisões errôneas, acaba prisioneiro de um relacionamento patético por falta de coragem em agir mais rapidamente. Newland, ironicamente, apesar de condenar seus colegas, acaba sendo o pivô da hipocrisia do filme. No final, há sim uma bonita reviravolta envolvendo o relacionamento muito rudimentar que o protagonista tem com sua esposa May ao longo de toda a obra.
Esforços de uma Época
É muito provável que A Época da Inocência seja um dos filmes melhor dirigidos de Martin Scorse. Não somente porque o filme é uma homenagem a seu pai, mas também, como disse, por trazer uma mensagem e jornada um pouco similares ao cenário que viveu em 1970.
A Nova Hollywood, dominada por figuras excêntricas e talentosas como Michael Cimino, Hal Ashby, Brian De Palma, Peter Bogdanovich, Woody Allen, Steven Spielberg, George Lucas, Francis For Coppola, William Friedkin e o próprio Martin Scorsese foi um experimento único na História do Cinema Americano conseguindo colocar os executivos de joelhos ao permitir que fizessem obras de arte autorais para pequenos públicos com custos de produção muitas vezes bastante altos. Esse voo de liberdade nasceu com violência e terminou rapidamente. Até o fim da década de 70, não haveria mais esse tipo de liberdade pelos diversos problemas de produção que os filmes apresentavam, além do prejuízo tremendo.
Scorsese experimentou o melhor e o pior nessa década, chegando perto até mesmo de morrer pelo vício frenético que possuía por drogas sintéticas e bebidas alcoólicas. Salvando-se por um triz, Scorse conseguiu algo que nem Spielberg conquistou de fato: foi o único desses cineastas a produzir grandes filmes caros podendo escolher os projetos que quisesse, sem apelar a franquias milionárias ou sequências de suas obras.
A Época da Inocência é uma grande carta aberta de lamento pela morte daquela liberdade que ele experimentou um século antes do tempo diegético do filme. Podia se expressar como quisesse através da arte, experimentar qualquer coisa e se divertir sem a preocupação do julgamento alheio. Esse assassinato da liberdade, dos modos mais brandos de coerção, é o tema desse longa. Justamente por isso que o diretor se dedica tanto a construir uma experiência catártica para o espectador.
Sabendo que se trata de uma narrativa muito estacionária de progresso lento, o diretor apela em fazer uma recriação fabulosa e fidedigna à época retratada. A Época da Inocência é um deleite visual como poucos outros. Há um cuidado exemplar com a direção de arte muito valorizada pelos enquadramentos majestosos de Scorsese focando na culinária, na tapeçaria, na prataria e porcelanato, nos móveis, na arquitetura das casas, das decorações em pinturas e estátuas e do figurino. É arrebatador de tão belo e apropriado, parece até mesmo que ressuscitaram o século XIX.
Os elogios também são apropriados para a decupagem de Scorsese que busca dinamizar a imagem do filme sempre que possível, seja inserindo jump cuts disfarçados, pequenos slow motions, explosões de cores a la Hitchcock em Um Corpo que Cai, e pela variedade visual de seus enquadramentos nada menos que perfeitos.
Mesmo que tenhamos uma infinidade de cenas sobre bailes, jantares e conversas com os personagens sentados em sofás ou bancos, Scorsese se nega a acomodar o visual do filme. Temos travellings agitados para mostrar toda a extensão de uma mesa, enquadramentos azimutais para exibir os pratos elegantes a partir do ponto de vista dos convidados, além de uma pequena série de planos sequência no começo do filme para dar a ilusão de um mundo mágico e perfeito.
A passagem para um lugar frio, sombrio e artificial é vista através de cenas muito estratégicas nas quais a cinematografia e iluminação de Michael Ballhaus simplesmente brilham de tamanha beleza que evocam sentimentos tristes, de luto e lúgubres. De modo constante, para replicar pinturas barrocas, Ballhaus usa essa iluminação característica por fugir do naturalismo, brincando com luzes pastéis e sombras profundas. Existem até mesmo transformações ativas na iluminação muito ousadas como quando Newland lê uma carta reveladora de Ellen Olenska. Todo o quarto se apaga e uma forte luz branca é jogada na linha do olhar do personagem, o forçando a enxergar uma verdade indesejada. Essa mesma luz que o cega na cena final do filme carregada de simbologia não somente por isso, mas também pelo uso do amarelo em elementos-chave da narrativa: as flores e o toldo.
Scorsese vai até mesmo além e ousa quebrar a quarta parede em alguns momentos bastante significativos para o protagonista. Apesar de criar um efeito interessante, é bastante inadequado para a atmosfera única que ele se esforça em modelar. Com os atores, o destaque fica para a dupla Day-Lewis e Pfeiffer. Mesmo sendo um ator muito investido nos seus personagens, Day-Lewis não consegue criar muito, provavelmente pela imposição da figura indesejável da narradora que castra os sentimentos que ele devia mostrar em tela.
Seu Newland é refém dessa situação desconfortável, apenas oferecendo uma das performances mais limitadas da carreira do ator. Há até mesmo uma estranha ocorrência na qual Lewis se põe à beira do choro na menor das discussões. O que deixa ele mais interessante são as expressões de ódio controlado que lança para May (Winona Ryder) ou pelo fato da química tão apurada e verdadeira que ele consegue criar com Pfeiffer – essa, muito competente em tornar Olenska uma figura sofrida e acostumada com a opressão.
A Censura da Inocência
Mesmo com tropeços expressivos, Martin Scorsese consegue tornar A Época da Inocência um ótimo filme. Sua mensagem continua extremamente relevante e, estranhamente, mais importante do que nunca durante o alvorecer de uma polícia do pensamento bastante odiosa, disfarçada como bastiões do politicamente correto, da boa moral e dos bons costumes.
Através de uma história de amor proibido sob os narizes de hipócritas vigilantes, Scorsese ousou deixar bastante claro: a maior beleza humana são as nossas indomadas paixões, corretas ou não. Vivemos em tempos tão “inocentes” quanto os de 1870. Scorsese criou um resgate sociológico que continuará atual por diversas épocas.
A Época da Inocência
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Martin Scorsese, Jay Cocks, Edith Warthon
Elenco: Daniel Day-Lewis, Winona Ryder, Michelle Pfeiffer, Geraldine Chaplin, Miriam Margoyles, Stuart Wilson
Gênero: Drama, Romance
Duração: 139 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=K0bENHsyGPg
Crítica | Ms. Marvel: Últimos Dias - O encontro mais esperado
Um dos maiores destaques da Marvel nos últimos anos, é a série de quadrinhos da Miss Marvel. Em uma decisão bastante corajosa, a Casa das Ideias decidiu reformular completamente a personagem, removendo Carol Denvers do posto e inserindo uma adolescente muçulmana estabanada: Kamala Khan.
Pela escrita muito consciente da dificuldade que seria gerar empatia com o leitor, a roteirista G. Willow Wilson faz um trabalho exemplar para contar as leves histórias da Ms. Marvel, inclusive resgatando o espírito das narrativas de Stan Lee no início da carreira de seus super-heróis mais queridos como o Homem-Aranha.
Nesse quarto volume, Kamala está em meio a uma crise amorosa, após descobrir que seu “pegue-te” é um super-vilão. Porém, a dinâmica do mundo não dá descanso para a heroína de Jersey City. Observando uma movimentação de pessoas tomadas pelo pânico, Kamala vê um planeta inteiro se dirigindo em direção a Terra. Sendo um desafio claramente fora da alçada para a Ms. Marvel, Kamala tenta ajudar como pode os cidadãos comuns, enquanto tenta também dedicar atenção especial para salvar sua família. Porém, surpreendentemente, Kamala acaba recebendo uma ajuda inesperada da Capitã Marvel, sua antecessora do manto da Ms. Marvel.
O que fascina na escrita de Wilson, é como ela entende bem o espírito dessa nova personagem. De certa forma, seus poderes não são exatamente incríveis. Ela é uma heroína que não pode encarar os maiores desafios, o que deixa essa série muito apropriada para tratar de temas antes comuns a Peter Parker. Porém, ver isso tudo sob uma ótica feminina, de uma cultura diferente, é interessantíssimo.
Kamala tem uma personalidade divertida possibilitando que Wilson insira diversas piadas apropriadas a idade, mas ao mesmo tempo, há um forte grau de realismo psicológico na garota. Ela simplesmente se diverte, mas ainda é inocente em acreditar que não existem sacrifícios e escolhas difíceis no ofício. Essa história em particular, Últimos Dias, se destaca positivamente pela inserção de um cross over muito aguardado: a Capitã Marvel.
A relação entre as duas atinge níveis bons de complexidade com a veterana ensinando sobre os sacrifícios das escolhas e sobre como o heroísmo pode falhar em situações absurdas. Mesmo todo poderosos, os heróis não podem salvar a convergência iminente pré-Guerra Secreta. Aliando a esse bom nível narrativo, temos essa pequena aventura para ajudar os cidadãos, incluindo o irmão raptado de Kamala.
Esse volume é o que trata melhor da relação da garota com sua família, mostrando conflitos e expressando bons sentimentos com sua mãe e irmão, além de uma constrangedora catarse com seu melhor amigo, completamente apaixonado por ela. O interessante é que Wilson arma um cenário perfeito para conferir um final bastante anti-climático para a história em uma tentativa de subverter clichês.
Tendo uma boa história conseguindo equilibrar muito bem o escopo familiar com o heroísmo, temos um festival de ótimas artes oferecidas por Adrian Alphona. Apesar da diagramação não ser utilizada de modo espetacular, Alphona traz desenhos muito significativos para conferir expressões muito bem traçadas para as personagens. O artista alia o realismo das feições e das formas anatômicas com um traço e cores um pouco fantásticas, divertidas. É realmente uma característica única da arte de Alphona.
Apesar de ser um encadernado bem curto, apenas reunindo quatro edições da série principal, Últimos Dias traz um material de alta qualidade dessa improvável heroína. Imprescindível para todos que acompanham essa curiosa história que Wilson está trazendo em uma das melhores fases que a Marvel já viu.
Agradecemos a Panini pela cópia gentilmente cedida para avaliação.
Ms. Marvel: Os Últimos Dias – Vol. 4
Roteiro: G. Willow Wilson
Arte: Adrian Alphona
Editora: Panini
Edições: Ms. Marvel 16 a 19, O Espetacular Homem-Aranha 7-8
Crítica | Turma da Mônica: Lembranças - As doces memórias da infância
As já famosas Graphics MSP, graphic novels concentradas nos personagens criados pela lenda Maurício de Sousa, pode ter sido a melhor coisa que aconteceu à Turma da Mônica em muito tempo.
Depois do sucesso que Astronauta: Magnetar de Danilo Beyruth conseguiu, rapidamente o projeto foi expandido, garantindo outras novas pérolas tão brilhantes quanto a estreia dessa linha distinta e corajosa do editorial de Maurício de Sousa.
Os irmãos Cafaggi, Vitor e Lu, provavelmente tiveram a tarefa mais difícil: cuidar da Turma da Mônica sob esse novo olhar. Não com personagens secundários que propiciam mais liberdade de criação, mas com o quarteto mais famoso do Brasil: Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali. Tudo começou com fofíssima Laços em 2014 que agora será o primeiro filme live action da turma.
O sucesso encomendou uma sequência tão bonita quanto: Lições. E agora, para fechar essa “trilogia do L”, temos outra edição tão pura e doce quanto as outras: Lembranças. Como nas outras histórias, essa aqui se relaciona diretamente com o tema, trazendo um punhado de aventuras distintas que lidam com as ditas “lembranças” guiando as crianças para um novo amadurecimento e das lições de viver o presente aprendendo com os erros do passado ou apenas lembrando com ternura de antigas memórias.
Querida Infância
O que é mais brilhante entre as histórias dos Cafaggi é o fato deles serem da geração que cresceu com as histórias da Turma da Mônica entre diversos gibizinhos. Em vez de trabalharem somente com nostalgia barata, os dois se aventuram em detalhes realmente valiosos, explorando um pouco mais sobre a personalidade das crianças sem, obviamente, fugir das características principais.
Cebolinha continua sendo o mestre dos planos, Cascão vai bem nos esportes e odeia água, Magali é comilona e Mônica continua a gordinha dentuça carinhosa e ameaçadora de sempre. Porém, em pouco mais de cem páginas, os dois conseguem tornar toda a turma mais complexa, na medida do possível.
Apesar de termos diversas aventuras, algumas se estendem pela graphic inteira como as tentativas da Mônica conseguir um convite para uma festa de aniversário de uma antiga colega e a formação do novo clubinho do Cebolinha. Nisso, as tais ‘lembranças’ surgem. Seja do Cebolinha com os primeiros momentos do seu antigo clubinho, enquanto ainda bebê, ou das trapalhadas da Mônica no aniversário da colega no ano anterior, cujas consequências a fizeram não ser convidada nesse ano.
O roteiro é particularmente inteligente em deixar a turma separada em duplas até a metade da história. Vemos Cebolinha e Cascão em aventuras distintas as da Mônica e Magali. Com isso, conseguimos aproveitar com distinção as atividades de cada um com interesses claramente discrepantes, seja no consumo de entretenimento ou de brincadeiras diferentes.
O curioso é que Lembranças sabe bem quem está consumindo a obra. Claro, ela é funcional para crianças, mas afeta os mais crescidos de modo diferente, ao fazer nos recordar da infância propriamente dita. Vitor é inteligente ao selecionar temas que são muito comuns à infância de cada leitor como ir à banca compra gibis – aliás, esse trecho é até metalinguístico, fazendo uma piada com a própria Panini de modo pouco invasivo – comer delícias características da idade, fazer traquinagens na escola como jogar cola na mala de um colega, fugir dos valentões agressivos, dormir na casa dos amigos, ver seriados de animações japonesas, entre diversas outras coisas.
Mas não pense apenas que o roteiro elabora temas felizes e iluminados. Há também as decepções e melancolia, apesar de não muito exploradas em texto, mas sim através da arte incrível de Lu Cafaggi que continua excepcional em trazer nova vida ao mundo criado por Maurício. Particularmente, Lembranças tem trechos de flashbacks dos personagens lembrando o que fizeram há anos. Nisso, a artista segue o convencional para distinguir os quadros, alterando levemente o traço e usando cores mais próximas do sépia. Aqui há os momentos mais fortes da nostalgia dos personagens, incluindo até mesmo o primeiro encontro de Cebolinha com Mônica.
Quando a turma se reúne, enfim, a mesma acuidade com os personagens permanece. As brincadeiras mudam, segredos são criados, laços e lições são concretizadas.
Conquista da Memória
Mesmo que Lembranças não ouse em ir muito além para explorar sentimentos um pouco menos brandos para os personagens, há muito o que ser celebrado nesse final de trilogia. A arte fofa e bela de Lu Cafaggi evoca um sentimento muito vivo nas páginas que parecem saltar aos olhos, além da diagramação que sabe sim aproveitar os momentos mais cinematográficos da HQ. Já o roteiro de Vitor merece todos os elogios e muito mais por conseguir amadurecer os personagens sem apelar para clichês emocionais, mas sim através de momentos tão únicos e, ainda assim, tão presentes na vida de cada leitor.
Além de ser uma excelente história, Lembranças consegue seu principal objetivo: se tornar uma doce memória para o leitor.
Lembranças (Idem, Brasil – 2017)
Roteiro: Vitor Cafaggi
Arte: Lu Cafaggi
Páginas: 100
Editora: Maurício de Sousa, Panini
Crítica | Gotham DPGC - Uma pérola escondida nas asas do Batman
A mitologia criada para o Batman é uma das mais complexas e completas da DC até hoje. São tantos personagens e histórias que conseguem sustentar revistas spin off mensais por até mesmo décadas – mesmo que muitas vezes as histórias sejam medíocres. Porém, houve um tempo, não muito distante, que a DC elevou o nível dessas narrativas ao apostar na ideia peculiar de Ed Brubaker e Greg Rucka: e se os policiais do Departamento de Polícia de Gotham tivesse sua própria mensal?
Os personagens que já participavam esporadicamente nas histórias do Batman teriam finalmente seu lugar principal junto aos holofotes da franquia. Por uma decisão surpreendente, a DC autorizou a empreitada dos dois autores já bastante conceituados no campo da nona arte. E foi assim que começou uma das melhores séries que o universo expandido do Batman já recebeu.
Noite Sem Fim
Se há uma série de quadrinhos protagonizando os detetives do DPGC, é evidente que temos Jim Gordon como protagonista, não? Realmente, é um pensamento que muitos leitores de primeira viagem podem ter. Até eu suspeitava que os roteiristas trilhariam esse caminho bastante óbvio. Porém, o que faz Gotham Central ser tão aclamada é justamente sua coragem.
Rucka e Brubaker não optam pelo seguro. Eles fazem cada arco narrativo com um protagonista diferente, de personagens que o leitor certamente possui pouca familiaridade. A história se passa depois de Terra de Ninguém e os eventos cataclísmicos do terremoto são relembrados por todos, assim como a animosidade entre os novos integrantes do Departamento com a figura de vigilante mascarado que o Batman adota. Logo, o conflito inicial que permeia diferentes pontos de vista dos detetives é bastante poderoso.
Ao longo de 40 ótimas edições, temos arcos variando entre 1, 2, 3 e 4 edições para concluir a trajetória de uma jornada sempre intensa e original. Isso ocorre também por conta da animosidade contra o Batman. Por um ranço de nunca terem o trabalho reconhecido, os detetives fazem questão de não solicitarem mais a ajuda do Batman – que intervém vez ou outra de toda a forma.
O primeiro arco, Na Conduta do Dever, é um dos pontapés iniciais mais interessantes que eu já tenha lido na vida, envolvendo um detetive que vê seu parceiro ser estraçalhado em pedacinhos depois do Senhor Frio o congelar. Possuído por ódio, o protagonista da história jura vingança. Aliás, isso que torna Gotham Central tão especial. Os personagens são extremamente vivos e calorosos.
Ao contrário dos vigilantes que tem personalidades um pouco mais estranhas ao cotidiano, os detetives são “gente como a gente”. Tem vidas familiares, problemas financeiros, comem, bebem, se divertem e sofrem, muito. Todos reconhecem que o departamento é corrupto, mas, com exceção de uma história, apenas acompanhamos detetives honestos que tentam trazer mais justiça a uma cidade extremamente violenta.
Observamos um pouco mais da dinâmica de trabalho, das relações entre eles e, claro, o decorrer das investigações. Cada arco poderia ser taxado como “casos da semana” com a participação de grandes vilões da galeria rica do Batman como o Coringa, mas a maioria dos casos tem antagonistas originais ou vilões menores como o Chapeleiro Louco, Doutor Alquimia e Vagalume.
Porém, é impressionante que mesmo esses vilões que dão pouco trabalho para o Batman são desafios monstruosos para os detetives do departamento. Como são investigações, a cadencia de reviravoltas que Brubaker e Rucka escrevem geralmente tem um padrão preciso de pelo menos três por edição, incluindo os poderosos cliffhangers que praticamente te obrigam a ler a próxima histórias – li as 40 edições em questão de dois dias.
Mesmo que tenhamos diversos protagonistas com personalidades bastante distintas, assim como diversas motivações diferentes, além de detalhes particulares a cada um que certamente encantam o leitor, é evidente que a personagem favorita dos roteiristas é Renee Montoya, a investigadora mais conhecida pelos leitores dentro do rol dessa HQ.
Através dela, temos uma jornada complexa através de temas complicados como a homossexualidade, preconceito, abandono familiar e até mesmo depressão e luto. São diversos arcos que temos ela como protagonista, sempre interagindo com seu colega de turno, Cris Allen, outro personagem excelente.
É por meio deles que Brubaker e Rucka conseguem trabalhar histórias importantes que reverberam por quase todas as edições como a narrativa envolvendo o nojento policial Corrigan, o mais corrupto da corporação e detestado por todos os colegas de trabalho. Há elementos pesados e bastante gráficos envolvendo arcos que ele participa.
Aliás, é bem óbvio o motivo de Gotham Central ter ido mal nas vendas, mas sempre ter chamado a atenção dos votantes do prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. Brubaker e Rucka apostam ferrenhamente nos diálogos e mesmo que eles sejam divertidos e interessantes, é inevitável que uma hora a leitura se torne um pouco enfadonha pela falta de ação ou de acontecimentos relevantes nas páginas. Isso é perceptível consideravelmente nas histórias que compreendem o Tomo 3 dos encadernados recém lançados pela Panini: Gotham DPGC: Sob Suspeita.
Porém, não considero isso como um problema verdadeiro de Gotham Central, mas ao juntar as cores e a arte de Michael Lark é fácil ficar desinteressado. Por mais que Lark seja um excelente desenhista que compreende decupagem de ação com muita facilidade, as escolhas estéticas que ele segue por todas as edições são curiosas.
É evidente que os traços grossos e as cores monocromáticas tendem a poetizar o estilo duro e amargo da vida dos detetives, porém ao pegar seis páginas de diálogos dentro da delegacia com os mesmos tons pasteis e diagramação quadrada, a leitura é comprometida assim como o entretenimento do leitor. Também é curioso com Lark quase nunca aposta em desenhos de página inteira e nunca use uma vez sequer as ilustrações de páginas duplas.
Falhas de diagramação para o peso dos acontecimentos também são comuns, pois o tamanho do quadrinho geralmente se altera para acomodar a importância dos eventos das histórias. Esses deslizes são constantes, mas, ao menos, as aparições pontuais do Batman sempre são potentes trazendo o ar realmente único do personagem para cada cenário crítico.
No Cumprimento do Dever
A coleção Gotham DPGC é uma das melhores coisas que a Panini já lançou aqui no Brasil. São 4 edições recheadas de histórias excelentes e arte, no mínimo, competente, mesmo que não agrade tanto aos olhos. Embarcar nas histórias pessoais e profissionais de personagens tão próximos da nossa realidade é uma grande dádiva corajosa oferecida pela DC que, infelizmente, durou apenas 40 edições, tanto para comportar os eventos da Crise Final quanto por respeito do Rucka aos seus parceiros de trabalho. Com Brubaker cominhando para outros projetos, Rucka sentiu que era hora de terminar a jornada exclusiva dos policiais de Gotham City. Em uma despedida dura e triste, os roteiristas entendem com perfeição a áurea sombria de Gotham: uma cidade que vigilantes e bandidos se dedicam aos seus papéis sempre em uma espessa névoa opressiva, deprimente cuja única motivação que os circunda é o trauma do luto.
Gotham Contra o Crime, Gotham DPCG (Gotham Central, EUA, 2002 a 2006)
Roteiristas: Greg Rucka, Ed Brubaker
Arte: Michael Lark
Editora: DC
Edições: 1 a 40
Review | Wolfenstein II: The New Colossus - O shooter definitivo de 2017
Desde 1981, William “B.J.” Blazkowicz, ou Terror-Billy, para os íntimos, vem chutando bundas de nazistas através de muitas gerações de videogames. E, de alguma forma, a franquia Wolfenstein sempre consegue se reinventar. Seja ousando demais ou retornando e polindo as raízes que fizeram deste game um verdadeiro clássico que causou extrema polêmica quando lançado.
Na fase atual, com a Bethesda adquirindo os direitos do jogo sobre a Activision e logo enviando a produção para a Machine Games, Wolfenstein viu justamente essa pesada reformulação da fórmula clássica que o tornou bem-sucedido em primeiro lugar. Em 2014, era vez da franquia entrar na “nova” geração com o totalmente reformado Wolfenstein: The New Order trazendo novamente a eterna batalha de Blazkowicz contra o general Deathshead.
Com o sucesso estrondoso de crítica e vendas, não era surpresa alguma que a Bethesda e a MachineGames estariam preparando uma aguardada sequência. Wolfenstein II: The New Colossus é, assumidamente, a parte do meio dessa nova trilogia desaforada que pretende contar a libertação do mundo das garras dos nazistas. Acontece que, dessa vez, isso nunca foi tão divertido e viciante.
Um Colosso Narrativo
Wolfenstein II vai pegar muita gente de surpresa por um simples motivo: é uma das melhores narrativas criadas para games em muito tempo. Para quem não sabe, Wolfenstein é situado em uma América que perdeu a 2ª Guerra Mundial. Portanto, há um predomínio nazista globalmente oprimindo diversas nações. The New Colossus começa imediatamente do ponto que The New Order termina.
Portanto, é bastante importante que o jogador já tenha conferido o primeiro (e ótimo) jogo – a Bethesda insere um vídeo de contextualização, mas não é eficaz em apresentar apropriadamente a grande quantidade de personagens e sua importância no primeiro momento que os encontramos na jogatina.
Na trama, Blazkowicz acabou de terminar uma importante missão de The New Order e sofre consequências terríveis que mutilam severamente seu corpo. Resgatado pelos companheiros do Círculo de Kreisau, a célula revolucionária da qual o herói faz parte, Blazkowicz é submetido a cirurgias de urgência e entra em coma por alguns dias até ser desperto com um aterrorizante tiroteio no submarino U-boat que a resistência usa como quartel general.
No máximo, essa é mais breve sinopse que é possível dar para The New Colossus por conta do fator já comentado: a pérola do jogo é sua história. Já nos primeiros momentos da missão introdutória, todo o gameplay é transformado para que o jogador tenha que fuzilar nazistas enquanto “pilota” uma cadeira de rodas até que Blazkowicz se recupere o suficiente para estar de pé.
O interessante é que isso fica extremamente funcional dentro do level design e da curva de dificuldade do jogo. Mesmo em uma cadeira de rodas, o tiroteio de The New Colossus é orgânico – algo digno de nota pela escolha totalmente improvável da condição do protagonista. Depois disso, quando Blazkowicz finalmente está de pé, a história começa de verdade e enxergamos realmente o que Wolfenstein II é: uma gloriosa mistura de drama denso com comédia galhofa.
Os roteiristas do jogo sabem que a alma da história são seus personagens, principalmente o protagonista. Enquanto a grande maioria é muito bem escrita e cheia de características marcantes, somente Blazkowicz que realmente recebe um tratamento de jornada para ser desenvolvido conforme o jogo avança. O resto está apenas como um bom suporte carismático emocionando e divertindo quando necessário.
A questão central do jogo é o temor de Blazkowicz de morrer, afinal sua namorada Anya está grávida de gêmeos e o mundo está repleto de nazistas psicopatas. Logo, é primordial seu conflito interno a respeito de sua natureza física e da fragilidade que se encontra agora. Um choque tão forte que o leva a relembrar memórias árduas de sua infância nos anos 1920 em uma fazenda no interior do Texas.
São detalhes tão íntimos e funcionais que se torna matematicamente impossível ser indiferente a dor do personagem – mesmo que tudo seja construído através de arquétipos muito utilizados em épicos dramáticos hollywoodianos. Porém, tudo isso é compensado pelos momentos de pura beleza e afeto de Blazkowicz ao lembrar-se de sua mãe e do pesar dos abusos terríveis que sofreu do pai.
Tudo isso é expandido e remoído enquanto partimos na tentativa de fazer uma revolução nos EUA, para reviver o espírito calado da liberdade americana que se acovardou diante ao poder opressivo dos nazistas e que convive, tolera e até mesmo celebra quando necessário. Um grande destaque do game é o papel feminino dentro da história. Seja com Anya, com a mãe de Blazkowicz ou com Grace, uma revolucionária que entra na causa no meio da jornada. Todas são mulheres de destaque e forte determinação dentro da narrativa.
Mas nada supera a grande antagonista do jogo: a capitã nazista Irene Engel. Desde Far Cry 3 com Vaas Montenegro que não tínhamos um vilão tão marcante e bem escrito no campo dos videogames. Cada presença que Irene traz em suas participações vale ouro pela loucura racional e sádica que apresenta. Tudo é pensado de forma meticulosa para mostrar a total falta de escrúpulos da vilã. Não é nada complexa, é apenas um retrato simples e cru da maldade, afinal Wolfenstein II é complexo, mas nem tanto. O que nos leva a alegria que é o gameplay do jogo.
Vício Frenético
Quem jogou de The New Order encontrará a mesma dinâmica intensa na sequência. O jogo é muito acelerado, você se movimenta rápido e é bastante poderoso na medida certa. Ou seja, mesmo que Blazkowicz seja um tanque e consiga manipular duas escopetas ao mesmo tempo, pode morrer com algum pouco esforço dos inimigos. E como há uma quantidade significativa de oponentes, Wolfenstein II se torna um jogo consideravelmente difícil mesmo em dificuldades moderadas.
A Bethesda e a MachineGames seguiram um caminho que parece estar cada vez mais raro: um jogo exclusivamente singleplayer e linear. Logo, a estrutura é a que você espera: cutscene-jogo-cutscene-jogo e por aí vai. Em breves momentos, essa dinâmica é interrompida com a navegação interna do cenário do submarino U-Boat, Martelo de Eva, que oferece diversos locais interessantes para exploração, além de conter os melhores diálogos incidentais da equipe que está aberta a interação nesses “respiros” que o jogo dá entre as missões.
De resto, Wolfenstein II está concentrado totalmente nas missões que rendem uma experiência fantástica de dez horas de duração. Ao contrário de outros games, The New Colossus não tem uma progressão de personagem baseada em nível, mas sim através da conquista de pequenos objetivos que o jogo oferece para te recompensar com atributos para o personagem.
Seja com um número determinado de execuções a mão (todas brutais graças a assistência de uma machadinha), de tiros na cabeça, eliminações furtivas, mortes de generais, mortes por fogo, por granada, entre tantas outras. Tudo isso é um convite ao jogador para que ele cumpra os desafios opcionais que o jogo oferece – você vai acabar completando várias apenas por jogar a campanha, naturalmente.
Esse é o fator mais complexo de toda a mecânica do game que é de conceito bastante simples: mire, corra e cause uma carnificina. O que pode e vai complicar a vida do jogador são os generais que, até serem eliminados, chamam reforços de soldados infinitamente e, como os recursos de vida e armadura são mais escassos conforme a dificuldade selecionada, as coisas viram um inferno rapidamente. Logo, também há a possibilidade da abordagem stealth mesmo que ela tire um pouco do brilho e da energia de adrenalina que é o tiroteio do game.
Há uma variedade satisfatória e muito bem cadenciada de inimigos espalhados nos níveis. Os designers sempre são comportados ao inserir oponentes que te dão trabalho, mas nunca além do necessário. Temos soldados regulares, soldados com armadura, super soldados, mechas com supervelocidade, cães, drones, mechas gigantes e os já icônicos panzerhunds, os cães gigantes de metal que cospem fogo. Como a inteligência artificial dos inimigos busca te flanquear a todo momento, é preciso que o jogador fique atento com qual abordagem tomar com cada um deles para que não ganhe nenhuma surpresa desagradável.
Fora isso, há alguns coletáveis espalhados dentro dos níveis, incluindo kits de aprimoramento de arma. Cada arma possui três espaços para melhorias igualmente básicas: aumento do tamanho do pente, maior poder de fogo ou disparo diferenciado como melhor perfuração ou uso de silenciador. São upgrades úteis e valiosos então pense com cuidado para qual aprimoramento que pretende comprar os kits – o de aumento do pente sempre é necessário para deixar o tiroteio ainda mais intenso.
Com as armas do arsenal sendo obtidas naturalmente conforme se derruba inimigos, não demora nada até que o jogador esteja armado até os dentes. E olha que isso nem é a melhor parte do jogo. As armas pesadas trazem uma diversão totalmente inerente a elas: uma de raios laser que desintegram os oponentes, uma metralhadora de calibre gigante e um lança-chamas/granadas que explode tudo o que há pelo caminho. Com elas, o desafio fica muito mais brando e o jogo, mais divertido, pois também é possível recarregar duas delas em estações de recarga específicas que estão espalhadas pelo cenário para cada arma.
O único entrave é, por conta do ritmo intenso de tiro e movimentação, acessar a roda de armas para trocar de armamento é quase um atestado de óbito. Infelizmente a produtora não inseriu um breve slow motion tão característico para acessar o grid das armas. Como tudo é em tempo real, o jogador pode se embananar inteiro na hora da troca sempre necessária quando as balas acabarem.
Outra dinâmica estranha do jogo é a obtenção de munição e armadura que caem quando os oponentes morrem. Certas vezes, tudo é automático ao passar perto desses itens, mas em grande maioria, é necessário que o jogador aperte o botão de ação para pegar o que deseja. Novamente, isso no tiroteio é bastante inviável.
Um Mundo de Ordem e Caos
Como perceberam, não há muito o que criticar negativamente em Wolfenstein II. A Bethesda e a MachineGames fizeram um trabalho excepcional em absolutamente todas as áreas. Óbvio que isso inclui o trabalho de polimento gráfico, design de nível e outras características técnicas sensacionais.
A começar, as cinematics do game são excelentes oferecendo muito mais do que um olhar banal sobre os eventos da história. Há movimentação elaborada da câmera, enquadramentos bem pensados e até mesmo uso criativo da montagem para jogar os personagens em diferentes localidades dos EUA em questão de segundos. É realmente cinematográfico. Uma preocupação evidente para os diretores tão caprichosos do jogo.
Se algo é trabalhado nesse nível, o mesmo se pode dizer das expressões faciais e da dublagem original fantástica dos personagens. Aliás, mesmo que seja um plus da edição nacional e que muitos brasileiros certamente apreciam, não posso recomendar que joguem o game com essa opção. O time de dubladores e a direção nacional parecem não ter compreendido bem a voz e os sentimentos principais do protagonista. Em uma jogatina de duas horas em cada versão, fica nítida a diferença da qualidade da dublagem.
Acredite, se perde características importantíssimas do drama de Blazkowicz ao escolher a dublagem nacional muito modesta e pouco interessada. Além disso, como há um trabalho de sotaques ferrenho entre o elenco inteiro de vozes, a recomendação pela versão original é ainda mais forte. Infelizmente não há como colocar o diálogo em inglês e as legendas em português nos jogos da Bethesda – algo que precisa de uma correção urgente.
Na versão testada, de Xbox One, também é impressionante o resultado técnico da consistência de quadros por segundo (algo vital em first person shooters). Mesmo com muitos personagens em tela, efeitos de partículas e névoa, além da belíssima iluminação bem pensada dos cenários, o console segurou bem o processamento disso tudo, mas quando há muitas explosões ou heavy gunners a frente, a chance da taxa se desestabilizar é maior.
Já no que tange o departamento artístico do jogo, digamos que ele abandona bastante o visual clássico dos castelos que os games costumavam visitar. Essa é uma aventura expansiva em diversas localidades dos EUA e isso possibilita boas adições artísticas muito particulares dessa edição em especial.
Os níveis são muito bem desenhados, mas há diferenças claras de alguns que são muito mais inspirados que outros. Por exemplo, quando o jogo te oferece visitar um pedaço de Roswell enquanto uma parada nazista ocorre na avenida principal, tudo se torna mais pasteurizado e comum de tão brilhante que é o nível. Outros são bastante focados na pegada steampunk dos covis secretos ou de grandes naves nazistas que, apesar de um visual abastado e bastante diferenciado, não chamam tanto a atenção como outros focados na exploração linear de cidades totalmente destruídas pelas consequências de uma bomba atômica ou das cicatrizes de uma revolução fracassada.
Apesar dessa discrepância de visual, todos são muito divertidos e contam com particularidades de construção que oferecem mais de um modo para que o jogador atinja alguns destinos. Também é obrigatório que eu comente algo espetacular: a trilha musical. Quando o rock rola solto e diversos inimigos invadem um salão, foi difícil conter um sorriso sádico antes de começar a explodir todos eles. É uma trilha forte, eficiente e pontual que sabe a hora de entrar em cena para o jogador ficar totalmente satisfeito. Novamente, que jogo incrível.
O único ponto descompensado nesse sentido de Wolfenstein II é a inclusão errônea de algumas paredes invisíveis que impedem o jogador de pular entre plataformas, além de um sistema de navegação muito rudimentar para mostrar o caminho dos objetivos. Fora isso, tudo é realmente certeiro.
A Imortal Revolução
É interessante também que os desenvolvedores sabiamente tenham evitado entrar em quaisquer comentários políticos sobre o cenário americano atual. Se o fizeram, não foi de modo descarado a ponto de desestabilizar a vontade de quem joga ou de ser algo realmente intrusivo. Tudo o que é dito de fato colabora para a dinâmica da história e da relação fantástica entre os personagens.
Em meio a uma carnificina completa em uma das experiencias mais divertidas do ano, a Bethesda não oferece apenas uma história fantástica para o jogador, além de muito respeito ao próprio produto. Mais do que isso: ela assina de vez o seu nome como uma das publishers que mais respeitam a comunidade gamer.
Ao contrário de certas outras concorrentes, ela compra estúdios que sabem fazer jogos para justamente produzi-los, finaliza-los e lança-los. Com Wolfenstein II: The New Colossus é evidente que estamos falando de um dos melhores produtos que já foram lançados em sua história.
Agradecemos a Bethesda pela cópia gentilmente cedida para a análise.
https://www.youtube.com/watch?v=bkrwUzWeACg