Crítica | Demon Slayer: Kimetsu No Yaiba - To The Hashira Training é uma experiência para fãs e nada além disso
Ao contrário do filme fenômeno que foi dedicado ao arco inteiro do Trem Mugen, desde o final do arco do Distrito de Entretenimento, a Sony e a Ufotable tem se dedicado em criar prévias de luxo para os ávidos fãs de Demon Slayer que já se tornou um fenômeno global. Entre o hiato entre temporadas, é realizado o “filme” evento trazendo uma conexão entre o último episódio da temporada anterior em combinação com o primeiro da próxima.
No caso, temos a exibição da excelente conclusão do arco da Vila dos Ferreiros e o primeiro episódio do Treinamento Hashira (ou Pilares na versão traduzida do mangá). Entretanto, algumas coisas mudaram entre o filme anterior que apresentava a conexão entre a 3ª e 4ª temporadas.
Após a firme represália dos fãs, a Ufotable preparou uma apresentação mais decente para o “filme”, trazendo flashbacks de pontos altos de todas as temporadas anteriores, além de uma nítida transição empolgante para apresentar o arco do Treinamento Hashira. Quem é fã, certamente vai se empolgar em poder ver a prévia do início da temporada já muito aguardada, mas o tom dessas obras se mantém: em termos de conteúdo, é extremamente medíocre.
A experiência tem pouco mais de 90 minutos e o início do Treinamento Hashira é, de longe, um dos mais parados do anime. O ponto é tão crítico que até a produção da Ufotable se esforça em criar segmentos de filler para injetar ação e apresentar mais dos personagens Obanai Iguro e Sanemi Shinazugawa, os Hashiras da Serpente e do Vento. A passagem é genérica, sim, mas serve como uma apresentação mais lógica ao Castelo Infinito que marca o começo do final da saga.
De resto, tem um pouco de comédia com diálogos engraçados entre o carismático protagonista Tanjiro e seu amigo Zenitsu. A animação que envolve o cânone do material original também é bastante comedida, com planos estáticos de Tanjiro comendo e se recuperando numa cama pela maior parte do episódio. Como disse, se trata mesmo de um começo de temporada bastante parado.
Entretanto, verdade seja dita, assistir o clímax da VIla dos Ferreiros em uma tela de cinema, além da sonorização espacial feita em uma mixagem dedicada, é algo bastante único. O clímax, ainda que não seja o mais intenso em termos de animação - nada supera o final do Distrito de Entretenimento, traz uma carga emocional fortíssima pelo tema musical belíssimo de Nezuko estourando nas caixas de som. É divertido, sim, além de destacar ainda mais o ótimo trabalho da animação da Ufotable com cores expressivas e traços fortes.
Ainda que, felizmente, a Sony tenha trazido cópias legendas com vozes no japonês original, o destaque é mesmo para a dublagem brasileira que, admito, não é ruim, mas está longe de seus tempos áureos dos anos 1990 em adaptações incríveis de Samurai X, Yu Yu Hakusho e Dragon Ball Z. Há boas piadas adaptadas e o dublador de Zenitsu é muito competente em pegar os maneirismos da voz original para o português sem soar algo estranho ou desagradável.
O mesmo vale para o dublador de Tanjiro. A única derrapada mesmo fica na atriz responsável por Kanroji, a Hashira do Amor, que usa um timbre tão agudo em um ritmo acelerado que muitas vezes tornam as falas são incompreensíveis.
Demon Slayer: Kimetsu No Yaiba - To The Hashira Training é um evento de prévia. Classificar como um “filme” é forçar a barra e diminuir o próprio histórico da Ufotable no trabalho fenomenal realizado para o Trem Mugen que, sim, é mesmo um filme de verdade ao adaptar um arco inteiro do mangá.
Torço para que a Sony, após apelar nessa tática pela segunda vez, repita o acerto com a produtora e traga uma verdadeira experiência cinematográfica quando o arco do Castelo Infinito for iniciado daqui alguns anos.
https://www.youtube.com/watch?v=SXcCdQdcBtw
Crítica | True Detective: Terra Noturna não vai muito além do frio aterrador
Em hiato há sete anos, True Detective retorna para uma quarta temporada na HBO. Uma das joias da coroa no sentido de produções originais da emissora, a antologia policial rendeu 3 histórias distintas sob comando de Nic Pizzolato, com o ano inaugural sendo visto como uma das grandes narrativas seriadas do último século.
Sai Pizzolato e entra a cineasta Issa López, que envisionou uma série original sobre detetives no Alasca, mas cujo projeto acabou sendo “convertido” em uma nova temporada de True Detective, com o subtítulo Terra Noturna. É uma decisão curiosa, já que garante uma atenção consideravelmente maior do público (ao adotar uma marca popular), mas também aumenta exponencialmente a pressão do resultado final, dada a qualidade do trabalho de Pizzolato. E isso fica evidente ao final dos seis episódios de Terra Noturna.
A escrita de López (que também dirigiu todos os episódios) é bem distinta da de Pizzolato, e justamente por estar inserida no universo (com direito a descartáveis referências à primeira temporada), a diferença é praticamente dia e noite. Não há diálogos envolventes, arcos muito impressionantes e nem ao menos personagens envolventes - por mais que Jodie Foster esteja excepcional como a policial Liz Danvers e a ex-lutadora Kali Reis surpreenda como sua parceira esquentada, Evangeline Navarro. A impressão que fica é de um mero genérico policial, extremamente comum e com uma resolução absolutamente decepcionante - ainda mais com alguns episódios sugerindo algum tipo de reviravolta sobrenatural.
https://www.youtube.com/watch?v=G0NsJhJ9UIY
O grande trunfo de Terra Noturna, e talvez esta seja a única característica capaz de rivalizar com as temporadas anteriores, é sua ambientação. Longe de cenários do interior dos EUA ou a selva de pedra de Los Angeles, a cidadezinha de Ennis, no Alasca, mostra-se um palco perfeito para uma história de investigação; ainda mais considerando o desenrolar durante o período de longa noite, onde a luz do sol não aparece por literalmente semanas. Dessa forma, López pega emprestado de clássicos como O Enigma do Outro Mundo e Insônia, e até mesmo um pouco da atmosfera certeira do irregular 30 Dias de Noite. O mistério pode não instigar, mas as sensações, o frio e a fotografia noturna são sempre interessantes de se olhar.
No fim, a grande sina de True Detective: Terra Noturna foi se associar a uma marca de qualidade extremamente alta. O trabalho de Issa López não é ruim, mas fica bem mais abaixo da grandeza dramática e até metafísica que as anteriores já ofereceram.
Crítica | Ferrari – Uma Corrida contra a Morte e o custo do Legado
A essa altura uma carreira reconhecida por contar histórias de profissionais obcecados por seu trabalho, como único meio de fuga, salvo-conduto e valor existencial. De gângsteres à policiais e grandes figuras históricas, o homem-protagonista de Michael Mann permanece praticamente intacto, assim como suas formas pouco ortodoxas de explorar bases clássicas de filmes de gênero, dando pouca importância à convenções ou fórmulas de agrado mainstream.
Talvez tenha sido isso que o impediu de conquistar qualquer sucesso reconhecível no final dos anos 2000 pós Miami-Vice, até seus únicos títulos lançados na última década Hacker na década passada e agora (esperemos que por enquanto) nos 2020 com Ferrari. Que após um longo hiato criativo, seja por prováveis problemas de financiamento e sabe-se Deus quantos contratempos de produção e distribuição que vieram a amaldiçoar um dos projetos pessoais mais antigos do diretor que era trazer sua visão sobre Enzo Ferrari. O resultado final definitivamente não é o filme que eu esperava, mas também... o único possível que poderíamos ter conseguido!
Desviando do Convencional
Tomando a forma que quase todo filme tardio de um diretor de idade já avançada geralmente toma. Só que ao invés de pisar fundo no melancólico, coisa que já havia em abundância em filmes passados de Mann; Ferrari se forma como um filme fúnebre. Explorando a estréia relação de seu protagonista título com a morte e como ela entra em contato direto com seu trabalho na ameaça da falência; os fantasmas que rondam sua vida na forma de um filho falecido e uma esposa amarga; e tudo o que impregnará em seu legado daqui para frente, vitória ou derrota, um herdeiro reconhecido ou uma mancha em seu ser pecaminoso.
O tom inicial é sombrio e um tanto amargo, o que pode ter menos a ver com o estado de espírito atual de Mann e mais com as origens do roteiro. Escrito por um cara das antigas, Troy Kennedy Martin (Um Golpe à Italiana e Os Guerreiros Pilantras), de um projeto envisionado junto a Mann mesmo antes dos anos 2000, e antes da morte de Martin em 2009. Há uma carga verborrágica quase econômica em sua estruturação; de palavreado quase econômica em sua estruturação; deixando espaço livre para contemplação enquanto mantém a franqueza do enredo, guardando toda a entrega para momentos-chave de confronto catártico.
Carregando um traço quase que antiquado, como se fosse o tipo de material que acabaria sendo dirigido por diretores-autores rendidos ao ostracismo como Samuel Fuller, Richard Fleischer ou Robert Aldrich durante seus dias definitivos no final dos anos 70 e meados dos anos 80. E bem... Mann há tempos já se tornou um deles, então é apenas o passo natural para sua carreira; só conseguindo fazer esse filme depois de décadas de esforços intensos.
Agora afastados de todo o prestígio que uma vez tiveram, esses tipos de filmes eram dirigidos por caras que simplesmente não se importavam mais. Isso ou era expressado em experimentais radicais; em trabalhos contratuais sem inspiração nenhuma, ou em algo sereno, revelando um estado de melancolia. Os materiais explorados poderiam variar entre meros ecos de seus sucessos passados ou dramas tradicionais. O Ferrari de Mann pode soar como um melodrama doméstico, já que o foco predominante do texto pende fortemente da batalha de egos entre Ferrari e sua esposa Laura, equilibrando a vida pessoal com seu trabalho entrando em confronto direto e contrastante.
Poderia ter se mantido a isso e o resultado teria sido o suco do convencional e sem inspiração, mas Mann é um diretor de mão cheia que ainda possuí a habilidade de apimentar a narrativa convencional com talento, trazendo uma vivacidade vista nas poucas, mas memoráveis, sequências de corrida; enquanto o resto do filme adota uma abordagem uniformemente elegante, e para todos os efeitos de falta de nomenclatura adequada: clássica.
À primeira vista, é formal e tradicionalista, mas nem por isso é um filme que se prende a tradições formulaicas de roteiro e evita o engessamento e o convencionalismo de uma cinebiografiapois constantemente subverte os lugares mais comuns da "cinebiografia" tradicional. Não só pela forma que escolhe montar o retrato desse homem em volta de um recorte especifico da sua vida – que por si só não é nada original visto outras biografias seguirem o mesmo método (Lincoln de Spielberg, Steve Jobs de Danny Boyle), mas na forma em como revela as partes mais íntimas da representação do “grande homem”.
O Enzo Ferrari de Mann não é um símbolo idealizado onde o papel ator central é trazer tracejos famosos da sua persona; é alguém vívido, vivendo, seus traços comportamentais e psicológicos que se refletem em sua personalidade, sendo observados de maneira próxima e cotidiana. Nela podemos sim ver o sujeito inspirador e carismaticamente natural que Mann tanto claramente admira, mas também pinta o ser humano e trágico entre os quartos, salas e escritórios de seu intimo
Onde a maior parte da ‘ação’ do filme se passa, além de abertamente pular a cerca no casamento fracassado, é frio e calculista em seu egoísmo quase estóico, enquanto tenta convencer o quão insensível é para aqueles que ele nunca conseguiu de fato enganar próximos a ele. A constante contradição é o que forma a alma do personagem: um pai amoroso e atencioso, e um homem frio profundamente indiferente que habitam o mesmo personagem.
Vivendo também em relações contrastantes: um filho falecido que lhe lembra dos seus erros e a mortalidade, e o jovem filho vivo que é a esperança para o seu futuro; a esposa que o lembra de todas as misérias que ele suportou e a amante que lhe traz esperança e conforto. Não existe um todo porque ele está constantemente em movimento, dividido, exigido; criando a máquina frio que opera o homem e o seu império.
“Nossa Paixão Mortal; Nossa Alegria Terrível”
Alguém já citou isso antes de mim, então já adianto que não posso tomar todo o crédito, mas é muito real que, em muitos aspectos, o filme de Mann segue uma linha bastante semelhante ao que Nolan fez em Oppenheimer este ano: ambos contando a história de homens presos ao fardo que seu trabalho, sua paixão, criam na vida de tantos e como este toma forma de um legado de ‘destruição’ que deixaram para trás. Onde seus diretores idolatram e se identificam com essas figuras, mas ao mesmo tempo não escondem seus podres.
É fácil apontar o quanto Mann se vê no estado similar ao de Ferrari, de um homem absolutamente implacável, competitivo, movido por uma paixão descontrolada e obsessão por seu ofício; mas também reconhecendo o que esse caminho exige de um homem à longo tempo. Novamente, é apenas o percurso natural para onde Mann eventualmente levaria sua assinatura, já que esse é praticamente o próximo capítulo do protagonista tradicional de Mann: personagensmovido por obsessões, confrontando a possibilidade de perder o controle de suas próprias vidas, tendo tempo e recursos esgotados.
O homem de Profissão: Ladrão é o mesmo visto em Ferrari, apenas em diferentes escalas de poder e controle. O que separa o Frank de James Caan da Ferrari do Enzo de Driver é, onde Frank via os laços familiares como elementos essenciais do homem para criar status e uma vida para chamar de sua ao lado da profissão que lhe dá sustento; Enzo encara isso como nada além de encargos colaterais. Onde um procurou separar os dois lados até não poder mais e teve que largar tudo, o outro diante da colisão do pessoal com o profissional, inevitavelmente se fundem em um só e não dá mais para perceber a diferença.
E como já era de se esperar, e outro ponto bem semelhante ao que Nolan fez em Oppenheimer, é como Mann implica o cinema e a arte junto ao ofício de sua figura explorada: um espelho reflexivo de seu próprio ofício e arte. E no filme de Mann anda em maior linha conectiva, pois o trabalho e paixão de Enzo por corridas não é diferente do cinema em si: uma busca incessante pela forma de espetáculo e o retorno financeiro desta, um fator de importância claro, mas para seu protagonista, apenas meios para manter o sonho a se concretizar. E tal como o esporte é como a arte, ambos mecanismos da criação humana tão admiráveis em sua mitificação cultural, que tornam toleráveis o lado mais cruel dos seres humanos por trás destes.
A criação de imagens de respeito e influência servem como uma fachada que ficam no caminho dos casos extraconjugais e pequenos acidentes mortais que isentam responsabilidade. Onde a ganância, herança pessoal e legado se misturam em uma continuidade de negócios. Onde até mesmo ter um herdeiro é uma necessidade capital. Perdeu um? Tem um sobressalente! O fato de sequer haver essa noção presente nas entrelinhas do filme torna tudo ainda mais repugnante até mesmo para os personagens que o vivenciam. É por isso que Enzo simplesmente se desliga da mecânica complexa do mundo: pessoas, sentimentos, empatia; focando apenas no objetivo: números, estatísticas, confiando apenas na máquina.
Para continuar produzindo essas obras de arte da era tecnológica em metal esculpido: os carros; onde cada segundo conta para se preparar para a próxima corrida. Seu foco e lema é construí-los mais rápidos, mais fortes, mais modernos, sempre evoluindo, pois Ferrari, o homem/a máquina deve ser mantido em fluxo. O carro, o ferramental de produção, a marca são sagrados, os motoristas são meramente substituíveis!
É por isso que, pouco antes da grande corrida climática do Mille Miglia, você vê os pilotos escrevendo cartas para suas esposas e entes queridos, relembrando um ritual pré-batalha, como se estivessem prestes a partir para possivelmente morrer no campo de batalha em uma guerra. As suas vidas nada mais são do que parte da receita de capital para tornar esses sonhos realidade. Seus veículos são o trabalho dos sonhos, o coração inspirador de adrenalina estimulante e também seus caixões de metal.
O sucesso tem um preço elevado, um esforço que consome almas, cujo único retorno de rendimento é uma vida inteira de arrependimentos e feridas abertas; enquanto a morte é uma certeza sempre próxima e acessível. Essa é a mentalidade que conduz Enzo Ferrari, e no ritmo contínuo em que vai acumulando infortúnios atrás dos outros, surgem problemas, tragédias acontecem e o cara continua operando como um mecânico manejando as partes e peças de sua vida, porque, novamente, a máquina deve continuar bombeando!
Um Esteta Invicto
O que de início se faz dar a impressão de ser um filme focado em planos de acessórios, engrenagens, mãos, ferramentas, marchas, relógios, etc; os utensílios do trabalho contínuo e interminável da maquinação Ferrari, o homem e seu império; acabou sendo muito mais um filme de rostos e como ele enquadra esses rostos na tela, delineando-os na posição certa onde a luz e as sombras se contrastando neles revelam toda a carga emocional que eles despertam em suas pequenas minúcias, justapostos à música e suas visões de tempos mais felizes formulando a ópera trágica de sua existência muito presente. Visto principalmente na brilhante cena da ópera onde todo o elenco de personagens parecem ter um momento de melancolia compartilhada, com os fantasmas que ainda assombram suas mentes.
O diretor de fotografia, Erik Messerschmidt, ilumina as tomadas com uma textura barroca pincelada digna de um Caravaggio, escondida entre sua palpabilidade fílmica. Possuindo a sensibilidade íntima que transmuta naturalmente para o táctil feroz presente nas sequências de corrida. Ajustando o uso de câmera portátil tradicional de Mann com a câmera acoplada por cima das cabines de motorista, trazendo um nível puro de imersão através do frenesi, visceral, desespero, selvageria. O nível adrenalina visual e sonoro de fazer você se sentir entre o arranque dos motores!
Junto ao trabalho do montador Pietro Scalia fazendo um trabalho igualmente formidável, adotando um ritmo clássico e meditativo, mas arrebentando o pedal nos movimentos cinéticos nas sequências da pista de corrida, mas brilhando especialmente ao intercalar o ranger dos motores da Ferrari intercalado com uma missa católico e na já mencionada cena de visões e dias mais felizes brilhando em rostos tristes / e pesarosos com a ópera ao fundo. Eisenstein ficaria orgulhoso!
O clímax na corrida Mille Miglia se cria um levante contínuo no terço final do filme entregando toda a esperada proeza técnica de Mann. Se tornando especialmente memorável quando ao que à primeira vista parece estar invocando um gosto antiquado de glória para a Ferrari em seu conflito empresarial prestes a obter uma vitória simbólica; só para brutal e secamente culminar na tragédia de Guidizzolo que é possível te fazer ter uma reação física de choque - ainda mais aos Brasileiros por envolver o bendito papel que acabou no colo de Gabriel Leone (pelo menos é um papel de inegável destaque). E a partir daí, o tom fúnebre deixado pela narrativa não vai embora tão cedo até que os créditos rolarem.
Talvez no geral o filme deixe um pouco a desejar, especialmente se você é um fanático por Mann como aquele que escreve estas palavras. O material talvez pareça sim ainda bem tradicional e seguro para suas habilidades mais anárquicas que parecem pouco presente. Mas ainda assim, não deixa de ser impressionante em como Mann ainda consegue contar toda sua narrativa bem compactada dentro de duas horas, e ainda fazê-la ser carregada de inflexões e reflexões sombrias que sua apresentação formal aparentam não ameaçar sequer ser uma possibilidade aqui, mas elas certamente não saem de você pós sessão.
Seja o rosto petrificado de Penélope Cruz carregado de mágoas que faz tremer a espinha e esmagar a alma te lembrando a atriz assombrosa que ela consegue ser; outra performance de presença magnética digna de um grande astro vinda de Driver se provando cada vez mais; ou a incapacidade do seu Enzo ser incapaz de parar por qualquer que seja o obstáculo ou peso carregado: seus erros, maldições, até mesmo sua prole, tudo que ele ama ou acredita, ele vai carrega de mãos dadas rumo à sua morte, seu palácio funerário que se tornará o legado de seu nome.
Não é nada gratificante, porque a vida geralmente não é, mas se pode resultar em alto tão belo e assustadoramente instigante, então a escultura de metal, a arte, enfim teve seu impacto, pois apesar de seus custos, e a obsessão do homem, Mann ou Ferrari, aceitaram o peso desse fardo com inspiradora austeridade!
Ferrari (Ferrari, EUA, 2023)
Roteiro: Troy Kennedy Martin (baseado no livro Enzo Ferrari: The Man, the Cars, the Races, the Machine)
Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Sarah Gadon, Gabriel Leone, Jack O'Connell, Patrick Dempsey
Gênero: Drama, Biografia, Esporte
Duração: 130 min
Review | Skull and Bones diverte e tem potencial para conquistar espaço no mercado
É um tanto surreal encarar o fato que Skull and Bones demorou tanto tempo para ser lançado. O jogo começou a ser produzido ainda em 2013, logo após a recepção histórica de Asassin’s Creed IV. Antes, a Ubisoft planejava que o jogo fosse um complemento à Black Flag, mas devido à recepção muito animada dos jogadores, o projeto tomou um escopo maior.
Até seu anúncio oficial em 2017, o jogo já vinha sofrendo muitos problemas de produção. Por uma obrigação contratual com o governo de Singapura, a Ubisoft não podia simplesmente cancelar o jogo: pelo dinheiro investido do governo, era preciso lançar o produto ou pagar uma indenização gigante.
A primeira data de lançamento do jogo era prevista para 2018. Obviamente a meta não foi cumprida, com inúmeros adiantamentos até chegarmos no produto lançado agora em 2024. Diante de um cenário caótico, envolvendo mais de uma década de produção, finalmente o jogo está disponível e, por incrível que pareça, consegue divertir sim.
https://www.youtube.com/watch?v=OmDYo7MbQxo&t=2s
Uma vida de pirata para mim
Skull and Bones foi planejado como um jogo como serviço. Ou seja, deve ser aprimorado ao longo do tempo com mais conteúdos e passes de temporada (por mais bizarro que possa ser declarar isso após onze anos em desenvolvimento).
No jogo, o seu personagem sobrevive a uma enorme batalha naval que destrói completamente seu navio e tripulação. Tendo que recomeçar do zero, não resta alternativa ao pirata desprestigiado reconquistar sua infâmia nos sete mares (embora aqui tenhamos somente o Oceano Índico).
Munido apenas de um barquinho furreca e dois imediatos, a jornada nos leva ao hub principal do jogo, a ilha de Sainte-Anne. Lá, o jogador (após criar seu personagem em um criador medíocre e mal projetado) encontra o temível pirata John Scurlock que vai oferecer diversos contratos para prosseguir a história que é bem simples e rasa, com quase nenhum personagem memorável.
Assim, as primeiras horas de Skull and Bones são iniciadas. E, acredite, elas serão as horas mais difíceis para encarar no título porque se trata de um tutorial massivo para o jogador compreender o ciclo de atividades que terá que realizar por muitas horas de entretenimento.
Através de muitas quests de buscas, o jogador vai conhecer os NPCs necessários para aprimorar seus pertences. Isso envolve melhorias de armas, dos navios, das ferramentas de coleta, além de outras mecânicas de cozinha e vestuário. Logo, o objetivo do jogo é perseverar em um grinding expressivo a fim de melhorar todos seus equipamentos e conquistar o mais alto grau de infâmia que também desbloqueia melhorias ainda mais interessantes para o jogador.
Ao menos, a Ubisoft foi bastante transparente em relação ao conteúdo do jogo e isso é algo louvável. Em relação às micro transações, todas envolvem apenas cosméticos (que são sim incríveis), sem oferecer pacotes de experiência dobrada, etc. É um acerto adequado, afinal o jogo não é nada barato e a loja oferece muitas skins fantásticas para o navio, de roupas e até mesmo de pets divertidos que vão te acompanhar nas navegações.
O único grande vacilo em relação a isso também envolve uma mecânica deficitária: não há como escolher e recrutar a própria tripulação do navio. É possível mudar a roupa, mas a textura e concepção desses personagens é tão preguiçosa que mal dá vontade de observá-los trabalhando.

Call of Duty em alto mar
Em questão de segundos ao jogar Skull and Bones, é nítido que a abordagem da Ubisoft foi tornar o jogo o mais arcade possível. A mobilidade dos navios é razoável e pode ser aprimorada com upgrades enquanto o combate ganha mais camadas através da adição de mais armamentos. Os combates navais são bons e também seguem a lógica mais casual, distinguindo o jogo de Sea of Thieves e World of Warships, por exemplo.
Basta mirar e atirar. Os canhões conseguem atingir praticamente todos os lados, em ângulos nada realistas com o posicionamento do navio, mas isso deixa o combate mais fluído e dinâmico. É possível escolher classes para os navios também, variando entre tanques, especialistas em dano e, por fim, suporte - é possível curar aliados ao atirar neles nessa modalidade.
Até existe certa estratégia no jogo, com alguns pontos fracos dos oponentes sendo realçados por indicativos visuais, além de existir alguns efeitos de dano contínuo e redução de mobilidade do inimigo se atingir as velas. Infelizmente, os efeitos visuais de destruição são bem fracos, além dos navios afundarem com uma rapidez enorme.
Desde o começo da campanha de marketing da fase reformulada do jogo, a desenvolvedora foi honesta e revelou que o jogo teria foco somente em combate naval. Infelizmente, não é possível lutar em terra firme, duelar com espadas e pistolas, explorar tumbas e participar de caças ao tesouro em masmorras realmente complexas - até tem “caças ao tesouro” aqui, mas é bem básico. As mecânicas de coleta acabam se tornando uma bizarrice a parte por conta da limitação do personagem em terra firme.
O ideal seria explorarmos as diversas ilhas que o mapa dispões e coletar os recursos manualmente, mas, em vez disso, é preciso fazer uma navegação próxima à costa onde o recurso surge e iniciar um minigame de precisão enquanto o navio balança e coleta minérios, alimentos, madeira, entre outros. É esquisito, sim, e também engraçado. Infelizmente, o mesmo ocorre ao “abordar” um navio inimigo já enfraquecido. Para ganhar mais loot, é possível invadir os navios e resgatar recompensas, mas isso tudo é feito através de uma cinemática de míseros segundos que também atrapalha bastante quando você empreende confrontos com dois ou mais inimigos.
Aparentemente, 11 anos de desenvolvimento não deram conta de realizar um jogo tão completo assim - afinal, “nunca” tivemos um jogo que trazia tudo isso e mais um pouco, não é?
É óbvio que ser um pirata é divertido e mais divertido ainda é contar com diversos navios muito customizáveis, além de ouvir a cantoria dos marujos. O combate funciona e a navegação é boa. Infelizmente, alguém achou que seria uma boa ideia colocar um limitador de “stamina” em um navio para atingir a velocidade máxima de navegação - superior a 10 nós. Logo, o seu navio vai precisar sempre de alguns segundos para descansar e voltar a navegar mais rápido - isso se você não decidir usar um boost de stamina disponibilizado através dos alimentos (os marujos “trabalham” intensamente para as velas permanecerem baixas).
O limitador de velocidade também se torna um empecilho já que muito comumente, o jogador terá que lidar com a direção do vento. É uma mecânica bem-vinda, mas que se torna uma chatice por conta deste limitador. Por si, o jogo não é difícil, trazendo um nível de desafio bastante justo e condizente com o nível de infâmia que foi conquistado. Alguns inimigos especiais de facções rivais trazem maior dinamismo, além de ser possível sentir uma certa urgência quando a notoriedade do seu navio está alta em mares dominados por megacorporações. Fortes tempestades também podem acontecer em mar aberto sendo que algumas delas são capazes até mesmo de destruir o navio mais simples do jogador.
Aliás, um dos modos de jogo mais rápidos para conquistar recursos envolve justamente a mecânica de notoriedade. É possível pilhar alguns fortes - claro, à distância. Nisso, um sistema de recompensas é aberto, trazendo mais itens a cada onda de inimigos que o jogador consegue sobreviver. Em geral, são cinco ondas até concluir a batalha. Chegando próximo do endgame do jogo, isso se torna consideravelmente mais difícil, encorajando o jogador a formar grupos cooperativos para ter uma pilhagem melhor sucedida.
Fora isso, também existem eventos de mundo trazendo algum grande pirata - totalmente fictício, para uma batalha épica, além de uma criatura marinha desafiadora - é prometido que mais monstros devem chegar nas próximas temporadas. Infelizmente, não é possível fazer um grupo maior que uma frota de três jogadores, além do progresso estar atrelado com todos fazendo a mesma missão. Claro, a ajuda em eventos de pilhagem e inimigos mais fortes também é recompensada com o loot - e essa busca por recursos para melhorias é o que define todo o loop do jogo, incluindo no seu endgame.
A diferença é que no endgame, o jogador poderá conquistar fortes que oferecem mais recursos para aprimorar mais elementos do jogo de modo automático. Mas o loop principal permanece o mesmo.
O rei pirata está nu
Por conta do desenvolvimento conturbado e da produção do jogo ter sido dividida em uma porção enorme de estúdios da Ubisoft quando a situação complicou para o escritório de Singapura, diversos elementos desses conflitos internos são bem perceptíveis. A começar, o jogo não possui em si uma campanha interessante, até mesmo os diálogos são ruins e a dublagem, sempre medíocre. Não ajuda também o fato da apresentação de diversos NPCs ser rudimentar, com animações faciais extremamente datadas e problemas severos de sincronia labial.
Logo, essa falta de personalidade e efervescência criativa é sentida até mesmo pelo mais desentendido dos jogadores. A movimentação do personagem em terra firme é robótica, o já criticado criador de personagem não faz muito sentido para diversos itens de caracterização - isso é resolvido no Alfaiate que mostra o modelo completo do corpo do seu personagem, e todos os territórios ou ilhas que são possíveis de explorar a pé são totalmente desertas, com recursos espalhados em pouca quantidade, além de contar com dois NPCs existindo apenas para cumprir objetivos em missões genéricas.
Não é possível nadar e os efeitos visuais (e sonoros) das ondas quebrando nas praias são abismais de tão precários. A exploração não é incentivada por conta das ilhas não oferecerem muito conteúdo e recompensa para serem exploradas a pé e, ainda por cima, contam com diversas barreiras de paredes invisíveis. Em alto mar, também com os efeitos de iluminação global em ray tracing, o jogo consegue se provar bonito, além das skins dos navios serem bastante diversificadas e interessantes, mas em geral, graficamente, o jogo falha em impressionar.
A performance nos PCs também é ok, sendo uma boa ideia usar os escalonadores DLSS e FSR se possível. Durante minha jogatina com um amigo meu, tivemos que lidar também com alguns bugs bastante complicados. Um deles simplesmente travou todo o progresso conjunto de nós dois, sendo necessário sair do servidor e reconectar depois. Há bugs de interface que podem complicar o recurso da viagem rápida caso a ilha contenha também um indicativo de missão, com os ícones se sobrepondo e inutilizando o recurso de viagem rápida - que só é realizada com um módico custo de moedas correntes do jogo.
Outro bug irritante que nos afetou envolvia um aviso incessante que a nossa “marca da morte” havia sido removida, sendo que nunca tínhamos recebido a marca antes, além do aviso demorar diversos minutos para sumir da tela. É claro, obviamente tudo isso será corrigido em patches futuros, mas é complicado lidar com bugs tão marginais que tenham passado para o lançamento final de um jogo produzido por mais de uma década.
Por fim, para não dizer que não existem lampejos criativos, o jogo possui uma mecânica interessante de rotas mercantis. Nelas, é possível encontrar navios mercantes que podem ter diversos dos recursos necessários para aprimorar seus equipamentos. E caso o jogador ataque muitas vezes a mesma rota, logo o trajeto fica perigoso pela escolta de navios poderosos protegendo a carga.
Também é justo afirmar que o posicionamento das câmeras de jogabilidade são bem legais. É possível manejar seu barco em primeira pessoa (esse PV permite ver o mascote animal escolhido como companhia), ter uma ampla visão do navio inteiro e também navegar através da gávea presa ao mastro. Aliás, sempre que usamos a luneta para identificar inimigos e também saber quais recursos cada barco contém, a visão vai automaticamente para a gávea. É imersivo e funcional.
Bandeira Preta
Em suma, Skull and Bones é um bom jogo como serviço. Assim como todos os jogos do nicho, deve receber aprimoramentos ao longo dos anos, assim como aconteceu com Sea of Thieves. No estado atual, ele oferece um bom conteúdo e diverte pela natureza arcade do combate.
A temática da pirataria é extremamente rica então mais opções de atividades, navios e eventos devem acontecer no futuro tornando o jogo mais único e especial, afinal há sim espaço para um jogo como este.
Sendo honesto, tirando os bugs e problemas na apresentação, Skull and Bones é um jogo divertido que com certeza seria mais celebrado se não fosse um certo detalhe: Asassin’s Creed IV: Black Flag, lançado há onze anos, consegue entregar uma experiência muito melhor, mais robusta e completa em praticamente todos os níveis. Não fosse esse detalhe gritante, estaríamos diante de um ótimo jogo de piratas, mas não é o caso.
É importante que a indústria comece a refletir diante das ofertas de produtos assim – principalmente após o CEO da Ubisoft marcar que esse título se trata de uma produção “AAAA”. Afinal, não se trata de um jogo barato e, infelizmente, no lançamento, não consegue justificar o investimento financeiro e, mais importante ainda, de tempo de vida.
Agradecemos às cópias gentilmente cedidas pela Ubisoft para a realização desta análise.
Review | Helldivers 2 traz uma excelente experiência com combates caóticos
"Helldivers 2" emerge no cenário dos jogos como uma nova tentativa da Arrowhead, com distribuição da Sony, de revigorar ou talvez desafiar o gênero de jogos como serviço. Disponível para PS5 e PC, este título é particularmente intrigante para aqueles que apreciam a mistura de sátira política e ficção científica, reminiscente das obras de Robert A. Heinlein e dos filmes de Paul Verhoeven, como "Tropas Estelares".
A narrativa do jogo imerge os jogadores em um contexto onde a ironia política se entrelaça com a ação militar, incentivando-os a se alistarem para defender a democracia através do extermínio de insetos alienígenas. Esta premissa não só serve como um pano de fundo cativante para a ação, mas também como uma crítica mordaz aos extremos a que a sociedade pode chegar em nome de ideais muitas vezes distorcidos.
O enredo se desenvolve um século após os eventos do primeiro "Helldivers", revelando que a humanidade descobriu uma substância valiosa, conhecida como E-710, nos corpos desses insetos, adicionando uma camada de motivação econômica ao conflito bélico. Além dos insetos, os jogadores enfrentam os Automatos, uma nova ameaça composta por andróides hostis que prometem elevar o desafio e a intensidade das batalhas.
"Helldivers 2" mantém o humor ácido característico de "Tropas Estelares", equilibrando-o com cenas de violência e gore, típicas de um jogo de ação intenso. Esta abordagem não só honra a inspiração do jogo, mas também oferece uma experiência única que pode se destacar em um mercado saturado de jogos focados unicamente em mecânicas repetitivas e monetização agressiva.
Entre no esforço de guerra!
"Helldivers 2" introduz uma série de inovações na jogabilidade que não apenas diferenciam o título de seu predecessor, mas também trazem novas dinâmicas ao gênero. A transição de uma perspectiva isométrica para um formato de tiro em terceira pessoa tradicional é uma das mudanças mais notáveis. Apesar dessa alteração significativa, o jogo mantém sua ênfase na estratégia, exigindo dos jogadores um planejamento cuidadoso antes e durante as missões para sobreviver aos desafios propostos.
A personalização da nave, com opções de nomes curiosos como “Fundador da Luz Estelar” ou “Força da Ira”, adiciona um toque de humor e identidade ao jogo. A escolha entre jogar solo ou em equipe é crucial, pois a inteligência artificial avançada dos inimigos, que utilizam táticas de flanqueamento, faz com que a colaboração em equipe seja quase indispensável para enfrentar as hordas de adversários.
Um elemento particularmente interessante em "Helldivers 2" são os estratagemas. Esses códigos permitem convocar uma variedade de suportes durante as partidas, desde ataques aéreos devastadores até o fornecimento de armas especiais. Esses recursos são fundamentais para enfrentar inimigos específicos que requerem tipos de armas particulares, como os blindados que são vulneráveis a armamentos antitanques.
A experiência dentro das partidas é descrita como caótica, no melhor sentido da palavra, com um arsenal diversificado e um design de som que confere realismo às armas e impacto às explosões. A mecânica de ataques aéreos destaca-se pela capacidade de causar destruição massiva, exigindo dos jogadores atenção constante para não serem pegos no fogo cruzado.
A morte de um helldiver não resulta em um simples respawn. Em vez disso, um novo soldado é convocado para o lugar do caído através de um estratagema de reforços, adicionando uma camada de tensão e estratégia, visto que esses reforços possuem um tempo de recarga e são limitados. Isso introduz um elemento de risco calculado, especialmente em missões mais desafiadoras onde os recursos de reforços podem se esgotar.
Com missões cronometradas variando de 10 a 40 minutos, "Helldivers 2" promete manter os jogadores engajados e constantemente desafiados, reforçando a necessidade de estratégia, cooperação e uso eficaz dos recursos disponíveis para alcançar o sucesso nas missões.
Combate Avançado
"Helldivers 2" apresenta uma escala de dificuldade robusta, com nove níveis diferentes, incentivando os jogadores a desafiarem seus limites em troca de recompensas mais valiosas. As medalhas conquistadas ao final de cada partida servem como moeda de troca por novos equipamentos, como armaduras, armas de fogo e granadas, adicionando uma camada de estratégia na escolha do nível de dificuldade para maximizar as recompensas.
A diversidade de planetas e ambientes é um dos destaques visuais do jogo, oferecendo não apenas uma variedade estética, mas também influenciando diretamente a jogabilidade. O terreno de cada planeta, como áreas nevadas que reduzem a velocidade de movimento, exige que os jogadores adaptem suas estratégias às condições específicas de cada missão.
A cooperação é um pilar central quando se trata do modo multiplayer. O fogo amigo ativo aumenta a necessidade de comunicação e coordenação entre os jogadores para evitar acidentes indesejados, especialmente durante momentos intensos de combate ou ao solicitar suporte aéreo. Os objetivos variados das missões, que vão desde a destruição de objetivos específicos até a eliminação de inimigos poderosos, reforçam a importância do trabalho em equipe e da estratégia coletiva para o sucesso das operações.
No entanto, "Helldivers 2" não se desvia completamente das tendências atuais dos G.A.A.S (Games as a Service), incorporando microtransações que permitem a compra de itens com dinheiro real. Embora as armaduras adquiríveis ofereçam vantagens, o jogo é projetado de modo que essas compras sejam opcionais, permitindo aos jogadores que preferem não investir dinheiro adicional a possibilidade de desfrutar do jogo sem desvantagens significativas.
O segredo é a variedade
"Helldivers 2" marca sua presença no universo dos jogos como um título que se destaca pela sua rica variedade e profundidade logo em seu lançamento. O jogo apresenta uma ampla gama de planetas, cada um com características visuais únicas, proporcionando aos jogadores cenários diversificados para explorar. A seleção de armamento disponível é notavelmente vasta, com armas que oferecem diferentes tipos de munição, permitindo aos jogadores experimentar e encontrar o equipamento que melhor se adapta ao seu estilo de jogo. Além disso, a variedade de estratagemas disponíveis para compra e teste adiciona uma camada adicional de estratégia e personalização às partidas.
A diversidade dos inimigos é um dos pontos fortes de "Helldivers 2", oferecendo um desafio constante e dinâmico aos jogadores. Desde os terminids menores, que podem ser facilmente abatidos, até os mais sofisticados, como os que se camuflam ou os que possuem carapaças blindadas, exigindo o uso de munição perfurante ou explosivos. Essa variedade não só mantém o combate interessante e desafiador, mas também promove uma curva de aprendizado contínua, à medida que os jogadores desenvolvem estratégias eficazes para enfrentar cada tipo de inimigo.
Apesar de alguns problemas iniciais de servidor na versão para PC, que levaram a desconexões e frustrações entre os jogadores, atualizações subsequentes parecem ter resolvido essas questões, proporcionando uma experiência de jogo suave e otimizada. A qualidade da otimização no PC é digna de nota, permitindo que o jogo rode de maneira fluida e sem contratempos.
"Helldivers 2" se posiciona como um exemplo positivo em meio a um cenário onde muitos jogos como serviço falham em entregar uma experiência satisfatória. Com seus cenários envolventes, design de som imersivo e combate intenso, o jogo oferece uma experiência de batalhas galácticas que captura a essência de "Tropas Estelares", entregando horas de entretenimento genuíno e envolvente para os jogadores.
Review | Banishers: Ghosts of New Eden apresenta desafios para Don't Nod superar
Poucos devem lembrar, mas o estúdio francês Don’t Nod estreou justamente no gênero de ação em 2013 com o jogo de ação Remember Me. Ironicamente, pouquíssimas pessoas se lembram do título que foi um fracasso expressivo de vendas.
Em questão de meses após seu primeiro jogo, o estúdio já estava prestes a ir à falência. Graças a um milagre de gestão e um bom pitch à Square Enix, Dontnod conseguiu sobreviver por mais tempo até lançar seu verdadeiro primeiro sucesso em 2015 com Life is Strange.
Desde então, demorou para o estúdio tentar sair dos moldes dos jogos narrativos de aventura até tentar um novo projeto ousado no RPG com Vampyr em 2018. Agora em 2023, o estúdio ainda independente lança seu jogo mais ambicioso até então com Banishers: Ghosts of the New Eden.
Entre o véu
Como é de se esperar do maior ponto forte da Don’t Nod, a narrativa de Banishers é um de seus pontos fortes. A aventura acompanha os banidores profissionais Antea Duarte e Red Mac Raith. Eles chegam ao Novo Mundo pela primeira vez em suas vidas para atender o pedido de um antigo amigo chamado Charles.
Uma maldição bizarra e cruel se instalou em New Eden, tornando a vida de todos que lá moram totalmente miserável e sombria. Entretanto, quando a dupla chega, rapidamente descobrem que a assombração que deve ser banida é muito perigosa. Em seu primeiro confronto, Antea acaba morrendo com Red escapando por um triz e muita sorte.
Ao recobrar a consciência, Red está em outra parte da costa da Nova Inglaterra (os EUA antes da independência). Ele descobre que Antea ainda está presa ao mundo material. Conseguindo se comunicar com a esposa morta, Red também descobre novos poderes e formas de lidar com espíritos e maldições, decidindo então retornar até New Eden e se livrar de uma vez do Espectro maldito que matou sua amada.
Entretanto, no meio dessa longa jornada, Antea e Red se deparam com diversas histórias que também estão conectadas com a maldição de New Eden, devendo escolher o destino de diferentes personagens para construir um futuro ambíguo para a própria Antea.
Logo, uma das maiores mecânicas do jogo está totalmente ligada ao desfecho da narrativa, com a história podendo variar em um final bom ou ruim a depender das escolhas dos protagonistas. As escolhas sempre se apresentam ao final de algumas missões principais e das missões secundárias.
Surpreendentemente, o mapa aberto de Banishers é bem grande, distribuindo diversas atividades, além de missões, ao longo dos territórios que visitamos. Inspirados pelo trabalho da CD Projekt Red com The Witcher 3, a Don’t Nod capricha nas histórias secundárias instigando o jogador a completá-las para descobrir o desfecho de cada história.
É evidente que nem todas são dignas de um Oscar, mas são mais imaginativas que a maioria de outros jogos, traçando mistérios para os banidores desvendarem e lidarem com as consequências disto. É mesmo muito próximo da experiência dos contratos de bruxo de The Witcher.
Pode não ser original, mas é eficiente. As recompensas também são boas, ajudando a subir de nível, além da conquista de bons itens e pontos de habilidades para Antea. Ironicamente, a parte mais fraca do jogo está em seus protagonistas.
Vendido como uma história trágica de amor, com Red ficando obcecado em trazer Antea de voltar à vida, a realidade é bem diferente disto. Red não fica muito abalado com a morte da esposa e trata o fantasma de Antea com absoluta normalidade. Não ajuda também o fato deles não terem nenhuma química como casal, nunca interagindo com muita leveza e ternura.
Isso se dá mais pelo fato de Antea ser mais uma dessas “personagens femininas fortes e empoderadas”. Mais uma vez os roteiristas erram a mão em tornar Antea bastante masculinizada na forma de falar e agir, sempre se provando como uma líder capaz e forte, além de sempre mandar em Red que obedece resoluto.
Ao enfiar mais uma vez a bendita da “mensagem”, a Don’t Nod perde a chance de criar protagonistas mais interessantes e originais. Uma pena, já que se trata de um desperdício notável, pois a mitologia construída sobre os banidores e as pragas sobrenaturais que eles caçam é bem elaborada no material de leitura complementar espalhado ao longo da campanha. A história só não se torna monótona por causa das surpresas que revela justamente sobre o ofício bizarro dos protagonistas.
Fórmula do sucesso
Mais uma vez a Focus Entertainment ajuda a financiar um projeto que descaradamente se vale do mesmo design de jogo de God of War. Dessa vez, a inspiração é tão forte que chega a ser a base de 90% do jogo. Pouco habituada ao gênero de ação, a Don’t Nod resolveu seguir o caminho muito bem pavimentado pela Santa Monica Studio.
Assim como God of War, temos um mundo aberto expansivo que é todo conectado em corredores espaçosos que oferecem um sentimento de linearidade, apesar do jogador sem livre para explorar o mapa à vontade.
Diversos recursos ficam disponíveis para coleta e são necessários para aprimorar os itens, melhorando seus atributos e nível de raridade (exatamente igual a God of War e aos Assassins Creed mais recentes). Outras armas melhores também podem ser encontradas pelo mapa que possui também diversas passagens seladas que poderão ser abertas posteriormente com novas habilidades de Antea e Red, inserindo também o elemento metroidvania das novas aventuras de Kratos.
O combate se dá através dos botões R1 e R2 alternando entre golpes leves e pesados. Algumas horas adentro, o jogador também ganha um mosquete que ajuda, além de função óbvia de obliterar inimigos, a resolver alguns quebra cabeças de ambiente.
Bebericando da onda inaugurada por The Médium e aprimorada em Lords of the Fallen, Banishers também conta com mudanças espontâneas de perspectiva. Ao pressionar Triângulo ou Y, o jogador alterna o controle entre Red, no mundo dos vivos, e Antea, que observa e interage com o ambiente através do véu dos mortos. Aqui, as cores são mais vibrantes, além de alguns segredos do mapa se revelarem.
A habilidade de trocar de personagem instantaneamente é encorajada também no combate, com Red e Antea aplicando mais dano a determinados tipos de inimigos que se alternam entre espectros e possessões. Infelizmente a variedade de inimigos é baixa e ao longo das 17 horas de campanha, os episódios de Combate se tornam maçantes.
Para apimentar um pouco o combate, Antea ganha habilidades únicas, além de Red poder usar um poder especial de banimento que proporciona alto dano aos inimigos, se tornando bem interessante de usar contra chefes de fase (essas batalhas são sim bem elaboradas).
Um método de viagem rápida também existe e até mesmo isso é inspirado em outros jogos. No caso, Elden Ring e outros soulslike. As fogueiras que Red acende pelo caminho são os pontos de viagem rápida, além de permitir descansar para reestocar poções (e trazer inimigos de volta ao mapa) e aprimorar itens e habilidades. Não é muito original, mas funciona.
Onde os desenvolvedores usaram mais a criatividade está justamente nas escolhas de compras de novas habilidades, com Red e Antea podendo escolher uma opção em duas em cada árvore que é disponibilizada.
Além disso, também existem os rituais que permitem evocar memórias, espíritos, flagelos (inimigos monstruosos) e transitar também no Vazio (local onde os espíritos banidos são jogados).
Em termos técnicos, Banishers não está tão polido quanto deveria. Isso não se trata da performance do jogo, que é bastante leve com gráficos signos da geração passada (o que é um mistério esse título ser exclusivo da nova geração), mas sim de bugs de progresso. Ao longo da minha jogatina, fiquei preso por diversas vezes em locais do mapa por problemas de programação, com um evento não acontecendo e travando o progresso.
Somente após minutos e alguns reloads que a falha se corrige. O mesmo pode ser dito para bugs de exploração também, com falta de clareza de objetivos na bússola do mapa para orientar o jogador. Fora isso, existem muitas paredes invisíveis dentro dos corredores propostos pelo jogo, tornando a experiência de mundo “aberto” muitas vezes limitada.
Enquanto em texturas e iluminação o jogo mostra certo capricho, temos diversos extremos na qualidade das animações faciais e sincronia labial não só dos protagonistas mas principalmente dos personagens secundários que interagimos ao longo do jogo, afetando bastante na imersão de uma proposta de narrativas fortes como Banishers apresenta. Infelizmente isso também se estende para a dublagem, até mesmo dos protagonistas no caso de Antea que conta sempre com uma voz monótona e profundamente sem graça de sua atriz.
Para os jogadores de PC, felizmente o título é bem funcional, além de contar com o auxílio sempre bem vindo do DLSS 3 que, a depender da placa, dispara os fps para além de 120 quadros até mesmo em 4K.
Fantasmas no paraíso
Banishers: Ghosts of the New Eden é divertido e interessante o suficiente para valer a sua jornada (mesmo que os protagonistas não ajudem muito). A mitologia criada pelo estúdio é bem rica e interessante, além das histórias secundárias trazerem reviravoltas ousadas e sombrias.
Com muito conteúdo inspirado por God of War, é uma boa decisão, pois deixa o game design bastante funcional, além da habilidade de trocar de protagonista instantaneamente por ser divertida, com um uso criativo. Oferecendo muitas horas de conteúdo, principalmente pelo fator replay que é encorajado pelos múltiplos finais, Banishers é uma boa experiência, mas é preciso ter expectativas realistas de que se trata de um título que ainda precisava de mais refinamento.
Torço para que a próxima aventura da Don’t Nod nesse gênero desafiador de jogos de ação consiga um orçamento mais generoso para qualquer amarra criativa ser menos evidente. Apostar no seguro é uma boa ideia para retorno comercial garantido, mas às vezes, a ousadia também consegue aliar um marco histórico com sucesso comercial.
Crítica | Zona de Interesse é um dos filmes mais chocantes do ano
O que é preciso para chamar a atenção do público ao abordar um tema extremamente pesado e já mostrado e debatido em diversas produções audiovisuais? O tema em questão, no caso, refere-se à Segunda Guerra Mundial, e é evidente que ainda há muito a ser mostrado sobre ele. Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer (Sob a Pele), consegue, de forma simples e brutal, apresentar esse cenário de morte e crueldade que ocorreu nos anos 1940 por um outro ângulo.
Em vez de mostrar execuções, destruição e pilhas de corpos, como puderam ser vistos no impactante A Lista de Schindler (1993) ou no desumano O Pianista (2002), The Zone of Interest (nome original) segue por outro caminho e apresenta a crueldade que foi o holocausto sem mostrar um pingo de sangue ou alguém sendo assassinado – não do modo como vimos nas produções acima listadas. E mesmo assim, sem ser explícito, é bastante chocante.
Uma família vive em uma casa linda, o sonho de qualquer família, com um grande jardim em que as flores florescem belamente e um ambiente em que a família pode se reunir para ler um livro ou até mesmo para as crianças brincarem à luz do dia. Há um porém nisso tudo: o domicílio fica ao lado, com o muro grudado, ao campo de concentração de Auschwitz.
Cerca de um milhão de pessoas morreram nos campos de concentração de Auschwitz e as várias barbaridades cometidas no campo de extermínio já foram mostradas em diversas produções, mas poucas alcançaram o impacto visceral de Zona de Interesse.
O roteiro da dupla Martin Amis e Jonathan Glazer desvenda o cotidiano de um oficial nazista em sua residência com a família. A relação com o regime nazista se manifesta em conversas "comuns" sobre o destino dos prisioneiros, o que por si só é um soco no estômago. O oficial fala sobre atrocidades com a mesma naturalidade com que provaria um prato de sopa.
Por não mostrar explicitamente o que acontece no campo de concentração, o filme assume uma abordagem original. A matança desenfreada que ocorre ali é sugerida por elementos sensoriais, como sons de tiros ao longo do dia, chamas irrompendo pela noite e gritos incessantes. Essa estratégia é particularmente assustadora, pois incita a imaginação do espectador e o confronta com o horror de forma profunda e impactante. Ao invés de mostrar a violência de forma direta, o filme trabalha com a experiência sensorial do público, criando um efeito ainda mais perturbador.
Hedwig Höss (Sandra Hüller), esposa do oficial Rudolf Höss (Christian Friedel), demonstra conivência com tudo o que acontece ao lado de seu lar. Uma passagem no filme chama a atenção: Hedwig fica revoltada ao saber que o marido será transferido para outro local, mesmo ele se destacando em sua sádica missão. Essa cena serve como um poderoso símbolo da conivência de grande parte da população alemã com os horrores que se desenrolavam nos campos de concentração, impondo sofrimento a judeus, poloneses e outras etnias.
Em uma primeira análise, a história pode parecer vazia em sua essência, sem aprofundar em debates ou ir além do prometido. No entanto, essa não era a intenção do roteiro. A ideia era questionar a imparcialidade da população frente aos assassinatos na Alemanha nazista, e o longa cumpre esse objetivo de maneira acertada.
Obras sobre a Segunda Guerra Mundial existem aos montes, e a maioria impressiona pela qualidade narrativa e pela trama chocante. Zona de Interesse é parecido com O Filho de Saul (2015) ao deixar implícito o horror da Alemanha Nazista no período retratado. O diferencial do longa dirigido por Glazer reside na abordagem original do tema, sob um ponto de vista singular e de forma crua e realista. Sem dúvida, um dos grandes filmes do ano.
Crítica | Neuromancer - O livro que fundou o Cyberpunk (Repost)
Em 1984, é publicado Neuromancer, a obra seminal do William Gibson, um marco na literatura de ficção cientifica. Este romance criou todo um novo subgênero, o cyberpunk, um dos mais interessantes de toda ficção cientifica, possivelmente meu favorito, onde se discute a obsolescência do ser humano, os impactos que uma tecnologia descontrolada pode vir ter em toda a sociedade, entre outros temas.
No inicio do livro somos apresentados ao protagonista, Henry Dorsett Case, um cowboy. Um cowboy é basicamente um hacker, com a habilidade de conectar seu cérebro diretamente ao ciberespaço, mais conhecido como a Matrix. Após cometer o erro de roubar de seu patrão, Case é contaminado com microtoxinas, que danificam seu sistema neural, o impossibilitando de exercer sua profissão.
Sem esperança de conseguir um novo emprego e no topo da lista negra de seu antigo chefe, Case acaba ficando suicida e paranoico, até que ele conhece uma ciborgue chamada Molly Millions. Molly é uma “samurai de rua”, basicamente uma super guarda costas. Ela tem garras metálicas nas unhas e tem óculos espelhados embutidos nos olhos, que servem como um visor de computador que passa informações para ela, detalhes bem interessantes.
Molly o apresenta a seu chefe, Armitage, que lhe oferece uma cura, caso Case trabalhe para ele, sem escolha, Case aceita forçosamente a proposta sem saber estava trabalhando a favor de uma conspiração concebida por uma figura misteriosa, que mais tarde descobrimos ser a inteligência artificial, Wintermute.
Em termos de narrativa, Neuromancer é, de certa forma, um livro difícil. Além de utilizar jargões tecnológicos e gírias a quase todo o momento, o narrador não nos passa muitas informações. Tudo o que sabemos é praticamente o que Case sabe, o que não é muita coisa. Assim o leitor é forçado a, não somente a prestar bastante atenção, mas também a pensar e ir montando as peças com o pouco de informação que lhe são apresentadas.
Os exemplos mais claros de um quebra cabeça a ser montado nesse livro são as passagens onde o Case flipa (Se conecta) ao cérebro da Molly, nessas passagens ele fica um certo tempo vendo as coisas pelos olhos da mulher, saindo para conferir outras coisas, quando ela volta, ele já perdeu bastante do que a Molly viu. Caímos, literalmente, de paraquedas no meio da ação ou no meio de diálogos, ficando tão perdidos quanto o nosso protagonista.
Uma coisa interessante no romance são os são os backstorys dos personagens que nos dão uma visão melhor acerca do universo em si ao mesmo tempo que ajudam a movimentar a trama, connsequentemente também deixando-a mais interessante, um destaque especial para os personagens Armitage e Molly.
Algumas pessoas podem se sentir incomodadas também com a grande complexidade do romance, na parte “visual”, há uma dificuldade em visualizar o que o autor está descrevendo, por exemplo, o ciberespaço. Se eu já não o tivesse visto em outras mídias visuais, seria quase impossível visualizá-lo com as vagas descrições do Gibson.
Neuromancer pode até ser considerado um livro difícil, claramente não para todo mundo, um pouco datado e até mesmo maçante em algumas partes, mas tem sua importância, pois este romance elevou a ficção cientifica a outro patamar, criando um novo subgênero e transcendeu o seu tempo.
Recomendado a todos os fãs de ficção cientifica, agora para aqueles que querem começar, talvez seja melhor começar por outros autores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, ou um bom e velho Julio Verne porque esse aqui pode ser um pouco mais complicado e até mesmo confuso para alguns leitores, é melhor certificar-se que histórias desse tipo são o seu negócio.
Algumas reflexões
A ficção cientifica em geral, sempre é recheada de reflexões que são induzidas no leitor. Com Neuromancer não é diferente. Gostaria de comentar um pouco sobre as reflexões as quais o romance me induziu, que é o que me faz considerá-lo um romance fantástico. Considere essa uma “seção extra” da resenha.
Com os ciborgues, o livro levanta a questão: Qual o limite do orgânico pro cibernético para que ainda possamos nos chamar de seres humanos? Uma questão relevante, visto os avanços tecnológicos que temos feito, talvez logo teremos que nos perguntar isso, dessa vez pra valer.
As inteligências artificiais, provavelmente meu tema favorito de toda a ficção cientifica, nos fazem refletir também. Eles pensam, logo existem. Se eles existem e tem consciência disso, eles podem se afirmar seres vivos? Poderia um ser vivo ser feito de códigos de computador altamente complexos e só? Já que é assim qual a nossa diferença em relação a eles? Como decidir vida agora? Essa e muitas outras questões são levantadas pelas inteligências artificiais do romance.
Outra coisa que me deixou refletindo foi a questão do flatline, um constructo que é uma pessoa, já morta, que teve seu perfil clonado e transformado em dados, qual a ética nisso? Uma discussão meio complicada. Agora pensando nisso me lembro de um episódio da série Black Mirror que apresenta essa mesma ideia e do site eterni.me. O site é similar ao que foi apresentado naquela série, uma pessoa coloca um programa para simular os perfis das redes sociais dos falecidos para “matar a saudade”. Além da nova onda de Hollywood em reviver atores falecidos por meio de computação gráfica e os hologramas de artistas que já se foram que apresentam em shows. Então me pergunto se o Gibson ficaria surpreso em saber que até isso ele previu.
Semelhanças com outras obras populares
Segunda “seção extra” da resenha, agora falando de algumas semelhanças com outros trabalhos, principalmente Matrix, não podia ficar sem comentar um pouco sobre. Eu sei que muita gente gosta muito de Matrix, por uma boa razão, o filme apresentava boas ideias, colocando filosofia de um modo fácil de ser assimilada. O maior pedaço está em Neuromancer.
Veja bem, não estou criticando ou condenando os Wachowski nem nada disso, creio que há alguma verdade nas palavras do artista Salvador Dali: “Aqueles que não imitam não produzem nada”. Mas ainda fico surpreso ao ver Matrix ser aclamado até os dias de hoje, enfim...
Matrix e Neuromancer possuem diversos elementos em comum, começando pela Matrix, apesar de a Matrix em em questão ser bem diferente da apresentada no filme, estando mais próximo do cyberespaço apresentada no mangá/anime Ghost in the Shell, outra obra inspirada por Neuromancer, que por sua vez inspirou Matrix também.
Assim como em Matrix, Neuromancer possui uma Zion. São diferentes, mas o conceito se assemelha um pouco. A Zion de Matrix é para onde as pessoas que são acordadas da falsa realidade virtual vão. As pessoas da Zion de Neuromancer são uma comunidade rastafári que decidiu fugir da perversidade da distopia dominante da Babilônia (A terra) e construíram uma estação espacial para isso.
A inteligência artificial que está querendo se elevar a uma coisa maior e se tornar livre também pode ser encontrada em ambas as obras. Embora eu acredite que o meio que Wintermute usa para alcançar seu objetivo se aproxime mais do que o mestre das marionetes do Ghost in the Shell utiliza.
Crítica | O Fugitivo (1993) - O brilho inesquecível de um clássico
Os anos 1990 foram uma verdadeira benção para os filmes de ação. Dentre tantos longas mais espertos na execução da história, além do foco do protagonista estar mais alinhado ao homem comum, abandonando os estereótipos do macho brucutu surreal dos anos 1980. Em uma boa seleção de filmes assim, é relativamente fácil apontar um dos donos da coroa: O Fugitivo, clássico de 1993 com Harrison Ford e Tommy Lee Jones.
O sucesso de O Fugitivo foi tamanho que conseguiu uma boa recepção universal tanto na crítica como na bilheteria. Algo ainda mais surpreendente pela competência em adaptar o elogiado e extenso seriado homônimo de 1963. Mas o que faz O Fugitivo ser essa grande obra-prima do gênero não é somente pelos elogios, mas pelo reconhecimento da Academia ao ser indicado para sete Oscar. Pela raridade da situação, O Fugitivo se torna um dos maiores filmes de ação da História do Cinema. E também com muito mérito como veremos a seguir.
Um Destino Miserável
Apesar de ser inspirado no clássico seriado que conta a mesma história, é fácil traçar um paralelo de O Fugitivo com Os Miseráveis de Victor Hugo. Ambos contam uma narrativa de perseguição entre um foragido inocente e um policial obstinado em recapturar o dito criminoso. Obviamente, tudo é diluído e menos ambicioso no filme, mas o cerne é o mesmo.
Jeb Stuart e David Twohy trazem a trágica história do médico Richard Kimble, um cardiologista que é preso injustamente sob a suspeita de ter assassinado sua esposa. Condenado em um julgamento nada esforçado, Kimble é sentenciado à injeção letal e logo é encaminhado para uma nova penitenciária. Nessa transferência, outros presos iniciam uma rebelião causando a morte do motorista do ônibus. Sem controle, o veículo para nos trilhos de uma movimentada linha de trem. Momentos antes do impacto, Kimble consegue se livrar das algemas e fugir para o mato.
Agora novamente livre, o bom doutor precisa correr contra o tempo para provar sua inocência já que o oficial Samuel Gerard e sua equipe iniciam uma das maiores caçadas a um criminoso vista na história dos Estados Unidos.
É inevitável que qualquer um que visite O Fugitivo pela primeira vez pense que o longa seja banal e bastante simples na execução da história, organizando uma narrativa de perseguição como já vimos diversas vezes antes. De fato, isso ocorre até o segundo ato do filme começar. Até lá, Kimble é um enigma como protagonista, mas muito fácil de se compadecer pela performance arrasadora de Harrison Ford que consegue ser contido, aterrorizado e bastante inocente. Aliás, os roteiristas não brincam com a dúvida sobre ele realmente ter assassinado a esposa ou não. Kimble é inocente e pronto. Por sua vez, isso gera uma identificação maior com o personagem, comprando toda a sua exaustiva jornada.
No final do primeiro ato que temos o verdadeiro brilho de O Fugitivo aparecer: a quebra das convenções banais do filme do subgênero. Presumia-se que Kimble não teria lá muitos encontros com seu perseguidor, Gerard, mas isso rapidamente é descartado. Em questão de poucos momentos, já vemos o policial estar no encalço do condenado dando início a muitas perseguições icônicas como a primeira que envolve uma correria intensa entre canais de esgoto até terminar em um ótimo cliffhanger – de modo literal.
Esse primeiro encontro é visceral em sua crueldade e denota o contraste dessas figuras antagônicas em apenas um diálogo. Nele, Kimble afirma que é inocente e Gerard, com frieza, responde que não se importa. Rapidamente conhecemos o cerne dos personagens: um está totalmente sozinho e o outro está disposto a tudo para capturar o homem, mesmo que seja preciso matá-lo.
Essa primeira conexão logo motiva o protagonista a iniciar sua própria investigação para provar sua inocência e conseguir capturar o verdadeiro assassino. É um jogo de gato-e-rato bastante intrincado que os roteiristas criam para manter o dinamismo do filme sem nunca deixar o espectador exausto pelo ritmo das reviravoltas. Como Kimble é um personagem silencioso, ele se mantém levemente superficial, um totem de injustiça e bondade que reage eticamente a cada situação difícil que encontra no caminho.
A investigação nos leva para a cidade de Chicago, contendo a perseguição pelo resto do filme. A decisão é acertada e muito bem justificada para explicar o motivo de Kimble se sujeitar a um enorme risco de ser reconhecido por cidadãos ou por policiais. Enquanto isso, também acompanhamos o ponto de vista de Gerard que consegue conferir mais complexidade para Kimble através dos testemunhos de colegas e amigos do médico. A partir disso, sabemos que ele é muito inteligente e que quase sempre está a dois passos à frente da polícia federal.
Aliás, os roteiristas não cansam de fazer duras críticas à força policial de Chicago como a federal, assim como o sistema judiciário como um todo. Tudo funciona bem, apesar de ser consideravelmente maniqueísta ao retratar diversos policiais como patetas preguiçosos e violentos. Apesar disso, é bastante funcional dentro do filme.
O que surpreende é como o roteiro se torna muito bem amarrado até o ponto de jogar o protagonista em uma conspiração médica sem tamanho. Apesar de se aproximar muito de quebrar a suspensão da descrença dessa história, as reviravoltas do terceiro ato não são nada previsíveis e levam a um pay off espetacular e consideravelmente emocionante. Apesar dos personagens serem rasos em maioria, os mais funcionais conseguem se salvar pelo estereotipo e das motivações bem definidas.
Improvável Conquista
Andrew Davis não é lá muito conhecido nem mesmo pelos maiores fãs de filmes de ação de Hollywood. Até O Fugitivo, tinha dirigido poucas obras de grande impacto e, até mesmo depois do sucesso desse longa, não conseguiu emplacar uma carreira mais notável. Davis simplesmente era um funcionário da indústria que entendia bem como filmar ação. Felizmente, estava na hora e no lugar certo para assumir esse projeto, pois muitos méritos recaem sobre sua competência com o manejo da câmera e da decupagem.
Mas isso necessariamente não significa que Davis comece o longa de um modo muito inteligente. Na verdade, ele pega os piores vícios dos anos 1990 para mostrar a cena do assassinato: uso de preto e branco, aplica filtros negativos na imagem, closes apertadíssimos e um slow motion capenga e desleixado. Isso já deixa uma primeira ideia bastante negativa, dando a impressão de um filme envelhecido e possivelmente brega como muitos dessa década.
Felizmente, isso some assim que o filme realmente começa. Mesmo que não haja lá um enorme capricho em composição, Davis preza por algo que marcou muito o cinema de ação dos anos 1990: o realismo. É justamente nessas sequências que o diretor consegue brilhar ao nos mostrar um trem partindo em direção ao ônibus tombado enquanto Ford se esforça para sair das ferragens, do vidro blindado prestes a partir em um tiroteio contra Kimble ou jogar o personagem em uma enorme catarata artificial. É maravilhoso e sentimos muito bem o impacto disso tudo.
Davis também tem a competente obsessão de estabelecer com cuidado toda a geografia das cenas, seja de ação ou não. O Fugitivo é um dos filmes mais compreensíveis visualmente que eu já tenha visto na vida e isso é um grande mérito. Logo, é difícil ficar perdido mesmo durante complicadas perseguições. Interessante que o diretor sempre inicia grandes sequências de perseguições e as trata realmente pequenas histórias. Elas nunca ficam concentradas muito tempo em um cenário e logo evoluem para algo mais emocionante ou complicado como uma que começa em um prédio e termina em pleno desfile do dia de São Patrício.
Outra boa característica é seu olhar muito inteligente para preservar o silêncio em diversas sequências, principalmente as de investigação de Kimble, na qual seria fácil demais apelar ao pecado do solilóquio falante, com o personagem falando consigo mesmo para explicar o que acontece em tela. É ótimo por não subestimar a inteligência do espectador em momento algum.
Por fim, Davis é particularmente inteligente ao conseguir criar um clímax muito tenso e bastante hitchcockiano ao aproveitar todos os recursos cinematográficos disponíveis para criar suspense em uma perseguição contida entre três indivíduos. O desenho de som colabora, a montagem e até mesmo a fotografia tem grande impacto para o suspense quase insuportável do desenlace da obra. Aliás, a montagem do filme é uma grande vencedora em conseguir ser poética quando necessário como o cruel corte de um beijo para as tentativas desesperadas de Kimble ressuscitar a mulher, além de extremamente competente em dar unidade para o filme.
Ação como deve ser feita
Assistir ao O Fugitivo hoje é bastante deprimente. Obviamente, não porque o filme seja ruim, já que evidentemente ele é ótimo, mas pelo fato do declínio completo que os longas de ação sofreram nos últimos anos. Mesmo com tanta tecnologia disponível, praticamente nenhum lançamento consegue ser tão memorável ou inteligente quanto esse clássico noventista.
Com cortes rápidos exagerados, coreografias poucos inspiradas e set pieces banais, vimos o cinema de ação se afundar em um filme mais genérico que o outro. Para os saudosistas do bom realismo de outrora, dos efeitos práticos e do investimento completo em set pieces memoráveis, não há remédio melhor do que essa inesquecível conquista que foi O Fugitivo, um filme que conseguiu render até mesmo o Oscar.
O Fugitivo (The Fugitive, EUA – 1993)
Direção: Andrew Davis
Roteiro: Jeb Stuart, David Twohy, Roy Huggins
Elenco: Harrison Ford, Tommy Lee Jones, Julianne Moore, Sela Ward, Andreas Katsulas, Tom Wood, Ron Dean
Gênero: Ação
Duração: 130 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=ETPVU0acnrE
Crítica | Ela – O Mais verdadeiro romance virtual
Dentro de um vasto leque de diretores tão promissores trabalhando até hoje e que deixam vários grupos de fãs incansavelmente ansiosos pelo seu próximo projeto, Spike Jonze com certeza deve ser um nome que deixa certas saudades, não emplacando um novo projeto no cinema desde 2013, deixando o questionamento sobre se algum dia voltaremos a vê-lo de volta em uma produção no cinema. Pelo menos até lá teremos seu vanglorioso passado para ser relembrado.
Após anos de uma carreira dirigindo vídeo-clips de bandas como Weezer e da própria Bjork, vários curtas, e tendo um incrível debut no cinema com Quero ser John Malkovich, entre ótimas e subestimadas obras como Adaptação e Onde Vivem os Monstros. Mas o verdadeiro ápice da carreira do jovem diretor só chegaria finalmente em 2013 com o seu maior e melhor filme até hoje: ELA.
Mas por onde pode-se começar a falar do filme em questão? Sobre ser um belo romance moderno? Ser uma bela obra de ficção-científica original em sua premissa e classuda em execução? Ou que tal sobre ser um conto utópico sobre a época do agora em vivemos?! Talvez por aí mesmo.
Com sua trama se passando em uma Los Angeles futurista onde nos deparamos com a vida de Theodore Twombly (Joaquim Phoenix) um tímido e reservado escritor de cartas românticas, que recentemente sofreu com o término de uma relação amorosa com Catherine (Rooney Mara). Com o coração partido, eis que surge um novo e avançado sistema operacional que promete ser uma entidade de inteligência artificial, só que melhor aprimorada ao nível de soar como uma pessoa de verdade e que rapidamente alça o interesse de Theodore. Ao iniciá-lo, ele tem o prazer de conhecer “Samantha”, uma voz feminina perspicaz, sensível e engraçada (Scarlett Johansson), que Theodore acaba se apaixonando.
Não é difícil de rapidamente perceber sobre 9 fato de que ELA é um daqueles raros filmes que usa o seu palco de ficção-cientifica para levantar fortes questões de temas variados. Mas ao contrário de seguir uma linha mais “brusca” sobre a exclusão social como Distrito 9, o poder totalitário em Brazil ou sobre a existência humana como Solaris e 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Jonze busca falar por sutis entrelinhas metafóricas sobre a sociedade viciada e dependente na tecnologia moderna e das relações criadas em redes sociais que se tornam mais verdadeiras do que as ao vivo.
E qual melhor forma de representar isso senão através de uma belíssima sátira romântica? Perfeito. Conseguindo se mostrar bem atual e com certeza vindo a se tornar cada vez mais atemporal nos tempos em que vivemos. Afinal, o que nós humanos temos hoje por nossos celulares, Tablets, Androids, e afins, se não uma espécie de amor viciante. O que se mostra explorado com louvor dentro do que é um genuíno belo romance que se forma entre Theodore e Samantha.
Ao que mostrava um Jonze em seu estado mais inspirado como autor de seus filmes. Onde após anos dirigindo as fantasias modernas autobiográficas de Charlie Kaufman como Quero ser John Malkovich e Adaptação, Jonze agora lidera o seu próprio filme com uma identidade bem sutil de autobiografia (mais sobre isso depois) e com um pródigo roteiro à disposição. De textura bem simples e uma estrutura bem básica e facilmente reconhecível de qualquer comédia romântica por aí, só que com uma penumbra dramática em seus diálogos e que consegue criar uma narrativa tão habilidosa.
Demonstrando que aprendeu muito bem após anos sendo um discípulo de Kaufman na forma com que Jonze trás traços similares ao mesmo por fazer uma mistura de toques de uma fantasia moderna e de lábia tragicômica nas constantes frustrações de Theodore, o que remete à uma naturalidade de diálogos que soam tão realistas e mostram um mínimo toque de Woody Allen.
E o humor sendo uma das especialidades de Jonze ele também não desaponta nesse quesito, adicionando uma ótima dose deste e que não poupa nas sacadas ácidas e até sujas como a hilária cena do sexo online logo no início do filme, e as constantes tiradas sarcásticas de Samantha com uma carismática atuação vocal de Scarlet Johansson. Isso tudo para mais também saber criar o drama que sua história evoca para arrancar lágrimas de olhos de qualquer um.
Mas a beleza da coisa não está só pela sempre garantida excelente performance de Phoenix, com uma doçura interminável em suas palavras carregados de frustração, mas com uma personalidade de nerdão bobalhão quando sua felicidade ao lado de Samantha começa à florescer. Que é trazida à vida pela exuberante atuação vocal de Johansson, e até repara-se nela uma pequena homenagem ao HAL de “2001” na personagem de Samantha, só que numa versão totalmente sensual e transbordando carisma em sua lábia tão doce e cativante que o próprio público se apaixona por ela junto de Theodore.
O que é um adereço narrativo de caráter proposital e muito interessante em que Jonze se usa em seu texto para criar uma personalidade de “amor universal" que se constrói em volta do relacionamento do casal. Pois reparem que quando Theodore compra o sistema de Samantha, que não é nada mais nada menos que um simples aplicativo, ele pode escolher entre este ser de perfil masculino ou feminino. E a personalidade romântica e sensível de Theodore cabe para uma percepção onde ambos homens e mulheres podem se relacionar e captar a sua escolha, independente de qual for.
Onde até o colega de trabalho Paul (Chris Pratt) elogia Theodore ao dizer em voz alta que a sensibilidade de Theodore o assemelha como a de mulher, fazendo assim possível que todos sejam capazes de se identificar, independente de gênero sexo ou opção sexual, com o amor entre dois seres. Um ser artificial, um ser de carne e osso, pertos ou longes um do outro, o amor ainda será capaz de ser puro e verdadeiro.
Equilibrado ainda com a visão mais cínica e crítica nas suas entrelinhas na forma com que sutilmente mostra que o amor que Theodore sente por Samantha, é uma representação quase poética e metafórica no contexto do filme sobre posse, afixação e dependência que nós somos capazes de ter pelos aparelhos tecnológicos ou as relações que criamos através deles. E o emprego de Theodore como escritor de cartas românticas é uma clara amostra do afastamento social que as pessoas de hoje têm entre si, principalmente no amor, e a incapacidade de se expressar de forma social e agora, nesse futuro utópico, até através da escrita onde humanos chegaram ao ponto de precisarem de outrem para poder se expressarem.
A própria direção de Jonze ajuda nisso, construindo uma Los Angeles montada com toques utópicos de cidades como Shangai. E os planos de câmera por onde Theodore passa denota de forma impressionante pessoas e mais pessoas mexendo e falando no celular, de forma quase assustadora. Surpreendendo ainda com uma belíssima direção de arte detalhada em uma coloração distinta e que destaca as cores mais saltitantes em cena que lembra a usual estética dos videoclipes de Jonze, mas integrados dentro de um visual cinematográfico realmente belo.
Conseguindo aspirar e demonstrar muitos dos próprios sentimentos das situações em cada cenário por onde os personagens passam em cada ponto da história. Seja no apartamento de Theodore que inicialmente é filmado em quase plena escuridão mas que logo se ilumina quando Samantha é introduzida dentro do filme e na sua vida, com os reflexos da manhã refletindo no quarto do protagonista como se revelasse um novo ambiente esperança. Ou quando vemos a cidade em uma penumbra acinzentada e fria no início, para logo se transformar em um cenário iluminado pelo sol como fosse um holofote reluzente.
Mas claro, também sabe revelar tudo isso através das ótimas características no qual ele consegue construir em ambos Theodore e Samantha e seu relacionamento no decorrer do filme. E Jonze impressiona por saber escrever o passar pelas várias fases de um relacionamento de forma extremamente realista, com o início sendo quase que um passeio nas nuvens de alegria entre ambos Theodore e Samantha com ambos se conhecendo melhor a cada conversa; os desabafos íntimos; seguido da primeira “noite de amor”, um dos momentos de beleza mais íntima do filme; e a primeira viagem juntos que mais remete à uma lua de mel, e é quando o filme começa a tocar em temas mais sensíveis.
Como o fato de Theodore aos poucos começa a se frustrar com um relacionamento que parece tão perfeito, com Samantha lhe sendo quase que uma perfeita subserviente de seus desejos, ao ponto de contratar uma garota de programa para ele fazer sexo enquanto pensa nela, lhe mostra apoio no trabalho ao enviar suas cartas para um autor de nome e publicar um livro com elas.
Mas ele parece insatisfeito, cansado e decepcionado com o marasmo, se entristecendo pela falta de um relacionamento com toque e sentimentos. Onde vemos a mudança repentina de humor de Theodore que vai de um solitário carente de companhia e ainda sofrendo pelo térmico com sua ex para um otimista apaixonado, tudo para no final as consequências da forma como subestimou seus sentimentos, levando o filme por um caminho de grau bem mais complexo e também íntimo para o diretor.
Afinal não deve ser nenhum segredo reparar na linha bem autobiográfica que o filme carrega para si tendo em conta o quanto de familiar ELA possui com o filme Encontros e Desencontros da diretora Sofia Coppola cujo Jonze já foi casado e que não terminaram da forma mais feliz. E talvez um principal bom motivo pelas dores de frustração e arrependimento que o filme carrega conseguirem ser tão palpáveis.
O que faz da resolução final, a despedida de Samantha que decide desligar o seu sistema junto das outras inteligências artificiais do mundo para permitir que as pessoas possam tentar depositar o amor que davam à eles, entre si; uma declaração de desapego e superação, não só por Samantha mas pelas mágoas ainda guardadas de sua ex Catherine, mas que agora chegou a hora de mudar.
Fazendo do final (e o filme como um todo) quase que uma carta de amor, perdão e despedida, tanto de Theodore como de Jonze para o seu grande amor do passado que infelizmente não resultou em felicidade plena, mas que agora talvez aceitando os seus erros e mandando um verdadeiro e eterno amor que Samantha lhe ensinou, mesmo que não mais juntos, é que eles agora podem seguir em frente e talvez encontrar um novo amor.
Remetendo fortemente ao tema do amor encontrado na dor (e vice-versa) que Encontros e Desencontros já abordara e ELA quase se torna sua continuação espiritual e apaixonada. Onde também de forma similar seus protagonistas, afundados em sua solidão e decepções causadas pelo amor, Charlotte (Scarlett Johansson, coincidência?!) em Encontros e Theodore em ELA, e que encontram o amor através de uma amizade. Com Bob (Bill Murray) em Encontros e Amy (Amy Adams) a amiga fofa de Theodore.
Difícil haver outras palavras para classificar “ELA” do que senão como uma bela e pequena obra-prima dessa década e com certeza o melhor filme da carreira de Jonze como diretor. Um filme que demonstra a possibilidade de perdermos nossas capacidades de socializar e amar no mundo de vícios e reclusão a qual vivemos. Tudo criado através de uma belíssima e crível história romântica que transmite sentimentos verdadeiros que nos conquista totalmente e nos prende do inicio ao fim entre risos e lágrimas. O que faz do filme, e ambos Theodore e Samantha, totalmente inesquecíveis!
Ela (Her, EUA – 2013)
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquim Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, Rooney Mara
Gênero: Drama, Romance, Ficção Científica
Duração: 126 min