Eu adoro Ilha do Medo. E acho A Invenção de Hugo Cabret um filme adorável. Mas é com O Lobo de Wall Street que Martin Scorsese tem a oportunidade de fazer (novamente) aquilo que faz como ninguém: histórias sobre sujeitos do outro lado da lei, almas sórdidas cuja conduta irreversível atropela todos os valores éticos, morais e até vidas humanas em sua trajetória brutal – e que, ainda com todas as características repelentes, certamente vão conquistar o público e fazê-lo (de certa forma) ficar ao seu lado, mesmo quando o fundo do poço transforma-se no desfecho inevitável.
A trama é inspirada na vida real de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), um implacável corretor da bolsa de valores que rapidamente foi construindo sua reputação em Wall Street na década de 80. Sua estratégia rendeu milhões graças a sua série de mentiras a que submetia compradores de ações mais baratas, para depois iniciar uma grande empresa que se manteve sob mesmo modus operandi, visando agora os grandes investidores. O roteiro de Terence Winter aborda também sua vida pessoal e as complicações com o FBI que Belfort enfrentou.
Em muitos aspectos, O Lobo de Wall Street se assemelha muito a dois dos melhores filmes da carreira de Martin Scorsese: Os Bons Companheiros e o subestimado Cassino. Não só pelo fato de termos duas histórias reais sobre sujeitos que ascenderam em suas carreiras ilegais (para depois, sucumbirem em suas próprias ambições estratosféricas), mas pela forma com que seu magistral diretor as contou. Scorsese utiliza de diversos recursos visuais fascinantes, seja a colagem de diversos vídeos promocionais dentro da história, narrações em off (e até uma curiosa “conversa telepática” entre dois personagens) seus famosos planos-sequência (aqui, rende a sequência mais intensa da projeção, que envolve uma tensa briga domiciliar), a quebra da 4a parede para inteligentemente aproximar o espectador do protagonista (“Vocês não estão entendendo nada disso né? Resumindo, tudo isso era ilegal”, diz Belfort diretamente para a câmera após exemplificar diversos termos específicos da Economia) ou até mesmo alterações na razão de aspecto da tela. Muitos créditos também para a excepcional montadora Thelma Schoonmaker, que profere velocidade e um ritmo alucinado à projeção, mesmo com suas extensas 3 horas.
É de se impressionar também com a presença do humor (politicamente incorreto em sua mais pura forma, claro) presente aqui. Mais conhecido por seu trabalho em séries como Família Soprano e Boardwalk Empire, o roteirista Terence Winter tece diversos diálogos inteligentes e bem contextualizados na insanidade do mundo das ações de Wall Street. Seja no importantíssimo diálogo com o personagem de Mark Hanna (Matthew McConaughey, em participação breve mas memorável) ou no sutil duelo de segundas intenções travado por DiCaprio e o agente do FBI vivido por Kyle Chandler (que pelo visto, se contentou em fazer exatamente o mesmo papel em todos os seus trabalhos em Hollywood) em um barco, que vai ficando mais envolvente (e divertido) à medida em que os dois vão compreendendo suas intenções. Winter também aposta em diversas cenas que não escondem o vício em drogas e as luxuriosas orgias do protagonista e mesmo que diversas vezes o efeito seja cômico, é impossível não ter a noção de que Jordan está cada vez mais próximo de sua autodestruição.
E então chegamos à performance central de Leonardo DiCaprio. Uma que, não fosse tão bem sucedida, resultaria na perda de identificação entre o filme e o espectador e eu aqui agradeço mais uma vez pela gloriosa parceria entre o ator e Scorsese. Na pele do irremediável Lobo, o intenso DiCaprio alcança aqui um dos trabalhos mais memoráveis de sua esforçada carreira, demonstrando incríveis habilidades como ator, dançarino e… ginasta – aguardem só pela cena em que DiCaprio e o colega Jonah Hill (que nem parece Jonah Hill, de tão perdido dentro de seu comicamente perturbado Donnie Azoff) sofrem os efeitos de uma droga rara; duvido que haverá cena mais insana do que esta em 2014. De tão bom que está, um (merecido) Oscar para DiCaprio seria um mero pleonasmo.
Com o mais inspirado uso de trilha sonora incidental em sua carreira em anos, O Lobo de Wall Street é uma frenética e implacável tragédia grega do mundo das finanças. Pode muito bem ser considerado o terceiro capítulo da “trilogia” formada por Os Bons Companheiros e Cassino, mais uma fantástica adição para a carreira de Martin Scorsese. Um trabalho de mestre. Obrigado, Scorsese. Obrigado, Leo.
O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, EUA – 2013)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Matthew McConaughey, Kyle Chandler, Jon Favreau, Rob Reiner, Jon Bernthal, Jean Dujardin, Joanna Lumley, Cristin Milioti
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 180 min