Crítica | Stranger Things: 3ª Temporada – Série se reinventa com roteiro ágil e inteligente

Stranger Things se tornou, para a Netflix, em questão de popularidade, uma série tão importante quanto foi Game of Thrones para a HBO. A 1ª e 2ª temporada de Stranger Things, lançadas na plataforma de streaming, alavancaram uma audiência gigantesca em torno do grupo de crianças composto pelos personagens Mike (Finn Wolfhard), Eleven (Millie Bobby Brown), Dustin (Gaten Matarazzo), Steve (Joe Keery), Lucas (Caleb McLaughlin), Will (Noah Schnapp), Jim (David Harbour) e Joyce (Winona Ryder) e fez com que a produção se tornasse uma marca tão popular que se tornou difícil parar de fazer mais e mais episódios.

Na 3ª temporada a trama vai além do que havia sido feito nas duas temporadas anteriores. Por se passar no ano de 1985, época em que a União Soviética estava próxima da ruína e que existia uma paranoia coletiva nos EUA com a invasão de comunistas ao país, é interessante ver que o roteiro ousou e colocou os soviéticos com uma base científica nos EUA a fim de abrir um portal para o mundo invertido, ainda mais uma base comunista bem abaixo do centro do capitalismo americano, o shopping center. Há também o tão aguardado confronto com o Demogorgon que tanto aparecia na segunda temporada, e agora os roteiristas decidiram por não enrolar e desde o primeiro episódio já davam uma ideia de qual caminho iriam tomar.

O principal desta temporada é o roteiro escrito com participação dos criadores Matt Duffer e Ross Duffer que souberam trabalhar perfeitamente diversos elementos que haviam sido mal desenvolvidos na season 2. Uma das questões mais interessantes, dentre os novos episódios, foi em relação a agilidade com que a narrativa foi criada, definindo rapidamente o que os personagens iriam fazer, direcionando suas vidas e suas ações na busca de desvendar os mistérios. Os diálogos são muito bem escritos e não há uma enrolação ou voltas no roteiro que faz com que a história gire rapidamente e direcionando a trama para frente.

Uma artimanha interessante utilizada ao contar os fatos fica por conta de como o roteiro se utiliza de aspectos simples para desenvolver o enredo, com pequenos detalhes que fazem a diferença, como na cena em que o cientista soviético mostra para Jim e Joyce o plano de abrir um portal usando apenas um canudo e uma caixa de batata frita do Burger King. Outro momento hilário, mas importante e que embasa o argumento do roteiro bem escrito, acontece com a personagem de Winona Ryder quando fala com o professor de física da escola de Mike sobre os imãs que não se grudam mais em sua geladeira. Esses e outros momentos são idéias simples e brilhantes que enriquecem ainda mais esta 3ª temporada.

Desde que Stranger Things surgiu a amizade dos quatro amigos, Mike, Lucas, Will e Dustin, sempre teve um elo forte, mesmo tendo alguns contratempos, como os apresentados na 2ª temporada, não era algo que pudesse arranhar a afeição que o grupo tinha uns com os outros. Neste terceiro capítulo da série a amizade entre os amigos começa a mostrar sinais que está se desfragmentando com Dustin distante e tendo uma relação de companheirismo forte com Steve e com as novatas no grupo, Erica e Robin, enquanto Lucas e Mike estão namorando Max e Eleven, deixando assim Noah isolado e tendo, ao que parece, questões existenciais em relação a amizade e um certo ciúmes de Mike ter uma relação amorosa com Eleven. Os personagens estão crescendo, e nada mais inteligente por parte do roteiro em dar demonstrações de que todos os garotos e garotas estão crescendo em suas vidas pessoais e afetivas.Há também um trabalho em dar maior ênfase nessa fase que marca o fim da inocência dos personagens, já que estão adolescentes e caminham a passos largos para a vida adulta. 

O drama também é muito bem explorado com o arco de cada personagem sendo apresentado a cada episódio. Entre desafios contra os soviéticos e contra o monstro há quase sempre alguma situação que leva a uma questão dramática, como a discussão entre Eleven e Mike e entre Jonathan e Nancy e também entre Nancy e os jornalistas, sendo esnobada e humilhada por todos da redação. Essa questão em relação ao drama abordado é algo que nos dá uma visão de como Stranger Things cresceu como produção, por tratar de temas do dia a dia sem ser piegas.

Com os personagens já desenvolvidos, desde a 1ª temporada, e com pequenos grupos se separando durante a trama, o roteiro e direção deram um jeito em criar um humor que não fosse forçado ou artificial. Talvez pelo fato do elenco já se conhecer há algum tempo há um jeito em como os diálogos e a mais simples situação consegue tirar o riso do telespectador de forma espontânea. A série se inicia com dois episódios bastante divertidos e depois vai ficando mais dark com o tempo em que a história vai se desenvolvendo. O grupo, liderado por Steve, e que é composto por Erica, Robin e Dustin é o mais engraçado e dá uma leveza muito bem acrescentada, não é algo jogado, pois desde o início esse arco dramático dos personagens já havia sido apresentado.

Uma ousadia a ser elogiada por parte do roteiro e da direção é referente as cenas violentas, feitas de um jeito não antes presenciado na franquia. São muitas as situações em que se utiliza da linguagem da violência para dar maior tensão no telespectador e para contar a história de um jeito mais sombrio. Duas destas cenas envolvem tortura, a primeira com o personagem do policial Jim ameaçando rançar um dedo do Prefeito e depois quando Steve é torturado e espancado por militares soviéticos, e outra próxima ao final em que a perna de Eleven é cortada com sangue jorrando por todo o lado. São momentos pesados, mas que fazem sentido para a trama e para os personagens que a estão vivendo. Há uma necessidade em se trabalhar essa violência, até porque as crianças de antes agora são adolescentes, e essa violência está na série porque o público que a acompanha cresceu e já não tem os mesmos gostos de antes. Provavelmente se fizessem algo mais bonitinho e fofinho não colaria e não surpreenderia a audiência.

O tão esperado embate da 2ª temporada de Stranger Things, contra o Demorgogon gigante enfim ocorre. A ideia de inseri-lo na história desde o início, mesmo estando escondido, é uma ideia fascinante. O vilão invade os corpos de ratos e de pessoas e assim as manipula para seu propósito, para depois aparecer destruindo tudo pelo caminho. Mas não é o único vilão da série, há o russo inspirado em O Exterminador do Futuro e que vai atrás de Jim e Joyce, criando cenas de ação bastante interessantes. O confronto contra o monstro do mundo invertido é bem dirigido e dá a impressão de que a qualquer momento os protagonistas seriam mortos. Não havia essa sensação de perda nas temporadas anteriores, quase sempre se tinha a noção que os Demorgogons iriam perder, algo que não ocorre na season 3, há sempre uma ideia de que algo de pior vai acontecer com os personagens.

É difícil encontrar um episódio que não tenha sido bem dirigido, algo raro de se encontrar em produções de TV e streaming, pois sempre há um episódio que destoa do restante. Em Stranger Things, os diretores Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Uta Briesewitz, são bastante competentes em dar uma ambientação mais pesada em algumas situações, enquanto em outros momentos dão um ar mais divertido e engraçado. Para não deixar a história cansativa utilizam de boas cenas de ação, e de diálogos bem construídos assimilados com cortes ágeis de edição. O Clímax, dos últimos dois episódios, é muito bem construído, fluindo de uma forma dinâmica. O principal foi a carga emocional colocada no último ato. Há uma dose grande de tristeza, algo que ainda não havia sido visto na produção da Netflix. O destaque fica com os diversos easter eggs inseridos a cada episódio: O Exterminador do Futuro, O Enigma do Outro Mundo, A Bolha e muitas outras referências a clássicos dos anos 80 que só engrandecem os acontecimentos que surgem na tela.

Todos os personagens estão excelentes, mantendo o nível e até sendo melhores que os de temporadas anteriores. Um exemplo é Dustin e Steve que ganharam um protagonismo maior, tendo desafios mais importantes e conflitos maiores. Eleven melhorou muito, já que na 2ª temporada sua função na trama havia sido bastante irrelevante. Eleven ganha um protagonismo importante, e é apresentada pelo roteiro não apenas como uma garota com super poderes, mas também uma garota humana, com fraquezas iguais a de todos. Eleven apanha, sangra, seus golpes não surtem efeitos, chora, tais elementos ajudam a dar maior dramaticidade para as cenas e faz com que a personagem cresça muito. 

Ao término da 3ª temporada de Stranger Things ficou um ar de despedida pelo jeito que terminou. Para aqueles que acompanharam com carinho a saga dos amigos que se envolvem em diversas confusões é como se tivesse dando um tchau ou até logo para todos. Os roteiristas resolveram ir para frente com alguns personagens, assim como é a vida, indo adiante sem olhar para trás. É uma boa temporada e que deve ficar por muito tempo na cabeça dos fãs e do público.

Stranger Things – 3ª Temporada (Idem, EUA – 2019)

Criado por: Matt Duffer, Ross Duffer
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Uta Briesewitz
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Paul Dichter, Kate Trefry, William Bridges, Curtis Gwinn
Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Natalia Dyer, Charlie Heaton, Joe Keery, Cara Buono, Noah Schnapp, Sadie Sink, Dacre Montgomery, Priah Ferguson, Maya Hawke, Jake Busey
Emissora: Netflix
Episódios: 8
Gênero: Drama, Fantasia, Horror
Duração: 51 min. aprox.

https://www.youtube.com/watch?v=u34798okV80


Crítica | Chernobyl - O retrato real de um dos maiores desastres da história

O acidente nuclear que ocorreu no dia 26 de abril de 1986 na usina nuclear de Chernobyl abriu os olhos da humanidade (mais uma vez) para os perigos que essa tecnologia pode trazer para todos, seres humanos, animais e meio ambiente. A minissérie Chernobyl, da HBO, é um relato magistral do horror que um acidente deste quilate pode causar, detalhado de um jeito pouco visto em outras produções do gênero sobre o assunto, analisando de forma didática os momentos que antecederam a explosão na usina nuclear, como foram feitos os preparativos de contenção da radiação, e da falta de estrutura da União Soviética para lidar com um problema dessas proporções.

Em cinco episódios a espetacular minissérie insere o telespectador em uma viagem ao passado, relembrando e visualizando de perto todos os acontecimentos que levaram a explosão do núcleo do reator nuclear. O roteirista Craig Mazin (Se Beber Não Case – Parte II) tem grande mérito na exposição dos fatos, na criação de personagens tão intrigantes e no jeito de contar a história, dando uma dinâmica pouco vista em minisséries, não enrola em nenhum momento e tudo que é apresentado é por algum motivo. Em sua carreira como roteirista é a primeira vez que trabalha com algo que tivesse uma narrativa tão verdadeira quanto Chernobyl, na maioria dos roteiros que criou trabalhou com comédias escrachadas e forçadas, e mesmo sem muita experiência nesse tipo de trama conseguiu abordar um tema com tamanha realidade de forma honesta e profunda.

Algo feito na minissérie da HBO e que ajudou a contar a história é o já mencionado toque de realidade vista nela. Produções sobre desastres costumam tentar ao máximo utilizar desta artimanha para fazer com que o público se emocione e acredite naquilo que é representado na tela. O foco da minissérie não está na explosão em si, e sim nos acontecimentos seguintes a liberação astronômica da radiação.

Os dois primeiros episódios são mais amenos em relação a cenas fortes, já a partir do terceiro capítulo até o quinto o que se vê são atos cruéis e cenas chocantes, como a dos bombeiros, que foram os primeiros a ter contato com a radiação sem saber com o que estavam lidando, e nessas cenas são mostradas o real poder da radiação em seus corpos. Depois no quarto episódio com uma parte pesadíssima em que animais, como cães e gatos, são abatidos sem dó com impiedosos tiros certeiros de rifles. Há uma necessidade em mostrar tudo isso, justamente para dar a dimensão do quão perigoso é um vazamento nuclear.

Tais cenas dão bastante força para o arco dramático dos personagens, não apenas dos que estão sofrendo com a radiação, mas também com os cientistas que estão trabalhando para cessar e descobrir as causas do acidente nuclear. É um belo trabalho de direção e roteiro que faz com que tenha uma comoção em tudo o que é apresentado, principalmente nas cenas em que os animais são abatidos. Há também um certo tom dramático em relação ao que irá acontecer, se mais pessoas irão morrer, ou se o plano de contenção dará certo. Mesmo sabendo o fim da história há sim motivos para deixar a todos na torcida para que as ações deem certo.

Johan Renck é o nome da produção, como diretor soube muito bem trabalhar a história contando seus principais pontos e os apresentando de forma sombria e inteligente, sabendo por quais caminhos que irá tocar a narrativa. É escolha do diretor em não se preocupar em focar no período econômico da União Soviética, mas sim na questão política, abordando a incompetência dos líderes em não pensar em um projeto de contenção, e no jeitinho em que queriam tratar da explosão, mantendo o assunto apenas localmente. Johan tem experiência suficiente para manter o foco da produção puramente na história, o diretor já dirigiu episódios de Bates Motel, Vikings e Breaking Bad, todas as séries sucesso de público e de crítica. São decisões de Johan Renck, somadas ao roteiro de Craig Mazin, que fazem com que Chernobyl se torne a obra-prima.

Como forma de dar a maior realidade possível para a história foi feito um trabalho de recriação perfeita de recriação do ambiente, desde a usina nuclear, até da cidade fantasma de Pripyat, na Ucrânia. O jeito com que todo o acidente foi retratado lembra a de um filme de terror, com um elemento impactante sendo apresentado a cada episódio dando e dando a dimensão exata do que pode acontecer caso a radiação não fosse contida, e caso não se tomassem medidas para que o núcleo fosse coberto.

Chernobyl é uma das melhores minisséries já produzidas por justamente contar uma história que aconteceu e que foi encoberta ao extremo pelo partido comunista da antiga URSS. Isso explica o sucesso monumental da produção da HBO. Ao relembrar um período que aconteceu, em que URSS e EUA viviam a Guerra Fria e uma situação real de conflito com armas nucleares, e que atualmente faz parte da vida de todos com a corrida armamentista de muitos países, é que a produção se sai bem e deixa uma mensagem fascinante: a de que nem sempre a ambição humana por mais poder é o caminho certo a se seguir.

Chernobyl (idem, EUA, Reino Unido - 2019)

Direção: Johan Renck
Roteiro: Craig Mazin
Elenco: Jared Harris, Stellan Skarsgård, Jessie Buckley, Emily Watson, Paul Ritter, Adam Nagaitis, Sam Troughton, Robert Emms, Con O'Neill, Adrian Rawlins
Gênero: Drama, História
Duração: 64 (por episódio)