Dois anos após nos entregar sua primeira adaptação de quadrinhos, Blade II – O Caçador de Vampiros, através do qual, Guillermo del Toro provou ser mais do que apto de nos entregar um bom filme de ação, com direito a típicos elementos de filmes de terror, o diretor nos trouxe Hellboy, baseado em obra de Mike Mignola, publicado pela Dark Horse Comics. Já com sua identidade formada através de seus longas anteriores, como Cronos, A Espinha do Diabo e a já citada adaptação do personagem da Marvel Comics, del Toro foi capaz de traduzir para as telonas uma história que perfeitamente combinava com seus próprios interesses quando se trata da fantasia. O resultado, no entanto, não faz jus a essa bela combinação.
A fantasia/ ocultismo de Hellboy é logo escancarada nos minutos iniciais – com a voz em off de John Hurt, assistimos um grupo de soldados aliados impedindo que forças nazistas convoquem seres de outra dimensão. No processo, uma dessas criaturas acaba passando para a Terra: um garotinho, ainda bebê, vermelho, com chifres e rabo, que passa a ser chamado de Hellboy. Anos se passam e vemos essa criaturinha já crescida, atuando como caçador de demônios para uma divisão secreta do FBI. Junto de seu pai adotivo, Trevor “Broom” Bruttenholm (Hurt), um ser aquático humanoide, Abe Sapien (Doug Jones), Hellboy (Ron Perlman) deve impedir uma segunda tentativa desses mesmos nazistas, juntos de Rasputin (Karel Roden), de desencadearem o apocalipse.
Um dos aspectos mais interessantes do roteiro de del Toro é a forma como, mesmo lidando com temáticas mais sombrias, ele consegue inserir boas doses de humor no texto. Em essência, o protagonista é uma figura bastante descontraída, que se diverte enquanto caça as criaturas infernais, algo refletido tanto pelo roteiro, quanto pela dedicada interpretação de Perlman, que verdadeiramente se diverte no papel. O fato do personagem tecer pequenos comentários durante todas as lutas chega a incomodar em determinados trechos, mas, como dito, o ator nos convence e, no fim, esse recurso narrativo não chega a atrapalhar. De fato, del Toro sabe dosar bem o drama, ação e comédia de seu longa, mantendo um ritmo constante, que somente é prejudicado por algumas subtramas desnecessárias.
Uma dessas é todo o arco envolvendo o triângulo amoroso entre Hellboy, Liz (Selma Blair) e John (Rupert Evans), utilizado para desenvolver a relação entre o protagonista e sua amada, mas que, no fim, não faz a menor diferença, já que as outras interações entre os dois personagens mais que dão conta do recado. De fato, John parece como um ponto fora da reta do início ao fim, não sendo bem aproveitado pelo longa, atuando como nosso “representante” dentro daquele universo, mas que acaba tirando o tempo em tela de outros personagens mais interessantes, como Abe, que é simplesmente esquecido no ato final da obra. Tais pontos geram uma grande fragilidade na narrativa, fazendo com que sintamos que muito mais poderia ter sido trabalhado e até, talvez, em menos tempo, já que o tal triângulo gasta mais tempo do que deveria.
Aliás, é irônico que Liz tenha uma função tão importante no filme sem, de fato, fazer muita coisa. Nessa de construir o romance entre os personagens, del Toro acaba esquecendo de garantir o devido espaço à personagem, que meramente funciona à favor do protagonista. Sim, ela o salva em determinado ponto, mas, como dito, parece que toda a sua construção gira em torno de Hellboy, passando a imagem artificial, como se ela não existisse fora da tela – não é uma personagem viva, é meramente um recurso narrativo personificado. O mesmo, infelizmente, pode ser dito de John, que é simplesmente jogado na trama e parece viver para cair nas graças do protagonista.
Curiosamente, mesmo não tendo muito tempo em tela e, como já dito, sendo esquecido no último ato, Abe parece um personagem, de fato, vivo, plenamente existente dentre aquele universo. Desde cedo aprendemos um pouco sobre ele, suas habilidades, de onde ele veio – seus diálogos mais dizem sobre os outros ao seu redor, mas, por vezes, ele revela um pouco de si, de sua personalidade, o que permite que seja construída sua imagem em nossas mentes. Naturalmente que o trabalho de Doug Jones, perfeitamente à vontade debaixo de tantas próteses e maquiagem, ajuda esse desenvolvimento e nos faz acreditar nessa criatura anfíbia.
Entramos, pois, naquele que certamente é o maior acerto de Hellboy: sua direção de arte. Desde Sapien até o assassino nazista mascarado, sentimos o cuidado na construção desse universo. Não há um design sequer que não mereça nossa atenção e todos dizem muito sobre os personagens ou os locais pelos quais passam. Há evidente influência de H.P. Lovecraft nas criaturas infernais, todas com inúmeros tentáculos, além do próprio portal, claro, que remete ao terror cósmico lovecraftiano. Hellboy, evidentemente, é o maior destaque e mesmo nos vibrantes tons vermelhos ele funciona, impedindo que Perlman perca sua expressividade. A única ressalva é em relação ao rabo do personagem, que, embora se movimente de maneira fluida, soa um tanto artificial.
Naturalmente que estamos falando de um filme de 2004 e muitos dos efeitos em CGI não soam tão belos quanto foram à época de seu lançamento. Felizmente, del Toro sabe mascará-los muito bem, além, é claro, de priorizar os efeitos práticos, algo bem exemplificado pela criatura Samael. Alguns exageros, no entanto, poderiam ser evitados, especialmente em alguns dramáticos movimentos (como o incessante girar das lâminas do assassino nazista) e nos próprios enquadramentos do diretor, que mais parece querer brincar com a imagem do que, de fato, construir engajantes sequências de ação. Muito da naturalidade dos movimentos se perde com isso, transmitindo uma certa artificialidade à imagem, que, por sua vez, acaba afetando a sensação de urgência transmitida pela obra.
No fim, muitos dos acertos desse longa-metragem de Guillermo del Toro acabam sendo prejudicados por tais defeitos – terminamos a obra, nem de perto, tão imersos quanto estávamos nos seus minutos iniciais. Não ajuda, claro, o fato do desfecho ser apressado e pouco inspirado. Com isso, mesmo com uma bela direção de arte e boas performances de Perlman, Jones e Hurt, além de uma boa dosagem entre comédia, drama e ação, Hellboy acaba não sendo mais do que um filme esquecível. Trata-se de uma obra que diverte, mas que não vai muito além disso.
Hellboy (idem – EUA, 2004)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro (baseado nos quadrinhos de Mike Mignola)
Elenco: Ron Perlman, Doug Jones, Selma Blair, Rupert Evans, Karel Roden, Jeffrey Tambor, Doug Jones, Brian Steele, Ladislav Beran
Gênero: Ação
Duração: 122 min.