Certos artistas levam anos para encontrar um ponto ideal de criatividade e maturidade em suas carreiras. Ao contrário do que muitos pensam, isso não necessariamente está centrado nas primeiras experimentações da juventude. Um grande exemplo disso é Bernardo Bertolucci que, apesar de ter sido muito elogiado com O Conformista, trouxe uma grande quantidade de filmes razoáveis repletos de imaturidade como Último Tango em Paris e 1900.
O prestigiado cineasta italiano foi encontrar o equilíbrio em seu fanatismo pela escatologia e discursos ideológicos com O Último Imperador que até mesmo acabou lhe rendendo dois Oscar. Porém, passado o sucesso desse grande filme, Bertolucci ficou perdido entre produções hollywoodianas que pouco atraíram a atenção tanto das premiações como do público.
O último ponto da virada da carreira de Bertolucci como um artista relevante para a indústria, aconteceu em 2003, com a estreia inusitada de Os Sonhadores, um filme extremamente curioso que dialoga tanto com a vida pessoal de um artista antes repleto de convicções assim como oferecia uma visão mais realista sobre grande parte da massa parisiense que participou das históricas manifestações de Maio de 1968.
Somos Tão Jovens
Apesar de não ser o último filme de Bertolucci, Os Sonhadores tem um trejeito único de oferecer essa falsa impressão. Isso ocorre por conta da fascinação dos três personagens protagonistas pelo Cinema e principalmente pelo movimento artístico da Nouvelle Vague. Contando com a adaptação do próprio romancista Gilbert Adair sobre sua própria obra, é nítido que esse é o longa melhor amarrado e com a narrativa mais gostosa de acompanhar – Bertolucci é muito conhecido por ser um roteirista desconexo e impulsivo, apresentando novas características a custo do abandono de núcleos narrativos inteiros.
Acompanhamos a história do tímido estudante americano Matthew (Michael Pitt) que faz intercâmbio em Paris para aprender francês. Solitário, o jovem passa diversas tardes na cinemateca onde assiste a diversos clássicos internacionais e também aos filmes mais quentes dos realizadores franceses do momento. Porém, com a demissão do curador da instituição, o rapaz acaba encontrando os irmãos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green) durante um protesto.
Rapidamente firmando amizade por conta da enorme paixão ao Cinema, o trio passa a ficar unido e aproveita a viagem dos pais para conviverem juntos no enorme apartamento. Durante esse período, os três acabam descobrindo verdades indesejadas sobre si mesmos enquanto negligenciam responsabilidades básicas.
Ou seja, Os Sonhadores facilmente se enquadra em um campo de filmes coming of age, centrados na juventude e no custo do amadurecimento. Entretanto, por se passar em um momento histórico curioso e polêmico, além de envolver a criatividade de um dos maiores cineastas autorais dos anos 1970, rapidamente se torna uma obra com um quê a mais.
O fato que rapidamente envolve o espectador não são os contrastes entre os excêntricos e estranhos irmãos franceses entre o americano comportado, mas sim na estética da obra. É inevitável, pois Bertolucci estava muito inspirado e dedicado ao máximo a incorporar muito da linguagem cinematográfica da Nouvelle Vague em todo o filme. Basicamente, o espectador encontrará um longa que teria tudo para pertencer aos anos 1960, mas com maior capricho narrativo.
Naturalmente, o cineasta mais mimetizado é Jean Luc-Godard – isso é explícito. Bertolucci, fã do classicismo da câmera estável e elegante, sofre uma revolução no próprio estilo ao adotar diversas das características mais rudes do cinema francês da época incluindo intenso trabalho com câmera na mão, closes generosos, nudez e cigarros, forte presença do grão fílmico, cenas externas em locações de ruelas charmosas de Paris, jump cuts e muitos planos-sequência fluídos e coerentes para conferir a unidade cênica do apartamento de Theo e Isabelle.
Entretanto, o cineasta não se limita apenas a dar essa roupagem apaixonante para seu divertido filme: ele cria ou aprimora um estilo de montagem muito atraente. Em nível muito íntimo, a montagem de Os Sonhadores está diretamente ligada à psique dos personagens fissurados pelo cinema e, por conta disso, toda vez que temos alguma menção direta a um longa ou até mesmo recriação de cenas consagradas como no caso da quebra do recorde de Bando à Parte, Bertolucci insere match cuts bastante precisos entre a encenação diegética com as imagens dos filmes referenciados. O efeito é realmente único de tão bem realizado.
Também aproveito para apontar que o sempre famoso trabalho com reflexos está presente em cenas igualmente bem realizadas como do banho do trio em uma banheira. O cineasta aproveita os três eixos do espelho partido para sempre enquadrar os três personagens unidos no plano, mesmo que um deles seja visível apenas por conta do reflexo. A escatologia na qual Bertolucci sempre foi fissurado surge de modo abrandado e a nudez é comportada de modo mais natural possível – o trabalho com o elenco se destaca justamente por conseguir evidenciar diferentes tons de inibição ao longo dos atos.
Movidos por Sonhos Inocentes
Como disse, a narrativa de Os Sonhadores é mesmo muito agradável e coesa provando, enfim, que Bertolucci consegue conduzir uma história quando mais ponderado. De cunho intimista, o texto conquista pelos personagens, já que o estranhamento inicial da história logo é normalizado e tudo se encaminha para o trabalho massivo no desenvolvimento dos três personagens claramente distintos, apesar da primeira falsa impressão gerada por Theo e Isabelle.
O choque cultural, obviamente, é uma grande força, já que Matthew comporta pontos de vista mais maduros e responsáveis sobre política, arte e revolução. Assim como nos filmes de Godard na Nouvelle Vague, principalmente em O Pequeno Soldado e A Chinesa, há uma quantidade generosa de cenas para discutir maoísmo e a Guerra do Vietnã. Os embates sempre são expostos nas discussões antagônicas de Matthew e Theo já que Isabelle, aparentemente, não se interessa nada pelos devaneios políticos do irmão.
Aliás, Os Sonhadores é um dos poucos filmes no qual a direção de arte é essencial para sintetizar os personagens. O texto se concentra bastante em Matthew por dois motivos: ele é o protagonista e também é um visitante, uma tela em branco esperando ser preenchida por situações que demonstrem suas paixões e quem ele é – isso é feito também com o auxílio da narração over.
Porém, com Theo e Isabelle temos justamente o contrário. Apesar dos personagens também serem trabalhados em camadas, a maioria das cenas está concentrada em focar na estranheza dos irmãos e de sua afeição excessiva que levanta suspeitas incestuosas. Theo é o mais explorado através do caos instalado em seu quarto. Fã declarado da Revolução Cultural Chinesa de Mao Tsé-tung, o rapaz coleciona pôsteres e objetos remetendo à ideologia. Aqui aplica-se uma crítica sutil ao mostrar o revolucionário acomodado como um jovem tão desorganizado e sem responsabilidade que se torna apenas mais um dos muitos insatisfeitos que foram às ruas durante as manifestações sem saber direito o que proclamar.
É justamente por isso que sua relação de amor e ódio com Matthew que sempre mede os riscos de uma revolução precipitada é inteligente já que Theo projeta os sentimentos conflituosos que sente pelo pai, no amigo. E como o protagonista se envolve amorosamente com Isabelle, há até mesmo o surgimento de um complexo de Édipo diluído em bebedeiras e relações homossexuais que pairam em imagens sugestivas. É pretensioso e denso, mas funciona.
No meio dessa guerra de egos entre Theo e Matthew, há Isabelle, a personagem mais misteriosa do longa, porém a mais sedutora e, em primeiro momento, madura. As reviravoltas envolvendo a personagem subvertem expectativas de modo similar a Beleza Americana e realmente trazem um grande impacto ao espectador quando temos a revelação da concepção visual de seu quarto, nada mais do que uma extensão completa do que a menina é. Essa característica totalmente cinematográfica que oferece um dos contrastes mais poderosos do longa, desarmando todo o discurso de Isabelle até então.
Isso leva a terrenos mais curiosos que comprometem totalmente as surpresas do último ato do longa que novamente traz diversas críticas políticas à juventude movida apenas pelas paixões e pelo caos da catarse. O final esmagador apenas confirma o custo da maturidade e da negação da mesma, levando cada um dos personagens para caminhos dolorosos, hipócritas e, por fim, de completa subserviência dos desejos mais impossíveis.
Sexo, Cinema e Política
No auge da maturidade, Bernardo Bertolucci realiza um filme tão jovem e tão realista sobre a juventude sempre fadada a repetir os mesmos erros da persistência rebelde contra tudo e todos. Funciona bem como seu testamento político que desarma muitas de suas crenças que já haviam sido desconstruídas firmemente em O Último Imperador, mas aqui é algo realmente explícito.
Evocando sua paixão pelo Cinema conseguindo captar e mimetizar a essência cinematográfica de muitos dos filmes da Nouvelle Vague, é curioso que o artista consiga imprimir diversas de suas características, além de oferecer uma atmosfera tão doce e divertida que praticamente aprimora o pior dos vícios dos diretores nascidos no movimento. Portanto, mesmo para quem absolutamente detesta o cinema francês dos anos 1960, Os Sonhadores é uma ótima oportunidade de se apaixonar por um estilo que realmente revolucionou o Cinema.
Os Sonhadores (The Dreamers, Reino Unido, França, Itália – 2003)
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Gilbert Adair
Elenco: Michael Pitt, Eva Green, Louis Garrel, Anna Chancellor, Robin Renucci
Gênero: Drama, Romance
Duração: 112 minutos.