Como toda criança, encontrei divertimento nas pequenas coisas. Tinha certa peculiaridade que certamente definiu as duas carreiras que escolhi para viver. Ver os mesmos filmes repetidas vezes, principalmente as animações Disney. Dentre todas, duas eram favoritas: 101 Dálmatas e A Bela e a Fera. Vi e revi tanto esses dois que praticamente memorizei até mesmo os diálogos. Entre diversas animações favoritas, sempre guardei um pedaço especial para A Bela e a Fera por conseguir conversar tão bem com o público e apresentar um poder de concisão tremendo, afinal o filme tem apenas 84 minutos.
Divertido, edificante, espetaculoso e musicalmente perfeito, era questão de pouco tempo até a Disney encaixar A Bela e a Fera em sua nova linha de remakes milionários trazendo as animações para o universo tridimensional do live action. Até agora, todos os filmes dessa leva superaram as expectativas de bilheteria. Cinderela, Malévola e Mogli: O Menino Lobo e, muito provavelmente, a história se repetirá com A Bela e a Fera mesmo que este remake seja um dos piores já realizados pelo estúdio.
A história é basicamente a mesma que todos conhecemos, obviamente, tomando como base a versão animada da Disney. Bela vive em uma pacata cidadezinha no interior da França. Condenada a viver todos os dias uma vida trivial de rotina trivial na qual todos os camponeses a acham uma garota excessivamente estranha, o cotidiano de Bela sofre uma preocupante reviravolta. Após seu pai inventor, Maurice, se perder a caminho de uma feira de negócios e se tornar prisioneiro de uma perigosa Fera amaldiçoada, Bela parte para resgatar seu pai.
Ao chegar no castelo amaldiçoado, se oferece como prisioneira para que a Fera liberte seu velho pai. Concordando com os termos, Fera liberta Maurice. Ao tempo que Bela permanece aprisionada, descobre que diversos móveis e utensílios domésticos tem vida própria e passa a entender toda a enorme maldição que condena o castelo e seus habitantes ao esquecimento completo. Felizmente, há uma maneira para quebrar a maldição, porém isso custará o preço de um verdadeiro amor entre pessoas completamente opostas.
Entusiasmo excessivo
Logo nos primeiros minutos de A Bela e a Fera é possível notar algo que será aberrante no filme inteiro: é uma obra de muitos excessos e de pretensão alta, afinal há sim o desejo de superar a animação de 1991 – já aviso que isso passa bem longe de acontecer. Já sacrificando a icônica e bela sequência dos vitrais para expor como a Fera se tornou uma criatura amaldiçoada para ilustrar tudo através de um prólogo que busca tecer comparações dos residentes do castelo com a aristocracia francesa pré-Revolução Francesa.
A manutenção da narração over para uma cena que já ilustra toda a arrogância e transformação do príncipe em Fera é absolutamente desnecessária. Claro, confere o tom de “contos de fada” que o filme tanto almeja, porém, removendo a introdução estilizada da animação, torna-se totalmente redundante.
É engraçado notar que o texto de Chbosky e Spiliotopoulos segue à risca o roteiro da animação, porém, mesmo tão parecido, consegue falhar em algumas recriações e, no mais importante, as passagens originais para justificar a tremenda barriga de 47 minutos a mais que essa versão possui.
As canções permanecem peças importantíssimas para desenvolver os personagens e as relações entre eles como em praticamente ocorre em todos musicais. As poucas mudanças na estrutura do original geralmente elaboram romances novos entre os habitantes do castelo ou incrementam maior animosidade entre os camponeses com Bela que agora é inventora também – uma característica que se prova desnecessária, pois é esquecida rapidamente. São empreitadas desnecessárias em conferir ainda mais independência para uma personagem que já é forte e poderosa desde sua concepção no conto escrito em 1740 que marcam a impressão de serem concessões para atender as filosofias políticas de Emma Watson.
A maior aposta dessa releitura é responder uma questão que ninguém havia perguntado até agora: o que houve com a mãe de Bela? A resposta, além de fraca, é totalmente anacrônica e agrega muito pouco para a narrativa. Realmente se torna uma gordura que sacrifica o ritmo fluído dos acontecimentos da obra, além de prejudicar o florescer do romance entre Bela e Fera. O pior desse arco é inserção de um artifício mágico extremamente surreal até mesmo para a diegese estabelecida aqui. É somente criado para resolver essa questão e sumir logo após.
Há também uma ligeira tentativa de humanizar em excesso a figura da Fera com uma canção que justifica o motivo de sua arrogância. Além de vitimizar o personagem, ainda busca responsabilizar os empregados do castelo por toda a maldição. De certa forma, ao inserir esse conceito, há uma poluição em uma das mensagens mais poderosas do filme, sobre arcar com as todas consequências de seus atos vaidosos. Com isso, estranhamente, o personagem perde a boa complexidade marcada pela animação.
Não satisfeitos em inserir uma ideia desnecessária para a Fera, ainda há outra que praticamente consegue enfraquecer o florescer da paixão entre os dois personagens – mesmo que renda o melhor diálogo de todo o filme.
Mesmo mantendo boa parte da estrutura do roteiro da animação, alongando o filme apenas para inserir músicas novas e tentar desenvolver o “grande” mistério do passado dos personagens, os roteiristas conseguiram prejudicar a fluidez da narrativa e a relação entre os protagonistas. Em vez de aperfeiçoarem características dos coadjuvantes clássicos como Lumiere (agora com um pouco mais de tempo para namorar com Plumette), Horloge, Zip e madame Samovar, há maior atenção para madame Garderobe e para o novo personagem Maestro Cadenza, transformado em um cravo.
Então, no que raios a dupla de roteiristas conseguem melhorar do texto da animação? Por incrível que pareça, há sim bons elementos. O divertido núcleo de Gaston e LeFou ganha camadas óbvias graças à paixão escondida de LeFou por seu companheiro que acaba tornando o personagem mais complexo e justificando suas motivações de ficar ao lado de um ser tão vil e canastrão.
Gaston também ganha novos tons de cinza com a indicação de uma intensa bipolaridade que rende momentos genuinamente cômicos. Entretanto, há cenas novas bastante redundantes para dimensionar mais o conflito entre Gaston e Maurice, além de Gaston receber um dos piores desfechos da obra. Também há um bom elemento que traz maior urgência e perigo conforme as pétalas da rosa encantada caem. Só.
O Crepúsculo da Disney
Ao assistir a primeira parte do último filme da saga Crepúsculo, pensei que seria o fim de Bill Condon em Hollywood tamanha a feiura estética e falta de capricho de sua direção. Porém, o quão redondamente enganado eu estava. Ao sair das duas bombas, Condon é convidado para dirigir um dos projetos mais importantes da Disney: o remake de A Bela e a Fera. E o tiro saiu pela culatra. É difícil apontar onde que Condon não erra ao conferir diversos aspectos de telefilme para este remake.
Como havia dito, o filme inteiro é marcado por um exagero visual tremendo. Excesso de elementos em tela marcam quase todos os números musicais, principalmente durante Belle que deveria ser um dos mais singelos possui exagero de figurantes a todo canto, além de receber um dos piores tratamentos fotográficos dos últimos anos graças ao contraste pífio totalmente chapado. O que é uma verdadeira pena, pois trata-se da sequência de apresentação da protagonista e do trabalho exemplar do setor de figurino que dedica atenção crucial até mesmo as vestes do menos importante figurante.
Alguns como “Be Our Guest”, o exagero funciona, de certo modo, pois o crescente da música não é respeitado, além de revelar um dos bons momentos de lucidez da direção de Condon ao realizar uma pequena sequência que mostra os preparativos do jantar espetaculoso de Lumiere. Outro bom detalhe visual é dar maior relevância para a maldição de modo mais explícito. Além de condenar o castelo a uma vida deformada e esquecida, tudo é gélido, sombrio e abandonado. Nisso sim, a fotografia e o design de produção acertam em cheio: é uma recriação exemplar do castelo visto nos desenhos, porém, é uma pena que o diretor não saiba aproveitar adequadamente seu espaço com pontos de vista mais interessantes.
Condon realmente deixa a decupagem desse filme extremamente quadrada e sem graça. Os únicos planos que conseguem ter força geralmente são recriações dos enquadramentos clássicos do desenho. Ao menos, apesar de quadrada e bastante sem-graça, Condon tem noção que está gravando um musical e, portanto, quase nunca prejudica as coreografias grandiosas garantindo o espetáculo destas cenas. Em “Gaston” temos um dos melhores exemplos de como Condon sabe maneirar nos exageros e criar um ótimo número musical divertido.
Entretanto, é justamente nos novos números musicais que Condon consegue revelar a sua pior característica: a breguice. Sem a base do desenho, o diretor realmente se perde nas três novas canções, “Days In The Sun”, “Montmartre” e “Evermore”. Essas derrapadas do diretor são cruéis porque as canções são boas e funcionam melhor quando escutadas isoladamente, sem a encenação.
Há também problemas rasteiros de montagem por conta de Condon confundir que não está dirigindo uma peça da Broadway, mas sim um filme. Ao menos três números musicais se encerram com cortes para o preto e logo depois apresentando cenas em espaços completamente diferentes. Isso consegue te tirar completamente da atmosfera do filme. A ação também é bastante infeliz ao se perder em um tom infantiloide que ameniza toda a sequência da invasão dos camponeses no castelo ou beiram o risível como a cena na qual Maurice foge de uma alcateia de lobos. Outras cenas antológicas como a da biblioteca, também causam estranhamento pela escolha equivocada da decupagem.
Enfim, o que mais estranha em A Bela e a Fera é o quão vazia está obra é. Há certo estranhamento que pode ser totalmente subjetivo, mas falta certo quê de magia tão presente na animação que raramente aparece aqui. É triste, pois é uma história que possui muitíssimo potencial. Esse estranhamento pode ser gerado por muitos elementos distrativos e um deles certamente é a atuação medíocre de Emma Watson como Bela.
Mesmo que Watson não consiga atingir as notas de Paige O’Hara, dubladora original, a cantoria é afinada e boa. Entretanto, em termos de expressividade, Watson passa longe de acertar o tom e essa culpa também recai no diretor. A atriz canta muitas vezes com os braços contidos ao corpo, nunca expandindo ou explorando seus gestos como forma de libertação durante as canções. As poucas vezes que arrisca, copia a movimentação da versão animada da personagem.
Sua interação com os objetos virtuais também deixa a desejar com olhares vazios que realmente revelam que não há nada ali. O melhor exemplo é seu primeiro encontro com Zip em uma estranha troca de plano e contraplano. Com Fera, o mesmo ocorre, até mesmo durante a bela valsa. A maquiagem virtual deixa bastante a desejar assim como todos os efeitos aplicados no personagem de rosto, por incrível que pareça, bastante humanizado.
Em contraponto da apatia de Watson, Dan Stevens oferece um show como Fera. Uma pena que devido a tantas barrigas e cenas desnecessárias, seu tempo de tela seja tão rápido – sua presença no desenho é maior por conta da curta duração da obra. Ele sim consegue se comunicar através de olhares irados que se acalmam conforme se apaixona pela moça tanto que o número musical de Something There só funciona graças a pureza de seu desempenho.
Luke Evans e Josh Gad também estão ótimos como Gaston e LeFou capturando a canastrice e inocência apaixonada, respectivamente, com perfeição. Porém, no setor de dublagem há outro jogo de extremos. Ian McKellen consegue tornar Horloge uma figura ainda mais pesada e presente do que ela já era. Emma Thompson faz Madame Samovar com a mesma doçura de outrora. Porém, o irreconhecível Ewan McGregor transita entre momentos excepcionais e abissais com Lumiere. Por vezes acerta o sotaque, outras, uma entonação latina-francesa surge.
O principal problema com os objetos e móveis também recaem no design de produção realista. Enquanto os animadores acertam com Zip e Lumiere – único personagem encantado que conta com uma figura humanoide, Horloge possui uma movimentação travada e um tanto bizarra, assim como Madame Samovar que apenas é um bule com um rosto sem graça estampado. Por conta dessa abordagem, a maioria deles é extremamente rígida perdendo o encanto de antes – isso é justificado no enredo, mas não deixa de ser uma decisão ruim.
Fantasmas do Passado
A nova versão de A Bela e a Fera tem grandes chances de ser um sucesso financeiro. Entretanto, é uma pena que a qualidade apresentada aqui seja tão irregular. A escolha dúbia de Condon em conduzir um projeto importante foi confirmada com o que vimos em tela. Há diversos problemas e as passagens inéditas que visam justificar a existência desse filme acabam por prejudicá-lo consideravelmente.
O elenco e parte do design de produção, além da força da história adaptada pela animação compensam uma ida ao cinema. Alan Menken, um dos gênios musicais da Disney, inclusive prepara arranjos totalmente novos para suas composições que logo vão completar três décadas – uma pena que não haja a presença da ótima Human Again. As mensagens sobre não julgar as pessoas pela aparência, amor pleno, inteligência e coragem também são transmitidas com clareza – até mesmo explícita com alguns diálogos sobre a monstruosidade dos normais ante a gentileza da Fera.
É recomendado apenas não esperar uma estupenda transformação aqui. A lembrança da animação berra a cada instante tornando impossível não comprar uma obra com outra. E acredite, a nostalgia não agregará em nada para uma obra que consegue ser bastante vazia. É difícil entender a existência desse filme quando justamente sua maior força somente é encontrada nas encenações do desenho. Portanto, para se maravilhar com A Bela e a Fera, só é preciso revisitar o clássico de 1991 na prateleira mais próxima.
A Bela e a Fera (The Beauty and the Beast, EUA – 2017)
Direção: Bill Condon
Roteiro: Steven Chbosky, Evan Spiliotopoulos
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Josh Gad, Kevin Kline, Hattie Morahan, Haydn Gwynne, Ewan McGregor, Ian McKellen, Emma Thompson, Stanley Tucci, Audra McDonald, Nathan Mack
Gênero: Contos de Fada, Fantasia, Romance, Musical
Duração: 129 minutos.