Crítica | Fervura Máxima - John Woo explode tudo
Apesar de hoje poucos celebrarem a cinegrafia de John Woo, houve um tempo no qual o cineasta trazia o que o Cinema de Ação tinha de melhor, além de colocar Hong Kong como um polo exportador das fitas mais explosivas que a audiência brasileira poderia conferir em programas como Domingo Maior. Mesmo não sendo o maior nome do cinema de ação de outrora, Woo acabou realizando algumas obras de suma importância histórica.
Indiscutivelmente, o ponto alto de sua carreira vem com Fervura Máxima no qual o cineasta busca trabalhar com referências conceituais americanas, mas as aprimorando ao jogar em cenários inusitados que inspirariam outras obras hollywoodianas chegando até mesmo a fundamentar momentos icônicos de Batman: O Cavaleiro das Trevas – não é à toa que o Morcego acaba visitando a própria Hong Kong em certo momento do longa.
Ação Global
É sempre muito curioso e gratificante ver como a comunidade cinematográfica pós-globalização se torna um tanto mais integrada devido a facilidade de diretores de diferentes países conferirem produções de outros colegas. Apesar de não ser explicitado em entrevistas, há um trato de similaridades que conectam Fervura Máxima com Duro de Matar, Um Dia de Cão e até mesmo Caçadores de Emoção.
A história como em quase todos os longas de Woo pré-Hollywood parte de uma premissa estritamente simples. Tequila (Yun-Fat Chow), um policial linha dura, parte em uma investigação complexa contra a Tríade, máfia chinesa, após entrar em confronto com o grupo acidentalmente durante uma ação em uma casa de chá. A complicação é que por se intrometer onde não é chamado, Tequila pode comprometer uma longa operação já em curso envolvendo outro agente, Alan (Tony Chiu-Wai Leung) que está infiltrado na organização criminosas há meses.
Woo é um cineasta mais preocupado com a estética do que a substância de seus próprios filmes. Por conta dessa escolha muito aparente já em questão de poucos minutos, é um fato que a história demore a engrenar e conquistar o espectador. Como os personagens estão inseridos em conflitos trabalhados de modos mais inteligentes em diversos outros filmes, além de serem bastante superficiais, se sustentando apenas em características fugazes do clássico clichê “policial esquentadinho vs. policial regrado”, é igualmente complicado gerar empatia por ambos, apesar das performances simpáticas de Chow e Leung.
Tanto que a interação da dupla só funciona pela química exibida em tela, já que os diálogos, em geral, são bem rasteiros e de qualidade duvidosa. Os personagens basicamente não se conhecem o suficiente, nem trocam experiências pessoais que formam elos significativos. O elo da amizade apenas nasce pelo ofício.
Se nem os heróis da obra inspiram, os vilões conseguem ficar ainda mais abaixo por conta também da natureza bastante simplista de seu antagonismo forçado. Alguns personagens se destacam pelas proezas exibidas em tela, mas o mandante que é o vilão principal simplesmente é um poço generoso de apatia, apesar de seus planos maléficos caricatos de matar inocentes em um hospital sitiado.
Aliás, mesmo que tenhamos uma narrativa suficientemente capaz de sustentar esse filme bastante longo para sua proposta, há um exagero pulsante no desequilíbrio entre cenas de desenvolvimento narrativo e as de ação. As gigantes sequências explosivas duram por uma eternidade, apesar de serem divertidas e Woo sempre dispor de cartas na manga para tornar seu trabalho inventivo o suficiente a cada nova investida.
Pirotecnias a Mil
Portanto, como a história de Fervura Máxima não é nada memorável ou impactante, fica nítido que o longa se sustenta apenas pelas proezas técnicas fascinantes do cineasta insano. Dispondo de muitos explosivos para efeitos especiais, Woo elabora tiroteios exemplares e muito lógicos na decupagem organizada que não permite qualquer confusão mental no espectador.
Isso ocorre por Woo sempre colocar os protagonistas da ação em conjunto ao enquadramento do figurante alvejado e, acredite, há um número insano de corpos estraçalhados nesse longa. O diretor preza então por este realismo da violência visceral dos tiros atravessando impiedosamente os inúmeros corpos, mas enquanto evoca esse grafismo curioso, torna toda a situação fantasiosa com exageros por vezes cômicos como a quantidade absurda de explosões, faíscas e do número surreal de balas que os policiais conseguem disparar de suas armas sem a necessidade de recarregar em momento algum.
Obviamente que isso não é apontado como defeito de forma alguma pelo resultado criativo que Woo consegue tirar de seu exagero. Apenas no terceiro ato igualmente enorme concentrado nos dois personagens tentando evacuar um hospital sitiado que o cineasta comete equívocos a ponto de se tornar repetitivo. Há um investimento irritante em coreografias envolvendo personagens se atirando em vidraças para escapar da linha de tiro – sempre em slow motion, além de um núcleo envolvendo a remoção de recém-nascidos durar excessivamente.
Como há essa cacofonia gigantesca de efeitos pirotécnicos, coreografias repetitivas, núcleos bobos e a sempre irritante trilha musical muito envelhecida e derivada, o terceiro ato se torna uma verdadeira penúria, extraindo toda a beleza do heroísmo dos personagens em arriscar a própria pele para combater a Tríade. Mas no meio disto tudo, há um momento realmente excepcional no qual Woo cria um fantástico plano-sequência exibindo o melhor segmento do tiroteio, além de focar em uma virada dramática forte para um protagonista – o cineasta infelizmente insiste em brincar com a velocidade dos fotogramas por vezes criando um efeito cômico inusitado.
Nas demais cenas, Woo também permeia sua assinatura cinematográfica distinguível, já que a mesma salta aos olhos. Na época, era algo realmente inovador, mas hoje há a impressão de muitas cenas serem "videoclipadas", com o look e estilo dos videoclipes noventistas. Isso ocorre tanto pelo uso de slow motions desnecessários, fusões bregas e outras escolhas estéticas curiosas que tornam a imagem sempre bastante artificial devido a encenação de mão pesada - detalhe para as tradicionais pombas brancas presentes em diversos dos filmes de Woo. Em geral, é um trabalho de importância história, pois Woo definiu um estilo que seria muito explorado por outros cineastas de estética exagerada, incluindo Zack Snyder em seus Watchmen ou Batman Vs Superman de sua carreira.
Balés de Tiros
Se leu toda a análise, deve ter percebido que Fervura Máxima não envelheceu espetacularmente bem, apesar de ser um marco do cinema de ação, além de marcar, provavelmente, o ponto mais alto da carreira de John Woo que possui sim grande parcela de competência artística atribuída com muita paixão nesse filme repleto de excessos. Ao que se propõe, apesar dos desvios insanos, é um longa eficiente repleto de ação de primeira linha com pirotecnias fantásticas e um cuidado pleno na arte de decupar ação de modo que o espectador sempre estará entretido. Entre tantos efeitos especiais, Woo não se consagra como um ótimo contador de histórias, mas um virtuoso esteta dinâmico.
Fervura Máxima (Lat sau san taam, Hong Kong - 1992)
Direção: John Woo
Roteiro: John Woo
Elenco: Yun-Fat Chow, Tony Chiu-Wai Leung, Teresa Mo, Philip Chan
Gênero: Ação, Policial
Duração: 128 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=jAtxZHuJNW4
Crítica | Deadpool - Uma História de Amor
Em 2009, Deadpool pintou nos cinemas pela primeira vez. A antecipação foi tremenda por X-Men Origens: Wolverine, projeto inicial da Twentieth Century Fox em realizar diversos filmes de origem para os integrantes dos X-Men. Logo a decepção ao ver a maneira como o personagem foi retratado no longa foi algo absolutamente ridículo. Porém, a semente da ideia de um filme solo para Deadpool foi plantada na cabeça de Ryan Reynolds.
A luta por um filme que fosse fiel às características violentíssimas foi árdua por conta da certeza da classificação indicativa alta que o filme receberia que, por consequência, restringiria o público. Porém, graças a uma proposta irrecusável e do desempenho surpreendente de uma sequência-teste que ilustrara o teor do filme, o estúdio deu luz verde para a louca adaptação do quadrinho. Sim, demorou, mas finalmente os fãs do mercenário tagarela receberam o filme que tanto pediam. Deadpool chegou explodindo tudo.
Apesar do roteiro de Rhett Reese e Paul Wernick tentar fugir da fórmula dos novos filmes de heróis estreantes no cinema, infelizmente, ele acaba um tanto preso nisso – apesar de ser um longa bastante consciente da sua situação. Para tentar quebrar o padrão, os roteiristas e o diretor Tim Miller começam o longa com a potente sequência de ação que ocorre na rodovia que foi explorada incessantemente pelos trailers.
Nessa primeira cena, o cineasta já apresenta o tom que guiará o filme inteiro: verborragia chula, piadas cretinas, zoeira intensa, sexo e muita violência. Ou seja, o roteiro é fiel a natureza do personagem. Logo após, o filme aposta em uma narrativa não linear inserindo diversos flashbacks para apresentar a história de origem do anti-herói. Aqui o longa começa a seguir o “manual” do filme de herói apenas derivando no contexto mais correto dos outros filmes. Ou seja, é uma história de origem às avessas que centra no romance hardcore do mercenário Wade Wilson com Vanessa – uma das melhores sequências do longa. O interessante nessa característica é que não há cisão de personalidade no que tange o alter ego com o personagem como ocorre em Batman/Bruce Wayne ou Peter Parker/Homem-Aranha.
Wade é Deadpool mesmo antes de vestir os trajes do personagem. Ryan Reynolds incorpora bem o papel tanto fantasiado ou não. Ele entende que Deadpool depende muito de sua expressão corporal e inova com a modulação da voz sempre surpreendente. Ele se movimenta com marra e executa a ação com graciosidade. O maior acerto se dá com os efeitos visuais que animam os olhos e o cenho do personagem quando ele se torna Deadpool. Desse modo, o diretor consegue frisar olhares irônicos, surpresos, apaixonados, impacientes que marcam a comédia tão presente no longa.
Nesses trechos de flashback, os roteiristas estabelecem até mesmo certo drama por conta da ameaça do câncer e do iminente fim da vida de Wade, porém é apenas um trabalho básico de narrativa: serve apenas como motivação para o protagonista negociar o tratamento que o transforma em mutante. Nisso, finalmente os antagonistas Ajax e Angel Dust são apresentados. Infelizmente essa maldição que ronda filmes de super-heróis tirados dos quadrinhos Marvel com vilões descartáveis, subdesenvolvidos e superficiais se faz presente em Deadpool.
Dois conflitos guiam o filme inteiro, apesar de um terceiro ser apresentado com a participação de Colossus – finalmente com o sotaque russo, e Negasonic Teenage Warhead em suas tentativas de recrutar o desbocado protagonista para o time dos X-Men – é interessante notar o esforço do estúdio em incluir o personagem nesse novo universo cinematográfico que estão criando derivado da onda pioneira da Marvel Studios. Os outros dois conflitos majoritários são igualmente pouco inspirados. Um é legitimo concentrando-se no medo de Wade em se apresentar para Vanessa com sua face deformada – algo derivado do fabuloso O Homem Elefante, mas acompanhado de doses cavalares de humor. O segundo guia toda a relação do protagonista com o vilão principal, Ajax, em uma guerra de egos estúpida sobre o nome do antagonista. Infelizmente, com uma motivação infantil e uma reviravolta muito previsível, Ajax serve apenas como um capanga que coloca a mocinha em perigo. O personagem mesmo é concebido com muita limitação: traz diálogos expositivos sobre a processo de mutação artificial e força o antagonismo com caricaturas. Ed Srein fez o que pôde, mas o personagem é podre.
A interação de Deadpool com seus aliados também não foge do básico, além de variar um pouco o humor. Graças a curta duração do filme, não há como ele entrar na repetitividade com seus aliados. Com Colossus e Negasonic Teenage Warhead temos vislumbres mais inspirados sobre a dicotomia do heroísmo que sustentam melhor a relação deles com o protagonista. Já com Al Cega e Fuinha, as coisas tendem a ficar mais limitadas com uma comédia que raramente funciona.
Aliás, é curioso notar como o texto dos dois roteiristas gosta de alfinetar diversas fórmulas usadas por filmes desse subgênero, mas acaba usando as mesmas para concluir o filme. Assim que finalmente nos livramos da longa cena da rodovia e dos flashbacks, o longa passa a virar um pequeno festival de clichês contanto, até mesmo, com um clímax solucionado por um descarado deus ex machina. Apesar dessa hipocrisia, a segunda metade mantém o tom divertido e repleto de referências pop contemporâneas nos diálogos rápidos. Aliás a comédia presente é muito boa, apesar de cansar depois de um tempo. De cada dez palavras que Deadpool fala, onze são piadas, então dá para ter a noção de que o filme não se leva a sério em sua verborragia. O melhor da comédia também vem de referências que ridicularizam os papéis fracassados de Ryan Reynolds, de uma infinidade de filmes da gama do estúdio – incluindo os X-Men, além de constantemente relembrarem o fato de que o filme é barato.
Isso não é frisado à toa. Deadpool realmente é um filme “barato” por conta da violência explícita, do palavreado e da nudez presente, afinal nenhum estúdio aposta milhões de dólares em filmes que certamente recebem a classificação R nos EUA. Nos burburinhos vindos dos confins da internet, o boato é de que o filme tenha custado por volta de 35 a 50 milhões dólares: um orçamento tímido perto dos 350 milhões de Batman vs. Superman. Obviamente isso reflete no filme, mas pela competência de Tim Miller isso pode passar despercebido aos olhos de muita gente.
O orçamento apertado limita as cenas de ação. As pouquíssimas que existem – temos apenas duas que podem ser consideradas de fato como ação grandiosa – são dilatas ao extremo como no caso da sequência da rodovia. Ao menos, todas são inspiradas ou envolvem milagres da montagem para conferir algum atrativo para as cenas menores. Já nos efeitos visuais, boa parte deles são bem feitos. Apenas no clímax que a qualidade cai significantemente. O visual do longa não foge muito dos tons dessaturados e acinzentados na paleta de cores, embora a iluminação seja competente. Uma pena que o visual, um dos maiores fatores de atmosfera que um filme possa receber, seja tão morto para um personagem cheio de vida.
Por outro lado, o design de produção é dez vezes mais inspirado do que a fotografia do longa sendo vital para emplacar diversas piadas desde bonequinhos até anotações em papel nas paredes. Na verdade, são tantos detalhes espalhados nos cenários que há muita coisa para notar em uma primeira exibição. Toneladas de referências e capricho estético nos cenários de Deadpool.
Apesar de ser iniciante em longas metragens e ser completamente desconhecido, Tim Miller mostra a que veio com Deadpool. Graças a certa liberdade do estúdio o diretor tem competência em seu trabalho já que ele entende bastante o personagem assim como teve muita colaboração de Ryan Reynolds e dos roteiristas. O filme começa com uma excelente abertura de créditos iniciais que fogem do padrão, assim como apresenta um belíssimo plano sequência que explora um momento congelado da cena de ação que vem a seguir denotando a loucura que ronda o personagem.
Aliás, Miller tem grande apreciação com planos em slow motion a fim de deixar o personagem com maior pinta de fodão enquanto mata deliberadamente. Ele também incorpora as características que mais marcam o personagem: as brincadeiras com metalinguagem, autoconsciência sobre sua natureza fictícia e quebras de quarta parede. O trabalho é bem feito, muito orgânico e não assusta os desavisados que não conhecem os quadrinhos. O ápice criativo centra numa cena genial onde o personagem faz uma contagem regressiva da munição restante de suas armas. Porém Miller nunca se afasta da margem de segurança nessas questões. Mesmo em sua grande ousadia, Deadpool trilha muito no caminho seguro que dá a certeza do sucesso.
Deadpool é um ótimo filme que não decepciona quem estava com grandes expectativas para a redenção do personagem nos cinemas. As piadas de humor negro, a ação violenta, o teor sexual, o palavreado forte certamente deixará todos satisfeitos. Porém não esperem nada revolucionário na narrativa. Deadpool é um filme sobre uma história de amor, querendo ou não, e faz uso intenso do manual dos roteiros de longas do nicho, apesar da tentativa um tanto falha em subverter o gênero. Um filme que tem valor por quebrar o padrão dos filmes de super-herói, pela coragem de clamar sua existência entre uma indústria que começou a apresentar sinais de cansaço. Ao menos ele tem algo diferente para oferecer.
Espero que no próximo longa, os gênios por trás do marketing tenham a oportunidade de colaborar criativamente na história do filme, pois o que ele certamente precisará é dessa audácia e irreverência criativa que explodiu nas peças publicitárias que tornaram esse bom filme, um fenômeno mundial.
Deadpool (EUA, 2018)
Direção: Tim Miller
Roteiro: Rhett Reese e Paul Wernick baseado nos personagens da Marvel
Elenco: Ryan Reynolds, Morena Baccarin, T.J. Miller, Brianna Hildebrand, Leslie Uggams, Stefan Kapicic, Ed Skrein, Gina Carano
Gênero: Comédia, Ação
Duração: 108 min
https://www.youtube.com/watch?v=Q9X-bAE8KTc
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Crítica | O Último Magnata - Elia Kazan, o Peixe Fora d'Água
Eliz Kazan teve uma boa carreira. Explodindo sucesso nos anos 1950, acabou sofrendo na década seguinte com a evolução da indústria cada vez mais desesperada em encontrar meios de driblar a ameaça da televisão permitindo o nascimento da Nova Hollywood comandada por jovens audaciosos que uniam as técnicas revolucionárias de outros movimentos cinematográficos com maior controle autoral sobre a direção e a narrativa.
Tendo sido mantido pelos estúdios, Kazan sobreviveu com filmes menores que sempre viveram à sombra de seus maiores sucessos como Uma Rua Chamada Pecado, Sindicato de Ladrões e Vidas Amargas. Já tendo experimentado continuadamente o dessabor de uma fama menor, Kazan inevitavelmente decidiu se aposentar. Mas ele sairia da indústria com um bang. Pelo menos era o que pensava.
Trabalhando novamente com uma adaptação de um livro, Kazan ousou ao elaborar seu último longa justamente no livro incompleto do lendário F. Scott Fitzgerald: O Último Magnata. Se tratando de uma obra que envolve a metalinguagem de um sistema industrial de cinema que ele próprio viveu durante suas décadas de ouro, Kazan tinha basicamente tudo para criar um novo clássico, mas não foi bem isso o que aconteceu.
Estafa Criativa
Harold Pinter adapta o pequeno livro de Fitzgerald apresentando a vida intensa do produtor Monroe Stahr (Robert De Niro) que praticamente consome todo o tempo do seu dia em busca de tornar o estúdio no qual trabalha o mais produtivo e bem-sucedido de toda Hollywood. Chegando a comandar mais de quinze produções paralelamente, além de ser obrigado a conter egos inflamados, Stahr leva sua vida solitária de modo quase automatizado.
Porém, sua rotina intensa de pequenos duelos estressantes é quebrada quando conhece uma misteriosa mulher que se parece assustadoramente com a filha de seu chefe. Atraído pela aura intrigante de Kathleen Moore, Stahr tenta engrenar um amor revolucionário em sua vida enquanto abdica da paciência para seu trabalho impossível.
Já por ser uma obra incompleta no tratamento original, há um grande desafio para o roteirista e também para Kazan em trazer uma narrativa mais amarrada apesar de ser característica do cinema da época trabalhar com histórias mais livres e finais abertos. Isso de fato acontece aqui, com uma conclusão poética que chega até mesmo a referenciar o maior filme do cineasta, mas também se percebe que O Último Magnata é um longa de ideias prematuras muito interessantes.
De início, Kazan elabora uma transformação poética com a montagem do longa, trabalhando a metalinguagem a um nível excepcional, transitando entre a história de Stahr em seu dia de trabalho com algumas cenas dos filmes clássicos dos quais o homem produz – isso inclui até mesmo um icônico momento envolvendo um longa a la Casablanca. Essas ótimas cenas rendem momentos magistrais de tão cinematográficos, tornando a figura de Stahr uma só com seu trabalho entre a produção e a arte.
Entretanto, apesar de ser uma característica vital do livro, o roteirista tateia o tema da estafa e da iminência da morte de Stahr pelo rito insano de seu trabalho – o personagem é inspirado no produtor dos anos 1930, Irving Thalberg que acabou morrendo jovem pela carga de trabalho insana. Isso é apenas sugerido através de imagens singelas do personagem engolindo comprimidos para continuar funcionando durante o dia – Kazan o associa com um robô até mesmo na movimentação de De Niro. Entretanto, esse ponto que deveria ser principal, é logo esquecido quando o filme se transforma para pior.
Em uma sequência realmente única na História do Cinema, vemos Stahr conhecendo Moore em um jogo visual tão romântico que coloca a esperança do espectador para um nível alto, mas o que vem a seguir é simplesmente decepcionante. As cartas dispostas pelo roteirista são boas e Kazan sempre tenta criar uma atmosfera envolvente para os encontros desse casal completamente sem química e cheio de “carões”.
O romance não funciona pela característica estacionária gélida, de um clima bizarro nada funcional através de diálogos mornos. Basicamente, há pouca “paixão”. Mas Elia Kazan e Pinter não percebe o quão insosso é este núcleo e acabam investindo muitos minutos que logo se tornam intermináveis. A característica psicológica de Moore ser uma mulher de fisionomia muito parecida com a de Cecilia Brady nunca é mencionada ou trabalhada de fato. Kazan apenas sugere que Stahr tenha uma paixão secreta pela personagem, mas que se recusa a admitir para não ser submisso ao colega de departamento, o antagonista Pat Brady (Robert Mitchum)
Choque de Egos
No que O Último Magnata é realmente fascinante, é justamente na relação de Stahr com seus sócios e de suas visitas aos sets de filmagem – trabalho excepcional da direção de arte em entulhar todas as parafernalhas gigantescas necessárias para criar a ilusão do cinema. Nessas jornadas, Stahr mostra sua posição como um verdadeiro gênio do sistema por sua frieza em resolver burocracias do estúdio.
Isso envolve problemas corriqueiros de ataques de estrela de antigas divas da indústria, rivalidade com diretores, pressão com os sócios e uma instabilidade completa com os roteiristas em uma época na qual eles não possuíam sindicatos. Aliás, é justamente durante uma cena nada menos que perfeita que temos o deleite de ver a genialidade de Elia Kazan ao colocar De Niro contando uma história misteriosa para um roteirista incrédulo e descrente com a arte.
Basicamente, Kazan imortaliza uma pequena aula sobre como fazer Cinema e de toda a magia magnética que envolve o espectador. Essa passagem é tão boa que é retomada em uma circunstância criativa na conclusão do longa, na qual o cineasta ousa em quebrar a quarta parede – algo inédito em sua carreira até então.
Apesar desses núcleos menores serem muito interessantes e criativos, é uma pena que a rivalidade com os roteiristas seja trabalhada de modo um tanto confuso. Por exemplo, um ponto vital da narrativa, sobre uma reunião com um dos chefes do movimento grevista, Brimmer interpretado por Jack Nicholson, acontece somente no terceiro ato sendo que esse entrave é mencionado no início da exibição. É simplesmente uma experiência estranha e bastante anticlimática.
Um verdadeiro desperdício considerando que temos De Niro e Nicholson contracenando nas mesmas cenas. Também é pertinente comentar que ao longo do filme inteiro, Kazan é bastante econômico com o uso da trilha musical. As cenas românticas contam apenas com o barulho diegético da natureza praiana da casa de Stahr e outras envolvendo os “duelos” do produtor dependem apenas do magnetismo da atuação brilhante de De Niro. No maior enfrentamento da narrativa, Kazan utiliza o som crescente de uma partida de pingue pongue para refletir toda a perturbação menzal que o protagonista experimenta.
O Gênio do Sistema
O Último Magnata é, surpreendentemente, uma saída bastante digna de Elia Kazan em sua carreira cinematográfica invejável. O diretor criou dois dos maiores filmes da História do cinema americano e ainda conseguiu trabalhar uma despedida exemplar em uma obra que homenageia justamente os anos dourados da indústria que ele mesmo participou quando jovem.
Em imagens regadas de nostalgia, é apenas uma pena que muito do núcleo amoroso exageradamente longo seja tão ineficaz quando claramente há um filme melhor deixado em escanteio. Mesmo assim, é uma obra que merece ser conferida para contemplar o singelo crepúsculo de um dos maiores dramaturgos da Sétima Arte.
O Último Magnata (The Last Tycoon, EUA – 1976)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Harold Pinter, F. Scott Fitzgerald
Elenco: Robert De Niro, Robert Mitchum, Tony Curtis, Jeanne Moreau, Jack Nicholson, Theresa Russell, Ray Miland, Ingrid Boulting
Gênero: Drama
Duração: 123 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=PT4120g3_To
Crítica | Vidas Amargas - A Marca do Mal-Amado
Os anos 1950 continuariam sendo generosos para Elia Cazan mesmo depois de cravar os enormes sucessos de Uma Rua Chamada Pecado e Sindicato de Ladrões. Apesar de não fazer parte do panteão das obras-primas do famoso dramaturgo, Vidas Amargas é por si um longa bastante histórico, pois traria a primeira interpretação em grandes produções hollywoodianas do lendário James Dean.
Kazan traria mais uma grande adaptação de um clássico da literatura americana com Vidas Amargas. O enorme romance de John Steinback atravessa décadas contando com linhas narrativas paralelas em uma história verdadeiramente burocrática. Praticamente inadaptável, Kazan decidiu formar um filme inteiro diante de uma característica perturbadora bastante única do livro e adaptar livremente diversas das outras partes. Enquanto o resultado em geral é ótimo, fica nítido que esta ideia fraqueja conforme o longa avança.
As Escolhas de um Homem
A adaptação de Paul Osborn pega o elemento mais curioso do livro: o destino misterioso da mãe do protagonista Cal Trask (Dean), filho do rico fazendeiro Adam (Raymond Massey). O problemático rapaz, aparentemente, vive seus dias vadiando na cidade, perseguindo uma nada simpática senhora dona de um bar local. Mesmo com a desaprovação de todos, incluindo de seu querido irmão Aron (Richard Davalos) e de sua cunhada Abra (Julie Harris). Entretanto, suas suspeitas acerca da mulher misteriosa logo se comprovam, trazendo verdadeiro desiquilíbrio para toda sua família.
Osborn concentra muito desse drama apenas a cargo da encenação de Kazan. Como todo bom roteiro, os personagens são explorados camada a camada, revelando novas características até nos minutos finais da obra. Por isso, apresentar justamente o protagonista em uma dúbia perseguição contra uma senhora, já é algo bastante inusitado para o cinema da época – em linha com a pegada subversiva que Kazan seguia com seus filmes.
Dentre os três longas, este certamente é o que conta com o protagonista mais difícil, afinal Dean foi perito em trazer figuras jovens perturbadas repletas de ódio reprimido aliadas de uma docilidade curiosa. Cal é justamente isso, um pequeno mistério bastante compreensível. O mistério envolvendo sua mãe é o cerne de uma procura eterna pelo afeto do pai que praticamente o ignora, sempre o preterindo diante de Aron, o filho “bom” totalmente idealizado.
O conflito basicamente é uma releitura inteligente sobre a tragédia do Éden, trazendo a rivalidade entre Caim (Cal) e Abel (Aron) para conquistar o amor de Deus resultando no fatricídio de Caim contra seu irmão. Apesar de não ser exclusivamente o conflito mais importante, a relação entre Cal e Aron é funcional por conta da presença de Abra que logo se vê envolvida entre dois amores, além dos arquétipos se inverterem conforme o filme chega à sua conclusão.
Essa mudança de comportamento é melhor trabalhada em Cal, afinal vemos toda a batalha do personagem em se tornar uma pessoa boa, renegando a natureza malévola que outros cidadãos injustamente atribuem a ele, uma pessoa claramente perturbada por não poder contar com a ajuda de ninguém. Nesse cenário, Cal é um protagonista excelente, pois ele guia toda a narrativa com base nas suas escolhas: procurar a mãe, empreender, almejar amores impossíveis. E a cada conquista transformadora, Cal acaba machucando a vida de terceiros.
Aliás, da mesma forma que Uma Rua Chamada Pecado trazia um retrato familiar totalmente aniquilado, temos um trabalho tão visceral quanto em Vidas Amargas já que Osborn mostra os Trask como uma família disfuncional, mas vivendo sob um véu de normalidade. É curioso como o filme aborda o tema do casamento arruinado em uma época na qual o “sonho americano” ainda era forte. Mas mais curioso ainda é o fato de Adam ter sido abandonado pela mulher, sendo obrigado a sustentar os dois filhos enquanto trabalhava no campo.
Vanguarda Clássica
Isso pode ser considerado vanguardista até mesmo para os padrões da Hollywood contemporânea, então imagine só na época. A polêmica é ainda maior no romance, já que a esposa de Adam simplesmente decide virar a maior prostituta da cidade, negando o carinho que o marido lhe ofereceria no lar, pois acreditava que seria um aprisionamento insuportável. Infelizmente, como Osborn se concentra somente em desenvolver Cal, o longa acaba sem muitos dos detalhes importantes para justificar melhor certas mudanças e motivações para outros personagens secundários.
É uma pena que isso ocorra e debilite o longa quando nitidamente há diversas longas sequências que poderiam ser cortadas ou reduzidas para dar lugar a um envolvimento maior de Cal com seu irmão e pai. Isso é desperdiçado para mostrar uma euforia pré participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial e na perseguição de imigrantes alemães na cidade. Esse desvio de narrativa, no final, pouco importa para o saldo geral do longa.
A força narrativa somente é retomada durante o cruel terceiro ato, repleto de desgraças premeditadas até descambar a um forte melodrama eficiente para a cena final na qual Cal e Adam têm uma conversa honesta depois de anos. Ambos são totalmente transformados pelas escolhas do protagonista que só encontrou a reconciliação na dor, na desgraça.
Já na direção, Kazan realiza um de seus trabalhos mais expansivos, já que a produção recebeu um bom orçamento, além de ser filmada em cores. A escolha já é justificada em primeiro momento nos créditos iniciais nos quais o diretor mostra paisagens paradisíacas do Vale de Salinas, associando o lugar com um pedaço bonito do Éden. Seu esforço de encenação marcado pela movimentação certeira dos atores pelos cenários enquanto a câmera passeia imperceptivelmente continua apurado.
Isso também é demonstrado pelo talento inegável da decupagem da perseguição inicial, elaborada sempre em profundidade de campo com Cal espreitando a senhora a cada curva das esquinas. O mesmo ocorre na sustentação dos planos em momentos cruciais de suspense nos quais a fotografia se transforma, trazendo enormes sombras projetadas pelo protagonista, simbolizando toda a angústia e amargor que existem dentro de si – algo relativamente inspirado nas sombras do Expressionismo Alemão.
Durante a cena final, apenas com enquadramentos simples, o mesmo tema é resgatado, mas por conta da direção muito competente dos atores, Kazan cria uma atmosfera tão marcante que chegou a influenciar obras contemporâneas como A Origem. A encenação comanda tudo para o dramaturgo totalmente interessado em retirar o melhor desempenho possível de seu elenco. O cineasta também parte para o inusitado com a inserção de planos holandeses sempre que filma um diálogo conflituoso. Embora o efeito seja já muito antiquado, por vezes realça o desequilíbrio naquelas relações, mas a repetição desses enquadramentos acaba incomodando pelo exagero.
Há Alguma Lei?
Vidas Amargas não é um filme perfeito, tampouco uma obra-prima, mas certamente os acertos comportados por uma estreia explosiva de James Dean, além de uma narrativa intrigante satisfatoriamente desenvolvida pelo talento de Elia Kazan em arquitetar cenas memoráveis, se torna um dos filmes do mais alto escalão da carreira do diretor. O emocionante drama dessa família destruída e da redenção amaldiçoada certamente merece ser redescoberto.
Vidas Amargas (East of Eden, EUA – 1955)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: John Steinback, Paul Osborn
Elenco: James Dean, Julie Harris, Raymond Massey, Burl Ives, Richard Davalos, Jo Van Fleet
Gênero: Drama
Duração: 117 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=IqVoIQ5UsT8
Crítica | Sindicato de Ladrões - A Batalha mais Solitária
A fome de Elia Kazan pela revolução hollywoodiana não parou após cravar o enorme sucesso de Uma Rua Chamada Pecado. Após trazer à tona uma história que desconstrói o sonho da família americana e de arquétipos muito utilizados pela Hollywood Clássica até então, aproximando as narrativas ao espectador comum com uma abordagem trágica muito inspirada pelo Neorrealismo Italiano, Kazan iria muito além com Sindicato de Ladrões que até hoje é considerado como sua maior obra-prima
Retomando a parceria com Marlon Brando, Kazan dessa vez abordaria uma pertinente sobre a corrupção sindical que assombrava – e assombra até hoje, a vida do trabalhador. A polêmica do tema foi tamanha que motivou diversos sindicatos reais a moverem boicotes contra o filme, além de vários terem sido desmantelados por terceiros também motivados pelo tom inspirador da obra.
Crime Institucionalizado
A narrativa de Sindicato de Ladrões vem através do conceito original de Budd Schulberg trazendo a vida de Terry (Brando), um integrante relativamente novo do sindicato corrupto de estivadores do porto local. A mando de Johnny Camarada (Lee J. Cobb), líder dos sindicalistas, Terry chama Joey, um membro pronto a delatar a organização criminosa, para uma emboscada. Acreditando que Joey sofreria apenas um susto, Terry fica surpreso e horrorizado ao descobrir que seu amigo fora assassinado.
Descrente de que estava fazendo a coisa certa, pouco a pouco ele se afasta do sindicato e descobre um novo amor, Edie (Eva Marie Saint), a irmã de seu amigo assassinado. Ao se aproximar da mulher e do padre Barry (Karl Malden), figura totalmente contrária aos sindicalistas corruptos, Terry acaba se tornando o próximo alvo de seus antigos colegas.
Apesar de ir à fundo no psicológico humano como fez em Uma Rua Chamada Pecado, o foco de Kazan aqui é certamente monumental por bater de frente e denunciar um problema atual na época. Acima de ser uma ficção, portanto, Sindicato de Ladrões é um filme social – e um de alta qualidade. A começar, temos personagens interessantes, apesar de idealizados em maioria.
O mais complexo certamente é Terry que, em primeiro momento, pode enganar muito bem o espectador através do retrato brucutu, insensível e pragmático que Brando cria. Através do contato com Edie – essa sim muito idealizada como a personificação da bondade e martírio, Terry é transformado lentamente até perceber que sua vida cercada de falsos amigos é mais uma das mentiras que ele mantém para si mesmo.
A busca pela verdade é um tema trabalhado em aspectos micro e macro no roteiro de Schulberg, pois enquanto Terry encara terríveis verdades que o tornam um monstro, o padre Barry tenta convencer os estivadores negligenciados pelo sindicato a virarem delatores e denunciarem as práticas injustas que ocorrem no porto para a polícia. Apesar desse idealismo permear todos os personagens justos – principalmente com o padre, o roteirista se esforça para oferecer diversas características únicas para o romance de Terry com Edie.
Ocorre que ambos personagens são prisioneiros de alguma forma e encontram a liberdade através desse relacionamento marcado pelos contrastes, além do pérfido segredo que Terry esconde sobre ter sido o responsável, indiretamente, pelo assassinato do irmão da namorada. Como temos uma narrativa de múltiplos focos narrativos, muito da narrativa é diluído com cenas para dar prosseguimento na história.
Nessas sequências, Schulberg, através de diálogos expositivos, traz explicações sobre o modus operandi dos corruptos de forma similar a uma narrativa mafiosa, além de outras mostrarem o pesado impacto psicológico que o sindicato comporta contra todos os trabalhadores totalmente acovardados temendo pelo pior. Quando surge alguma fagulha de esperança, o terror da opressão logo surge através de cenas icônicas nas quais Kazan exibe as táticas cínicas e perversas do grupo.
A luz da catarse narrativa se dá em uma das cenas mais icônicas do longa, durante uma conversa tensa e repleta de emoções complicadas entre Terry e seu irmão mais velho, Charlie. Em apenas uma cena, o passado dos dois se torna extremamente relevante, além de justificar o constante estado de negação que o protagonista vive – há características de seu passado que poderiam ter tirado Terry de uma realidade nada agradável.
Com uma narrativa já bastante forte que até mesmo conversava com a vida pessoal polêmica de Elia Kazan, já era esperado que o diretor fornecesse um dos melhores desempenhos criativos de sua carreira. A começar, Kazan foge ao máximo das internas que marcaram tanto seu trabalho em Uma Rua Chamada Pecado. Aqui o que interessa é captar o realismo das locações e de cenários decadentes, frios e solitários nos quais Terry passa suas tardes.
Em um inteligente foreshadowing, Kazan mostra Terry e Edie no terraço do prédio onde fica o pequeno pombal do falecido Joey. Enquanto Edie se aproxima, Kazan mostra diversos enquadramentos com antenas estranhamente posicionadas em formato de crucifixos. A simbologia funciona em diversos níveis, já que é possível interpretar aquilo como um prenuncio de uma possível morte martirizada de Terry, da relação amorosa do casal ter iniciado sob o véu mórbido de uma morte e, por fim, sobre um sentimento da indústria, da morte do Cinema que a cada perdia popularidade para a televisão.
Apesar de abusar bastante da ótima trilha musical de Leonard Bernstein, Kazan também trabalha a poesia cinematográfica a nível sonoro – algo que é sempre muito de elaboração difícil. Em uma cena crucial entre Terry e Edie, Kazan utiliza os efeitos sonoros altos das buzinas dos navios que estão aportando, refletindo o desespero emocional de Edie ao descobrir uma verdade muito indesejada. É algo simplesmente magistral.
Com essa pegada neorrelista trabalhada através do elegante classicismo da linguagem cinematográfica hollywoodiana, o cineasta elabora um clímax particularmente magistral ao resgatar características próprias do protagonista, além de criar um embate físico entre o bem e o mal, do justo contra a injustiça, da liberdade versus a tirania. O uso da câmera subjetiva durante a caminhada final de Terry para um futuro melhor conquistado através de muita luta, apenas agrega ainda mais nesta cena histórica.
O Poder do Um
Elia Kazan conseguiu cravar duas obras-primas em questão de apenas poucos anos. O cineasta desafiou agora paradigmas da vida real ao denunciar as problemáticas envolvendo o poder dividido entre grupos de aproveitadores que parasitavam da força do trabalhador comum. Ele apenas prova, aliado de um rigor artístico impecável que viria a inspirar diversos outros filmes dos anos 1970, que a força e moral de apenas um indivíduo pode muito bem inspirar as massas para desafiar os falsos donos do poder.
Sindicato de Ladrões (On the Waterfront, EUA – 1954)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Budd Schulberg, Robert Siodmak
Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, Eva Marie Saint
Gênero: Drama
Duração: 108 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=QOLHbQjtSFs
Crítica | Uma Rua Chamada Pecado – A Completa Destruição do Romance Hollywoodiano
Elia Kazan era um diretor intrinsecamente ligado ao sistema hollywoodiano. Entretanto, foi apenas em 1950 que conseguiu criar duas de suas maiores obras-primas: Uma Rua Chamada Pecado e Sindicato de Ladrões. Apesar de serem filmes completamente opostos, os dois são bandeiras que refletem o estranho dessabor que a indústria passava em meados dos anos 1950.
Não é preciso vasculhar a fundo para qualquer leitor compreender o temor que os produtores estavam sentindo nessa pós-morte da Era de Ouro Hollywoodiana tanto pelos estragos da Segunda Guerra Mundial e também do papel político do Cinema dos anos 1940. Porém, pior ainda, era que nessa mesma década a indústria seria enfrentada por seu pior rival – uma crise que evolui até hoje: o surgimento da televisão.
Com o desafio de tirar as pessoas do conforto de seus lares, tiros foram disparados para todos os lados e no meio disso tudo, alguma liberdade criativa que permitia revoluções cadenciadas, também surgiu. Trazendo esse amargor interno de uma crise sem precedentes para a indústria cinematográfica, Kazan simplesmente trouxe histórias mais próximas ao drama da vida real americana, se valendo de inspirações tiradas diretamente do Neorrealismo Italiano, mas ignorando toda a proposta estética mais “rudimentar”.
A Bondade dos Outros
Não há dúvidas que assistir a Uma Rua Chamada Pecado é uma tarefa difícil e até mesmo estranha se formos ver o caráter mais expansivo do cinema hollywoodiano de 1950, afinal o longa inteiro praticamente se passa apenas em pouco mais de cinco cenários, além de sofrer pesadamente com a censura americana rigorosa.
O texto é essencialmente teatral e Kazan filma toda a história em um nível de linguagem visual bastante próximo ao do teatro, sustentando planos por longos períodos para discorrer até mesmo cenas inteiras – aqui, impressiona o domínio técnico impecável sobre a câmera e a iluminação para manter a ação fluída conforme os enquadramentos são alterados em tempo real.
Nessa questão de se aproximar do espectador comum, nada melhor do que procurar ótimas histórias escritas para a dramaturgia. É exatamente este o caso que temos aqui. A peça de Tennessee Williams e adaptada por ele próprio e também por Oscar Saul. Preservando praticamente a peça inteira, o filme só tinha a dependência de funcionar com a performance imortal de seu elenco de alto escalão contando com Marlon Brando, Vivian Leigh e Kim Hunter.
A narrativa é concentrada no súbito aparecimento de madame Blanche DuBois (Leigh) na casa de sua irmã recém-casada, Stella (Hunter). Esperando um lugar confortável e modicamente luxuoso para comportar suas necessidades de alto padrão, Blanche se depara com um pequeno apartamento de dois cômodos em um cortiço movimentado em Nova Orleans. Nervoso com a chegada dessa convidada cafona e extremamente falsa, Stanley (Brando), se dedica a investigar o passado da cunhada para logo desacreditá-la e ser ver livre de sua presença. Embora os métodos que o faça não sejam nada agradáveis ou justos.
Williams discute diversos temas centrais em pauta da narrativa, obviamente, verborrágica e regada de monólogos repletos de exposição – uma consequência natural da transposição do texto teatral. Através da repetição confortável em situações diferentes, vemos como há a valorização sobre a bondade, honestidade e força. A graça é que o roteirista se preocupa em trazer esses diálogos que tangem os temas idealizados enquanto Kazan encena verdadeiros caos violentos que ocorrem na casa de Stella.
Por ser um “anti-romance”, Williams visa subverter os valores empregados anteriormente pelo cinema clássico de Hollywood trazendo figuras descontruídas sobre o Marido, a Esposa e a Donzela em Perigo. A começar pelos mais fáceis, Stanley é completo oposto do pai de família do sonho americano, afinal ele é negligente, violento contra a própria esposa grávida e beberrão, apesar de bancar o estilo de vida quase subsistente que Stella e a irmã se acostumam a viver.
A Brutalidade do Querer
Stanley é o personagem mais simples, mas também o mais verdadeiro, pois nunca trai sua palavra, apesar de ser um refém das próprias paixões. O homem não raciocina nem por meio segundo antes de praticar violência doméstica a uma mulher que, apesar de tudo, ele ama verdadeiramente. A crítica de Williams cai diretamente sobre os casamentos apressados e frustrados que marcaram o baby boom dos anos posteriores a Guerra, além de levar a uma taxa tão expressiva quanto de divórcios nos anos 1960.
Já Stella é a frustração completa da esposa do sonho americano. Ela não é subserviente ao marido em integralidade e o confronta diversas vezes para defender Blanche. Igualmente, não há felicidade verdadeira neste casamento marcado por brigas e constantes abusos, mas como ela está grávida, acaba se tornando prisioneira de um bruto apaixonante, mas totalmente perigoso. Como ela é uma das personagens menos expressivas, basicamente se colocando como o fiel da balança entre os conflitos de Stanley e Blanche, acaba se tornando relativamente apagada, apesar de protagonizar uma das cenas mais inesquecíveis da obra.
Já Blanche é a mais complexa e intrigante dos três. Vivian Leigh simplesmente oferece um espetáculo em sua atuação que adora contradizer as palavras elegantes e o estilo pomposo cafona da personagem. De primeiro momento já é possível perceber que há algo muito errado com a mulher, já que tudo soa ser falso, desde suas histórias até ao modo de se vestir. Toda a narrativa é centrada nela e nas surpresas inglórias de seu passado que é revelado camada a camada.
A trágica personagem recebe uma roupagem irônica de “donzela em perigo” aguardando por seu salvador na casa tenebrosa de sua irmã. Ela molda a realidade conforme seus desejos e pela proeza dos diálogos ardilosos, acaba até mesmo conquistando o espectador pelo magnetismo inegável tanto do talento de Leigh quanto da escrita exemplar para ela. É simplesmente fascinante.
Com isso, Williams, pouco a pouco, subverte tudo: a personagem, seu passado nada honroso, seu novo relacionamento amoroso com Mitch (que logo se revela um verdadeiro hipócrita) até a culminação de seu destino infeliz. A única coisa que Williams preserva é o abuso constante de Stanley, totalmente obstinado em fazer da mulher, uma verdadeira louca. Isso cobre muito de Blanche, mas não o total. A personagem incômoda tem muito a oferecer para qualquer espectador que nunca tenha visto essa obra-prima de Kazan.
O Desafio Cinematográfico
Por se tratar de uma narrativa escrita propriamente para o teatro, é de se indagar como Elia Kazan faz da Segunda Arte, a Sétima Arte. Apesar de preservar muito da beleza cênica do Teatro, priorizando sempre a movimentação dos atores ante a movimentação da câmera, há momentos verdadeiramente cinematográficos em Uma Rua Chamada Pecado. Um dos primeiros e, talvez, o mais memorável, se concentra na primeira briga feia de Stanley com Stella.
Ao buscar refúgio na vizinha de cima, Stella escuta os berros de Stanley a chamando, clamando para que volte a casa, volte para ele. Kazan filma essa pequena cena de modo tão apaixonado, colocando Brando com roupas rasgadas e com cara de choro enquanto Stella desse as escadas a passos lentos portando uma expressão nada amigável. A cena impacta tanto pelo suspense por conta desse ser realmente o único momento que a personagem tem algum poder sobre seu marido, mas descarta ao perdoá-lo.
Já em diversas outras ocasiões, vemos como Kazan e seu diretor de fotografia operam a iluminação, tornando a casa de Stella cada vez mais sombria através de pequenos feixes de luz até chegar a um ápice assustador quando Blanche tem seu diálogo derradeiro com Mitch. Kazan até mesmo faz uma tirada irônica ao envolver a personagem sempre em luzes difusas com um quê das femme fatales do Cinema Noir, reforçando a mensagem exposta em diálogo sobre as suas verdadeiras intenções.
O mesmo ocorre com a extensão do cenário principal. A cada cena, conforme Blanche se sente cada vez mais encurralada, o cenário diminui fisicamente ficando mais apertado. É um belo truque para refletir o desespero interno da personagem. Além disso, o apreço pelo realismo é demarcado pela encenação em camadas feita por Kazan, procurando sempre utilizar a profundidade de campo para mostrar transeuntes através da janela. A mesma atenção aos detalhes é demarcada na trilha musical sempre presente que por diversas vezes pontua as viradas mais dramáticas da obra.
Campos Elíseos
Mesmo sob pesada censura que deixa as maiores violências de Uma Rua Chamado Pecado apenas na sugestão, Elia Kazan, seu elenco magistral e o roteiro praticamente impecável de Williams, tornaram essa obra em um marco do cinema americano por ousar quebrar paradigmas a ponto de ser relembrado até mesmo em novas produções totalmente inspiradas por ele como foi o caso de Blue Jasmine. Nessa rua de desejos, o sonho de ser um campo elísio sempre está distante, intangível e cruel. Assim como uma miragem.
Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire, EUA – 1951)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Oscar Saul, baseado na obra de Tennessee Williams
Elenco: Vivian Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Malden, Rudy Bond, Richard Garrick
Gênero: Drama
Duração: 122 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=u9YgJjSCT08
Crítica | Thanos Vence - A Matança Infernal de Thanos
O primeiro ano de All New, All Different Marvel certamente não foi uma experiência memorável para a editora, mas ao menos rendeu a catarse para uma nova “renovação” ao título menos agressivo da Marvel Legacy ou Marvel NOW 2.0 como é popularmente chamada pelos leitores. Como a revista mensal do Thanos era inédita, a série não sofre uma “retomada” dos números das edições durante essa época de transição.
Logo, o arco Thanos Vence englobou as edições 13 a 18 da mensal, além de trazer uma nova dupla para comandar o quadrinho. Sai Jeff Lemire e Mike Deodato Jr., entra Donny Cates e Geoff Shaws, nomes particularmente pouco conhecidos no mercado. A escolha da Marvel em apostar justo em artistas desconhecidos para um de seus títulos melhores sucedidos nessa época de reformulação surpreendeu muita gente.
Conhecendo o Eu
Mas certas mudanças vêm para o melhor, pois Thanos Vence é o ápice completo desta mensal, além de ser uma das melhores histórias já escritas e desenhadas para o icônico personagem. Seguindo diretamente os eventos deixados por Lemire, vemos o personagem totalmente forte se divertindo em torneios de gladiadores em diversos sistemas para saciar sua sede de sangue em busca de um oponente realmente forte – a Senhora Morte é um assunto superado para Thanos depois dos eventos de God Quarry.
Em um pontapé inicial fortíssimo, após algumas páginas repletas de violência focando nos duelos do Titã, Cates apresenta um novo personagem neste universo: o Motoqueiro Fantasma Cósmico. Em questão de poucos balões de diálogo, já dá para compreender o quão promissor esse personagem é – tanto que receberá sua mensal em julho deste ano. Se valendo de um design fenomenal criado por Shaws, o Motoqueiro Fantasma é um personagem curioso, pois pela sua existência ser tão antiga (como entenderemos logo a seguir), possui uma dose generosa de insanidade repleta de tiradas cômicas muito mais eficazes que as vistas com outros personagens cômico-insanos a la Deadpool na editora.
O fato desse encontro inusitado é, no mínimo, desconcertante, pois o Motoqueiro rapidamente consegue subjugar Thanos e o avisa que ambos viajarão milhares de anos para o futuro através de um fragmento precioso da Joia do Tempo. Chegando nesse local perdido no tempo e espaço, Thanos descobre que está em uma Terra totalmente dizimada por ele próprio. Nesse encontro bizarro, o vilão é solicitado por ele mesmo, já bastante envelhecido, para ajudá-lo em uma tarefa inglória: eliminar o último inimigo na face do Universo.
Com essa conquista, Thanos finalmente poderá casar a Senhora Morte, seu desejo mais antigo e pessoal. E somente assim o vilão também poderá retornar ao passado.
De imediato, a premissa é, no mínimo, instigante. As chances de termos algo especial ou desastroso são simétricas, afinal o clichê do ter um personagem do presente conhecendo seu eu do futuro não é exatamente uma enorme novidade, mas curiosamente, nunca havia sido trabalhado justamente com Thanos. O encontro entre esses Titãs, um repleto de raiva e poder, enquanto outro já é mais sábio, mas totalmente perturbado por nunca conseguir conquistar a Morte para si.
Apesar desse arco necessitar de alguns volumes a mais para realmente fazer jus a ideia e ao cenário curioso, Cates consegue sustentar um ritmo insano de acontecimentos e novidades, explorando satisfatoriamente essa linha do tempo alternativa em artes incríveis mostrando toda a violência insana que Thanos comete contra todo o Universo. O roteirista também se preocupa em explorar basicamente as origens do vilão, conforme estabelecido em Thanos Rising por Jason Aaron, a fim de relembrar o passado amaldiçoado do Titã. Isso é transmitido novamente pelo narrador bem-humorado que suspeito ser o Motoqueiro Fantasma – ele até mesmo ganha uma edição inteira para contar sua própria história e os três pactos demoníacos que fez ao longo da existência.
A relação entre os Thanos também é bem trabalhada, principalmente com diálogos envolvendo a obsessão eterna dos vilões com a Morte. O roteirista traz novidades a todo momento, incluindo revelações pesarosas sobre o destino de alguns dos Vingadores, assim como fornece uma surpresa totalmente icônica para o embate final entre Thanos e seu oponente misterioso. São páginas que enchem os olhos pelo dinamismo cinematográfico da ação e da duração saudável dessas sequências agitadas.
Cates faz um trabalho até mesmo muito acima da média no encerramento enigmático do fascículo final que traz uma conclusão digna para o período que a Marvel dedicou na mensal de seu maior vilão.
Paixão de um Destino Trágico
Donny Cates realmente conseguiu trazer uma história excelente para Thanos criando conflitos épicos, além de mexer com a linha temporal da editora livremente sem precisar se preocupar com consequências. Nesse cenário sem limites e totalmente insano, o roteirista teve espaço para deixar sua criatividade brilhar. Uma pena que sua fase restringiu a apenas um arco, mas, por outro lado, Cates conseguiu emplacar seu nome no mercado, além de ter conquistado a oportunidade de trabalhar com um dos personagens mais interessantes que já nas HQs da Marvel: esse bendito Motoqueiro Fantasma totalmente retrabalhado.
Thanos Vence (Thanos Wins, EUA – 2017)
Roteiro: Donny Cates
Arte: Geoff Shaw
Edições: 13 a 18, Anual 1
Editora: Marvel
Crítica | 2046: Os Segredos do Amor - O Desejo de ser Amado
Ninguém estava preparado para o clássico instantâneo que se tornaria Amor à Flor da Pele. Não só os espectadores e a crítica especializada que premiou a grande beleza da obra, mas também o próprio realizador, Wong Kar-Wai, não conseguiu esquecer a triste história de amor que criou com tanto zelo narrativo embalado em uma proposta estética realmente única.
Sequências geralmente funcionam como um verdadeiro pesadelo para todo criador, pois o temos de a obra ficar aquém do original é sempre muito verdadeiro e, na maioria dos casos, o pior acontece. Mesmo assim, Kar-Wai apostou que a história de Chow Mo-wan ainda renderia mais um belo filme.
Dito e feito, eis que nasceu 2046 – Os Segredos do Amor. Apesar de ser uma sequência direta de Amor à Flor da Pele, Kar-Wai forneceu estéticas totalmente distintas para os dois longas, chegando até mesmo a ousar em sequências poéticas sci-fi como uma metáfora para os males que o protagonista reserva em relação ao seu caso amoroso anterior.
Amores Roubados
A essa altura, com dois dos melhores romances do cinema contemporâneo, já nem é preciso afirmar que Wong Kar-Wai se trata de um verdadeiro gênio para retratar todas as belezas e complicações em um relacionamento amoroso. Aqui, o roteirista/diretor apresenta a vida de Chow Mo-wan depois do fracasso de seu proto-relacionamento com a sra. Chan. Lutando para superar o amargor de ter conhecido o amor verdadeiro e não ter batalhado para conquistá-lo, Chow passa seus dias escrevendo novas ficções para o jornal enquanto se envolve diariamente com prostitutas. Até que uma delas se apaixona por ele.
De início, 2046 é um filme confuso pelas linhas temporais distintas que o diretor deseja trabalhar. Uma delas é a da ficção dentro da ficção, adaptando uma história escrita por Chow como uma tentativa de exorcizar todos seus demônios em relação as aventuras amorosas que ocorreram no quarto 2046 do motel do filme anterior. Nitidamente sendo o elo mais fraco do filme, apesar de haver grande investimento por Kar-Wai, essa historieta intermitente logo desaparece para dar continuidade aos eventos de Amor à Flor da Pele durante a década de 1960.
A abordagem visual é muito mais distinta, já que o personagem não está mais aprisionado em um relacionamento angustiante com pouca perspectiva de dar certo, apesar de ser tão intenso. Agora se trata de um renascer para Chow e, portanto, as cores outrora de vermelho tão intenso, se refugiam em solenes verdes repletos de desejo. Em muitas camadas, todo o discurso visual de 2046 ronda os espectros de tons verdes – assim como Hitchcock utilizara no genial Um Corpo que Cai. Aliás, este é um longa que dialoga em alguns níveis com o clássico do cineasta britânico.
Kar-Wai também cessa com a estética restritiva de enquadramentos apertados em corredores ou molduras criadas através do próprio design dos cenários. Tudo aqui é mais livre, leve e solto, com recuos mais generosos e enquadramentos menos fixos de outrora. Toda essa transformação é logo baseada neste contraste absurdo entre o visual das duas obras que, mesmo parecendo uma evolução natural, são bastante distintas – evidente que é necessário ter assistido a Amor à Flor da Pele para entender do que estou escrevendo.
Com essa estética renovada e, particularmente, muito mais agradável aos olhos pelo estilo orgânico – ainda que sacrifique aquelas composições maravilhosas engenhosamente calculadas, a atmosfera de 2046 é tão apaixonante quanto, mas dessa vez de uma chama que já não prefere arder com a mesma intensidade. É um fogo prestes a perecer. Isso é visto pela longa introdução com Chow narrando seus dias de bebedeira e festança para esquecer da mulher de sua vida. Ao se render ao passado, o protagonista parte para outro hotel em busca de um quarto de número 2046. Nisso, acaba conhecendo a prostituta Bai Ling.
Em uma relação ardente, repleta de provocações, Kar-Wai novamente consegue escrever outra história de casais totalmente distinta e repleta de originalidade. Chow, transformado pela dor da ruptura, agora é praticamente um pequeno aproveitador de bons momentos, não se lançando à emoção, ao rush da paixão, como antes. Por conta disso, se torna um manipulador perspicaz, já que seu coração é frio. Isso permite que ele acabe seduzindo Bai a ponto da prostituta, ironicamente, acabar totalmente envolvida na armadilha emocional criada por ele.
Kar-Wai torna Chow um personagem ambíguo desta vez, já que ele nunca pretende enganar a mulher afirmando que aquela relação é apenas passageira, mas também exibe de tantas formas como a química entre o casal funciona a ponto de ambos tentarem machucar um ao outro ao forçarem relacionamentos com cônjuges troféus bastante supérfluos. Felizmente, o roteirista sabe os momentos ideias para intercalar essa curiosa história com outra envolvendo um relacionamento de Chow com uma terceira, a srta. Wang, filha do dono do hotel.
Amores Mortos
Esse núcleo é o que mais explora o voyeurismo de Chow, já que ele é um personagem passivo até cerca da metade do longa, pois somente observa a dor de Wang em investir em um romance proibido com um namorado japonês. Com ‘batidas’ similares a de Shakespeare em Romeu e Julieta, Kar-Wai desenvolve essa penúria completa de Wang como uma mimese do amor que o protagonista viveu em Amor à Flor da Pele.
Todo o investimento inicial desconjuntado desse núcleo logo se faz valer a pena quando Chow acaba atraído por Wang já que os dois partilham da mesma paixão pela escrita de ficção. É um romance mais similar ao do filme anterior, já que Wang é uma mulher comprometida, além de haver muito ênfase no flerte do que no ato de amar. Mas é aí que reside a genialidade da história, pois ao contrário de Chow, Wang acaba seguindo seu sonho e desafiando as normas ‘castas’ da moral chinesa sem se importar com seu próprio futuro.
Com isso, Chow é desmontado e logo volta a conversar com Bai. Aqui ocorre justamente o contrário. Bai é perdidamente apaixonada pelo protagonista, assim como ele era apaixonado por Chan no filme anterior. Ela é disposta a ceder tudo pelo homem que acaba definindo o destino de ambos em uma jogada egoísta, se privando de uma vida amorosa forte por ainda estar preso ao misticismo do chamado ‘2046’, a simbologia do amor ‘verdadeiro’ experimentado com Chan.
É algo bastante belo e complexo que confere uma realidade para essas personagens machucadas de Kar-Wai. Tudo se torna mais inteligente quando o diretor recria alguns enquadramentos e até mesmo cenas icônicas de Amor à Flor da Pele em 2046 – por exemplo, a ótima cena em preto e branco durante uma volta silenciosa em um táxi. O mesmo pode ser dito quando o cineasta trabalha com a contemplação buscando evidenciar contrastes profundos.
O melhor exemplo que posso encontrar acontece quando Chow chama outra prostituta mais voluptuosa que Bai para dormir com ele no hotel. Como os dois são vizinhos. ela observa e depois escuta toda a ação enquanto sofre silenciosamente em seu quarto sombrio. Uma imagem poderosíssima capaz de sintetizar o desequilíbrio de interesses entre os dois.
Por fim, em nível imagético, Kar-Wai também se torna um verdadeiro cínico ao apresentar o futuro tanto de Bai quanto de Chow na figura de uma viúva misteriosa, totalmente elegante e mal resolvida com seu passado, sem conseguir dar o próximo passo para se ver livre do confinamento de um amor já falecido.
Nisso, o cineasta confirma que sua estética mais livre é uma farsa muito bem engenhada – assim como as tramoias vistas em Um Corpo que Cai, pois Chow ainda está totalmente aprisionado, mas agora por algo ainda pior: o idealismo de algo intangível, incurável, insaciável. O verde espectral que permeia toda a fotografia do filme é apenas o reflexo desse desejo de ser amado – não por todas, mas por Chan que já foi embora há tempos. Assim como John é completamente fissurado por Madelaine no filme de Hitchcock, impossibilitado de amar seu ‘verdadeiro’ amor na figura de Judy Barton.
A Beleza do Cinema Maleável
Com 2046, Wong Kar-Wai praticamente define seu estilo reconhecível, apesar de sempre ser tão transformado entre homenagens singelas a mestres admirados assim como explora os limites da sua própria originalidade. O próprio longa revela onde sua ambição acerta e também onde falha, já que apenas a narrativa de 1960 com Chow desperta um interesse bem mais profundo no espectador. Novamente em uma obra repleta de camadas inteligentes e um virtuoso realismo para compreender todas as burocracias humanas envolvendo a paixão do humor, é bem capaz de Kar-Wai ter conseguido criar uma sequência tão boa quanto, ou melhor, que o excelente filme original.
2046 – Os Segredos do Amor (2046, China, Hong Kong, França, Itália, Alemanha – 2004)
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai
Elenco: Tony Chiu-Wai Leung, Li Gong, Faye Wong, Takuya Kimura, Ziyi Zhang, Maggie Cheung
Gênero: Drama, Romance, Ficção Científica
Duração: 127 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=3Tz6KgPfeuk
Crítica | Invasão Secreta - A Narrativa Eclipsada pela Ação
Depois de Mark Millar mexer fundamentalmente com o universo Marvel por conta dos acontecimentos de Guerra Civil, provavelmente a melhor saga já escrita para a editora até agora, muitos autores tiveram que oferecer soluções e novos caminhos para uma época repleta de times com Vingadores divididos. Explorando essa ideia de colocar herói vs herói, ficou a cargo do experiente Brian Michael Bendis criar uma narrativa que voltasse a refletir o turbulento cenário político americano, além de trazer embates épicos repletos de ação.
A saída disso foi resgatar uma brecha deixada nos anos 1970 com a saga Guerra Kree-Skrull na qual os Vingadores realizaram um verdadeiro estrago na sociedade alienígena dos Skrull que, desde então, deseja a vingança completa. Por conta da habilidade dos skrulls em se transformarem em outras figuras humanoides, por anos os alienígenas se infiltraram na Terra aguardando pela hora correta de se revelarem e dominarem o mundo. Em suma, Invasão Secreta é isso.
Fim da Confiança
A proposta de Bendis é inteligente por colocar os skrulls infiltrados em diversos níveis de confiança até mesmo dentro dos grupos de heróis. E com a descoberta perturbadora da existência dos alienígenas até mesmo nos Vingadores, Tony Stark pede a ajuda de Hank Pym e Reed Richards para encontrarem uma forma de detectar quem são os infiltrados disfarçados. Porém, assim que Stark descobre a terrível verdade, os skrulls decidem fazer a investida final contra a Terra e eliminar todos os heróis com sua legião de transmorfos.
Sendo um quadrinho repleto de erros e acertos, é fácil apontar os motivos pelos quais esse evento não se popularizou muito com os fãs da Marvel, apesar de levar diretamente aos eventos importantes de Reinado Sombrio que coloca diversos vilões icônicos como “protetores” do planeta. Começando pelos elogios, Bendis consegue inserir grande sensação de paranoia, principalmente pelo medo profundo de Stark em saber que não conseguirá deter os aliens a tempo, já que a invasão começa em questão de poucas páginas.
Muito do dilema da responsabilidade cai diretamente nos ombros de Stark, afinal ele ainda é o líder dos Vingadores oficiais e, portanto, o principal protetor do planeta. Mas com a certeza da infiltração, o herói mal consegue confiar nos colegas do próprio time. Bendis opta também em trazer esse evento sob a ótima de diversos grupos, mostrando os acontecimentos em uma escala realmente gigantesca, focando nos Vingadores Secretos e outros grupos de heróis.
Embora raramente esses núcleos despertem interesse, colaboram para permear o sentimento de desesperança e derrota que vai se espalhando entre os personagens. Outras boas ideias estão nas reviravoltas envolvendo as revelações sobre quais heróis são skrulls ou não, apesar de Bendis abusar desses cliffhangers a cada edição. Aliás, é justamente no exagero de reviravoltas e eventos que Invasão Secreta se perde entre inúmeros deus ex machina e buracos gigantescos de roteiro.
Bendis a todo momento, em tentativa de impressionar o leitor, inventa algum acontecimento impactante. Certamente eles funcionam em primeiro momento, mas logo passam a virar incômodos pela falta completa de lógica ou de coerência. Isso inclui até mesmo como Reed Richards descobre a fórmula para remover os skrulls de seus disfarces ou do retorno totalmente inesperado dos heróis originais que foram, absurdamente, sequestrados pelos aliens.
Ou desbanca para a besteira completa ao decidir assassinar certa personagem de modo totalmente inexplicável e incompreensível ou da completa ausência de Sentinela após escutar certas palavras ditas por Visão. É simplesmente bizarro. Essa alternância entre ideias boas e outras péssimas é constante em toda a HQ, mas ao menos Bendis fornece estofo o suficiente para fechar pontas soltas que ele havia criado anteriormente, além de pesar as consequências justas da amizade rompida entre Homem de Ferro, Capitão América e Thor gerando um peso emocional muito maior.
Mas melhor que a história, no mínimo, satisfatória de Bendis, temos a arte sempre fenomenal de Leinil Francis Yu que sempre surpreende com as generosas páginas duplas repletas de ação em artes gigantescas. Há todo um cuidado por parte do artista em inserir ação em diversas camadas de seus desenhos, transformando os confrontos em verdadeiras batalhas de uma guerra impossível. A violência é abrandada, obviamente, mas ainda assim há muito peso nas sessões de porrada, além de todo o cuidado com expressões faciais muito complexas que ele desenha para ressaltar a angústia, medo e desespero dos personagens.
Ambição Não Correspondida
Somente pela arte de Yu, Invasão Secreta vale a leitura, mas é preciso reconhecer que Bendis criou um evento ambicioso, mas repleto de furos para a Marvel. Sendo uma das sagas mais memoráveis da História recente da editora, acreditava que o evento era melhor escrito, afinal a ideia da invasão repleta de infiltrações e desconfiança é bastante interessante. A aposta em núcleos diversos e outras características narrativas que chegam até mesmo aos níveis religiosos, tornam o evento bastante bagunçado, além de exigir alguma leitura de acontecimentos anteriores importantes.
Ainda assim, foi um evento marcante que permitiu o nascimento de outra fase bastante interessante na Marvel com o Reinado Sombrio, se tornando uma leitura obrigatória para compreender os eventos posteriores.
Invasão Secreta (Secret Invasion, EUA – 2008)
Roteiro: Brian Michael Bendis
Arte: Leinil Francis Yu
Editora: Marvel, Panini
Edições: 1 a 8
Crítica | Thanos - Volume 1: Thanos Retorna - Reformando um deus
Depois do evento cataclísmico de Guerras Secretas de Jonathan Hickman, muitos torceram o nariz para a fase All New, All Different Marvel que comandaria esse “renascimento” da Casa das Ideias. Apesar de muitos títulos realmente tenham deixado a desejar, certamente Thanos foi uma das maiores surpresas em sua série de HQs solo.
Foi uma jogada acertada da Marvel para que o seu maior vilão ganhasse mais popularidade já que era questão de tempo, na época, para que Thanos aparecesse pela primeira vez em uma produção cinematográfica. Embora esse Thanos escrito por Jeff Lemire tenha muito pouco a ver com o ser cordial e emocionalmente controlado com o que vimos em Vingadores: Guerra Infinita, há um forte magnetismo nessa história que prende o leitor já na primeira edição.
O Titã Louco Retorna
Apesar de termos um início morno na primeira edição, apenas mostrando Thanos destroçando Corvus Glaive para retomar seu trono falido no quadrante no qual reina, Lemire é muito inteligente em logo exibir um cliffhanger excepcional nas últimas páginas do quadrinho: Thanos sangra copiosamente depois da batalha. O leitor acostumado com a força do vilão, naturalmente, já percebe que há algo de muito errado naquela situação.
Através da presença bem-humorada de um narrador onisciente e onipresente, o leitor então descobre uma intrigante verdade: Thanos está doente e tem poucos dias de vida. Logo, toda a premissa desse arco envolve a busca do vilão por uma cura que também forçará o personagem a encarar alguns dos fantasmas de seu passado violento.
Lemire e Mike Deodato Jr abordam todo o quadrinho de forma bastante adulta e também violenta. Por isso não espere passagens poéticas ou de matança apenas sugerida, já que a abordagem aqui é mesmo muito explícita. Isso não incomoda e até mesmo diverte o leitor por ver o vilão totalmente sem freios cometendo atrocidades ainda maiores pelo medo de morrer.
Paralelamente, vemos por onde anda Thane – é recomendado que o leitor leia Infinito para ter certa familiaridade com o filho de Thanos. O ódio pelo pai só cresce, mas como o personagem está totalmente fraco por conta da magia das Irmãs das Estrelas, acaba preso por Corvus Glaive. Na cadeia, ele conhece Slatterus, o Campeão do Universo. Os dois se afeiçoam e acabam se tornando amigos. Entretanto, conforme o tempo na cadeia aumenta, mais Thane se aborrece e enlouquece, permitindo assim que a Senhora Morte o seduza e o manipule, alimentando ainda mais a promessa de vingança contra Thanos.
Com a ajuda sobrenatural da Morte, Thane consegue escapar do cárcere e logo se coloca em uma missão para reaver seu poder, mas desta vez com a intenção de se fundir à Fênix. Embora seja um núcleo mais fraco e que de fato seja pouco desenvolvido para que o leitor melhor compreenda a relação conturbada entre pai e filho, Lemire traz reviravoltas interessantes o suficiente para satisfazer a curiosidade do leitor em conhecer mais desse personagem relativamente novo no universo Marvel.
É apenas uma pena que tenhamos algumas passagens inteiras focadas em filler para suprir a demanda de ação que o título exige, burocratizando a jornada de ambos os personagens até o inevitável encontro final que encerra o arco também de modo criativo. Os desvios trazem algumas boas e outras más ideias para a jornada, principalmente uma envolvendo a edição 3 com outros personagens sendo entrevistados sobre a luta contra Thanos.
Há outros clichês para livrar o personagem-título de algumas enrascadas, mas nada que seja verdadeiramente absurdo. Já com a arte de Deodato, há uma estranha escolha, já que os desenhos realmente são muito bem feitos, apesar da anatomia robusta e pouco equilibrada de Thanos. Isso envolve a diagramação dos quadrinhos que, vez ou outra, é totalmente sem imaginação ou exibida em uma ordem realmente de mal gosto artístico com um plano de fundo totalmente genérico.
O que Deodato realmente acerta é no erotismo entre as cenas de Thane e a Morte, além de todas as sequências de ação serem excepcionais.
A Boa Premissa
Apesar de trazer uma história repleta de potencial, Lemire apenas prepara o terreno para os acontecimentos épicos que ocorrem no segundo volume de sua fase com Thanos. Há muito filler e escolhas estéticas de diagramação realmente tenebrosas aqui, mas temos boas ideias a todo momento para o texto que consegue trabalhar o vilão de um modo inusitado já que o joga em uma busca para sobreviver e driblar a Morte – algo irônico para um personagem tão lembrado por ser completamente apaixonado pelo espectro.
Vale a leitura, mas é recomendado que já tenha em mãos o volume dois para ver como a história termina em uma escala mais interessante que a vista aqui, apesar do ótimo cliffhanger.
Thanos Vol. 1: Thanos Retorna (Thanos Returns, EUA – 2016)
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Mike Deodato Jr.
Editora: Marvel
Edições: 1 a 6